21 junho 2012

Sobre um Morto

quando estiveres Morto
ao ponto
de deixar de existires
(e estás quase
como quando em um ponto do céu
desaparece uma ave)
então estarás no ponto
e voltarás ao ponto inicial
ao ponto mínimo branco
brotado entre o negro dômino
de uma roda de filosofia oriental

Fênix e Reis
renascem das cinzas
e nunca perdem a majestade
(o reinício é o muito tarde)

que importa
que falem de isso e de aquilo
ou de aquele e de esse?

como se passando do ponto
da meia-noite
fatal
natural
infinital
não amanhecesse...

20 junho 2012

O Escritor deve ser um Franco-Atirador

Um bom escritor deve ser algo como uma metralhadora giratória. Não disparando à toa, atirando apenas para atirar, mas no sentido de não se prender a nada para poder exercer livremente o seu direito (e dever) de disparar o seu verbo contra o que não julgar correto. É aquele velho “doa a quem doer”.

O que, logicamente, não é nada fácil. Há que se não ter o rabo preso nem com algo nem com ninguém. A liberdade total de expressão exige que paguemos um preço alto. O problema é que a maior parcela dos escritores de hoje em dia (e não só os escritores) não querem pagar preços, preferem receber pagamentos. Não necessariamente monetários, é claro. Vender-se é bem mais simples. E mais lucrativo. Obter-se favores com a delimitação do nosso verbo também é uma moeda de troca. Pode-se até conseguir um sucessozinho, certa fama, até dinheiro.

Há desde os que se vendem para aparecer na mídia aos que se vendem a editoras. Há os que preferem não falar de certas coisas para evitar criar inimizades, ou para não prejudicar amigos, ou a si próprios, para não serem mal vistos, para não perderem determinados privilégios e benesses. Algumas vezes, é simplesmente porque não podem. Afinal, há que se sobreviver.

Porém também há um preço a se pagar ao não se ter a coragem de disparar a metralhadora. O preço é tornar-se exatamente um covarde e um medíocre. Nos casos mais graves, perde-se a honra e a dignidade. Torna-se um pau-mandado. Muitas vezes, o medíocre justifica-se a si mesmo, afirmando que tudo o que escreve é exatamente o que queria escrever. E que está com sua consciência absolutamente tranquila.  Mas, no fundo, ele sabe que não é bem assim.

Escrever é atirar. É óbvio que não é só isso. A literatura é uma das artes mais completas, se não for a mais completa, e possibilita uma gama infinita de expressões. No entanto, em nossos dias, é uma obrigação (mais do que um direito) do literato exercer todo o potencial de criticidade possibilitado pela literatura. Mas há que se ter muita coragem para fazê-lo, entre outras características mais, como uma funda e perspicaz visão do que acontece à sua volta. Para se atirar há que se não estar de acordo com a situação. A arte em si é, entre outras coisas, a reação a todas as situações.

Além do que, uma literatura sem “tiros”, torna-se, nos tempos atuais, insuportavelmente chata. O escritor deve ser um franco-atirador. Nunca curvado. Dobrar a espinha é o primeiro atestado de mediocridade. Talento sem coragem é como ter milho e não ter dentes. Para tanto, é mister a independência de quem escreve. Caso contrário, torna-se um touro capado. Que não é touro, é um boi. Sem força e sem moral.


18 junho 2012

Eu Não me Explico

não me explico.

por que deveria dar um motivo
para perder ou não o meu siso?
reservo-me o inexplicável direito
(com o que faço
só eu devo estar satisfeito)
de dizer-me ou não
e se assim desejo
se for pelo dizer mais alto
(ou sonho que me tomou de assalto)
de meu eu eu me desdigo
que nunca falo do meu falo
e não sou meu próprio umbigo

as palavras (já sabem) são as asas
que não tenho e te sustenho
e que voem vaguem veladas
sem ter que ter no meu chão
(só a mim interessa o meu não)
algo de alga sobre o mar
lago de gala cobre o céu
e um lento luto lento
sempre a me ser olhar...

lá vai minha palavra
ao longo longe de  mim
e por outra maior estrada...

se eu tivesse que explicar tudo
melhor seria não dizer nada...

16 junho 2012

Quem Pisou o Meu Chão?

antes de eu pisar o aqui de onde piso
quem o pisou no antes de mim?
quem foi que foi
onde agora sou eu?

quem pisou o chão da minha casa
antes de ser este o chão da minha casa?
aquele que trabalhava na construção civil
que eu nunca vi e que nunca me viu?

e antes dele
quando campo ou mato ou banhado?
qual foi o guerreiro
que aqui tenha morrido
ou tenha matado?

que animal pisou onde durmo?
carneiro cavalo jaguar ou guará?
será que num outro dia não vindo
uma outra pata-pegada aqui ficará?

algum homem pré-histórico
pisou o futuro
do que seria minha casa?
tombou algum raio
um dinossauro
ou o ruflar de uma asa?

que pata acompanhou o  meu passo
sem nunca saber que estaria
em meu mesmo invisível compasso?
e que mistério existido
sem presumido conhecimento
fora da ciência e da consciência
ou do qualquer em todo momento
pode ter um dia pisado o meu piso?

o que é outra era?
era quando o que eu
era outro eu
ou o meu eu era um não?

queimou o meu chão um dragão?

não sei
só sei que tudo passa:
estes antigos versos que escrevo
também um dia serão pisados
por um mamute
ou...
por uma traça

15 junho 2012

Relatório Planeta Vivo 2012 para a Rio+20: 60% da Biodiversidade das Regiões Tropicais Perdida em 40 Anos


(Na imagem, vista aérea de uma região de floresta tropical da Indonésia destruída após queimadas para plantação de dendê. O óleo de dendê é usado, entre outras coisas, para a fabricação de cosméticos, chocolates e biocombustível.)

Estamos em plena Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Muitos nem sabem que ela está acontecendo. E também nem querem saber. Já outros, julgam que depois da Conferência tudo vai mudar para melhor. Será?

A organização não-governamental WWF, de dois em dois anos, publica o relatório "Planeta Vivo", em que aborda o que vem ocorrendo com o ambiente e os recursos naturais do nosso planeta. No relatório de 2012, preparado especialmente para a Rio+20, a WWF, além, é claro, de chamar a atenção para a importância fundamental da Conferência, apresenta alguns dados sobre o que mudou nos últimos 20 anos com relação à preservação do nosso planeta e ao avanço da destruição ambiental.  Por que nos últimos 20 anos? Porque, para quem não se lembra, em 1992 tivemos a Eco92, também no Rio, onde as nações se deram conta (mesmo?) de que algo deveria ser feito para evitar o progresso da destruição dos recursos naturais do planeta. Abaixo, alguns dos principais pontos abordados pelo relatório "Planeta Vivo". Sugiro aos leitores que leiam com muito atenção:

- A Biodiversidade mundial encolheu 30% entre 1970 e 2008; nos trópicos, a redução foi de 60%.

- A demanda por recursos naturais dobrou desde 1966, e hoje estamos consumindo o equivalente a 1,5 planeta Terra para realizar nossas atividades.

- Segundo as projeções tendenciais, vamos precisar do equivalente a 2 planetas Terra até 2030 para atender às nossas demandas atuais.

- Desde a Eco92, a cobertura florestal mundial encolheu 3 milhões de quilomêtros quadrados.

- Se todos vivessem como um morador típico dos EUA, seriam necessários 4 planetas Terra para regenerar a demanda atual da humanidade imposta à natureza.

- A produção de alimentos aumentou 45% nos últimos 20 anos.

2,7 bilhões de pessoas enfrentam problemas de escassez de água aguda.

- As emissões de dióxido de carbono aumentaram 40% desde 1992.

- A quantidade de gelo no ártico diminuiu 35% nos últimos 20 anos.

Quem tiver interesse em saber mais a respeito, leia o relatório "Planeta Vivo" aqui.


13 junho 2012

Então Controlas a Tua Vida?

estás certo
de que tudo o que pensas
pensas porque queres pensar
e sabes o porquê do que pensas?

estás certo
de que tudo o que sentes
sentes porque queres sentir
e sabes o porquê do que sentes?

quando queres parar de pensar
em algo que não queres pensar
porque é que não paras?

e quando não queres sentir
o algo que não queres sentir
por que é que mesmo assim sentes
se não queres sentir?

aquele pensamento do nada
que veio do nada
veio de qual onde?

e aquele sentimento de angústia
que veio ainda que não quiseste
veio de qual possibilidade?

não controlas o que pensas
e não controlas o que sentes...

mas controlas tua vida
e controlas teu destino
com tuas psiques
de inconscientes?

12 junho 2012

Uma Visão de Deus em Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, o poeta maior da língua portuguesa, dividiu-se em vários "eus", em vários "outros" para poder expressar com maior liberdade (não só por isso, mas também por isso) o universo infinito de emoções, de ideias, de filosofias, de percepções que conviviam e conflituavam incessantemente em seu ser. Pessoa era tão imenso que não cabia em si próprio. Tinha tantas facetas que não podia se mostrar com um rosto só. Com seis anos de idade, o gênio português, já havia criado um heterônimo: Chevalier de Pas. Com o tempo, criou dezenas de outros. 

Bernardo Soares é um dos seus heterônimos mais conhecidos, e onde Fernando Pessoa melhor realizou a sua prosa poética, no fenomenal Livro do Desassossego. É desse livro que retiro uma visão de como o heterônimo compreende a existência de Deus. Não se pode dizer que seja, necessariamente, a mesma visão de Fernando Pessoa ele mesmo, pois o poeta deu liberdade de pensamento e de expressão aos seus heterônimos, ele se desdobrou em outros que não ele sem deixar de ser ele. Que o próprio leitor tire suas conclusões. O trecho é longo, mas vale a pena:

Livro do Desassossego, trecho 254:

"Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores — falar e pensar são apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos. E a frase do escolástico, tão justa em sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de tudo.


Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande fato da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não descreu. Compreendo que, atendendo a certos fatos aparentemente desviados de um plano (e era preciso saber o plano para saber se são desviados), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento de imperfeição. Isso compreendo, se bem que o não aceite. Compreendo ainda que, atendendo ao mal que há no mundo, se não possa aceitar a bondade infinita dessa inteligência criadora. Isso compreendo, se bem que o não aceite também. Mas que se negue a existência dessa inteligência, ou seja, de Deus, é coisa que me parece uma daquelas estupidezes que tantas vezes afligem, num ponto da inteligência, homens que, em todos os outros pontos dela, podem ser superiores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e pondo já no jogo a inteligência da sensibilidade, os que não sentem a música, ou a pintura, ou a poesia.


Não aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imperfeito nem o do relojoeiro sem benevolência. Não aceito o critério do relojoeiro imperfeito porque aqueles pormenores do governo e ajustamento do mundo, que nos parecem lapsos ou sem-razões, não podem, como tal, ser verdadeiramente dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que, se há em tudo uma razão, haverá nisso também a mesma razão que há em tudo. Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de ritmos sutis pode intercalar um verso arrítmico para fins rítmicos, isto é, para o próprio fim de que parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo que do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode intercalar o que nossa estreita [ilógica?] considera arritmias no decurso majestoso do seu ritmo metafísico. 
Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência. Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só aparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Criador. Ora o erro essencial deste argumento parece residir no nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual. Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A distinção é talvez sutil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é justa. A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceita. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a nossa imperfeição."
Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa
(Na imagem, a pintura "O Ancião dos Dias", de William Blake.)

10 junho 2012

Teus Olhos Noturnos...

insana
palavra de sombra:
verbo-clarão na verdade...
nada
ilumina o tanto da noite
do que a mais relampejante tempestade

agouro de coruja amiga
que pia
ao que não me iludo...
teus olhos vastos imensos noturnos
que alertantemente
veem tudo...

que segredo que há
entre o que céu
e uma revoada de urubus?...
só a sombra
percebe os mínimos
detalhes da luz...

09 junho 2012

Propaganda é Antes de Tudo Enganação

Geralmente se diz que uma boa propaganda deve ter como principal característica a capacidade de ressaltar as boas qualidades de algo ou de alguém. Discordo. Entendo que uma boa propaganda deve, antes de qualquer coisa, dissimular muito bem as más qualidades de algo ou de alguém. E não me refiro à propaganda enganosa. Na verdade, a propaganda enganosa é aquela que engana escancaradamente. A propaganda legal engana camufladamente. Parece certo, mas não é. Para quê maior show de enganação do que a propaganda nazista?

Tomo como exemplo a propaganda da maionese Hellmanns que está sendo veiculada na TV. A maionese é comparada com o óleo de oliva, demonstrando que tanto a maionese quanto o óleo não contêm colesterol, que ambos possuem ômega 3, substância benéfica à saúde, mas que a maioneses levaria vantagem porque em uma colher da mesma haveria bem menos calorias do que em uma colher de óleo de oliva. Ou seja, o que se deve concluir da propaganda  é que a maionese Hellmanns é melhor e mais saudável que o milenar óleo de oliva.

Porém do que a propaganda não fala é que o óleo de oliva é um produto 100% natural, enquanto a maionese traz junto com seus saborosos ingredientes um sem-número de porcarias, os famosos conservantes, antioxidantes, estabilizantes, espessantes e tantos outros "antes" cujas substâncias não são identificadas, mas das quais se sabe, e não se fala, que algumas são potencialmente cancerígenas. 

Fiquei apenas com a propaganda da Hellmanns, mas poderia comentar sobre qualquer outra. E é claro que essa enganação não é apenas no marketing de produtos à venda, mas em qualquer propaganda. Passemos aos partidos políticos: o PT se diz o partido dos trabalhadores, porém o governador Tarso agora quer aumentar a contribuição do IPE dos servidores do Estado. Ou seja, quem paga a conta são os trabalhadores. O PP enche a boca com o seu slogan "Primeiro as pessoas", porém não esclarece que pessoas são essas: as elites, principalmente os ricaços do agronegócio. O PMDB diz que "tem cara". Qual? Só se for a de uma melancia em cima do muro.

Mas a enganação da propaganda vai além. Nós mesmos enganamos com nossas propagandas. Tomemos como exemplo os nossos perfis em redes sociais. Ali construímos a imagem que queremos, escondendo ou dissimulando o que não nos interessa e exagerando as nossas qualidades, até mesmo inventando algumas. E quanto às fotos? Quanta armação, hein? Alguns conseguem o milagre de passar da categoria de monstruosos para deuses ou deusas. 

Mas essa é a alma do negócio. E negócios geralmente são sujos.

07 junho 2012

Despoética

o deslirismo
a despoética
do desespero
despido
de espada
deposto

descrido
o desmoronamento
desvendo
desvê-lo


dessentido...

o maior feito do homem?
o desfeito

desrota...
destino...
o descer humano
o desser humano

06 junho 2012

Quantos Sábios há no Mundo?

cada humano tem sua própria razão
e cada um tem razão em tudo o que faz
por mais que não tenha razão alguma

ninguém se julga errado
porque mesmo quando se julga em erro
logo transforma o erro em acerto
pelas mil e uma justificativas
e um milhão e meio de motivos
absolutamente justos
(para o seu si mesmo)
ainda que em justiça
não haja justiça alguma
em nenhum dos seus motivos

quem é que pensa que não é certo
aquilo que pensa
por mais que só pense em engano?
quem é que age
julgando errado o que agiu
por mais errado que seja?
quem matou alguém
(por exemplo)
de três, uma:
ou julga justo ter matado
e assim está certo para si
ou diz que se arrepende
mas no fundo não se arrepende
e assim está certo para si
ou se arrepende mesmo
e por se arrepender
se julga correto após o arrependimento
e assim está certo para si

quando dizemos que estamos errados
no fundo apenas dizemos
para que os outros não nos digam
que estamos errados
admitimos o erro
para poder viver tranquilos
no que julgamos acerto

quem é que muda
quando se julga errado?
se não muda
é porque no fundo
se julga correto

cada um de nós
e todos nós
nos julgamos donos de toda a verdade
ainda que em verdade
não saibamos de verdade alguma

cada um de nós
é a razão em pessoa
uma verdade ambulante
uma certeza com pernas

há 7 bilhões de sábios no mundo

04 junho 2012

do Meu Pessimismo

conhecendo-te a ti mesmo
sairás do engano da humanidade:
conhecer o humano
é o estágio
de ser pessimista

otimismo
é  algo como a crença
de que a árvore
que nasceu e cresceu torta
vai se endireitar
depois de velha...

no tudo em que eu te conheço
está o nada em que não te acredito

o meu pessimismo
é como um velho professor antipático
chato e inconveniente
sério e irritante
seco e indiferente
que traz um irônico sorriso no rosto
e chega sempre no meio da festa
trazendo consigo um livro de Não:

ninguém gosta dele
porque todos sabem
(mas não admitem)
que ele tem toda a razão...

03 junho 2012

"Achando graça da própria desgraça e tudo bem."

Abaixo, transcrevo trecho de um texto  de Caco Coelho, publicado em sua coluna "Crônicas da Cena"  no jornal Correio do Povo do dia 2 de junho. 

"Estamos vivendo o limiar de uma nova era. O momento tão propalado do país do futuro chegou. E quem somos? O que restou de nós mesmos? Possuímos a língua mais devastada de todo mundo. Nossos hábitos foram forjados pela cultura imperialista. As coisas mais banais vão deixando claro uma predominância, cada vez mais, subliminar. Isso tudo para que não haja contrastes. Sem distinção, vão se apagando os desejos e, em consequência, sendo subtraída à identidade até a quase completa alienação. Hoje, o que assistimos na televisão, na busca desesperada por audiência, é uma total degradação moral e ética. Debochamos de nós mesmos, rimos de nossas mazelas, sem transpô-las. Estamos chapados diante de uma total falta de distinção. Achando graça da própria desgraça e tudo bem."

Caco Coelho

A propósito do texto, deixo o poema abaixo, que escrevi ainda em 2011, publicando-o aqui no blog, mas que passou por alterações, e agora o republico:

Meu Mundo Humano

eu sempre esperei-me mais de ti
meu mundo humano
(como quem espera o chegar
de alguém especial em um trem
que sempre chega vazio)
eu sempre esperei-te mais de mim
meu mundo humano
que foi tudo menos meu
e que, de tanto não-ser,
já nem mais é humano

para ver a altura suprema
dos teus arranha-céus
olhei para o fundo de um abismo
em que também era eu
e quando voei nas tuas naves
o meu nada não se ergueu do chão
e contemplando o verde
dos teus campos cultivados
murchou o verde último
que ainda alentava a minha esperança amarela
e quando na multidão das tuas grandes cidades...
tornei-me ainda mais sozinho
do que ainda serei
e as descobertas da tua ciência
ocultaram-me eu mesmo de mim
e todos os teus potentes veículos
não me movimentaram da miséria
em que sempre me situei
e tudo o que construíram tuas indústrias
contribuíram com a minha destruição
durante uma noite serena...

só a Arte vale a pena

01 junho 2012

Carta a Cada Um de Vocês

“sim, tu és livre para fazeres

desde que faças aquilo que eu disser
para tu fazeres
porque eu sei o que deve ser feito
e sei os motivos
que pertencem tão somente a mim
e são consequentemente perfeitos e justos
e o certo é o que eu digo
não pode haver uma verdade
que vá contra a minha verdade
(eu sou a verdade)
ou uma opinião que se exista
como sendo correta
se não for aceita por mim
de antemão
e já deixo como determinado
que quem duvidar de minhas palavras
não pode ser levado a sério

sim, tu és livre para pensares e sentires

desde que penses e sintas
da forma como eu julguei
que assim deveria se pensar e se sentir
afinal
a razão é minha
e na razão está a única forma
não só de se pensar
mas também de se sentir
o que é correto
para ser sentido
nada pode ir além das justas barreiras
que construí
para o bem estar de todos
acredite
tudo o que faço
é para o seu próprio bem

há uma medida
eu sou essa medida
o ponto colocado como determinante
que tudo sabe e tudo estabelece
não pode haver vida além de mim
e, havendo
cai em erro imperdoável
e que não será perdoado
pois ninguém tem a permissão
para ir além de mim
de destacar-se fora dos padrões
ou permitir-se o que quer que seja
se eu não disser que assim é
de acordo com os mandamentos
estabelecidos como lei suprema
por aquela que todos adoramos
a sagrada e santa
Deusa Mídia”

Assina:  A Sociedade

30 maio 2012

da Falta da Outra Água

qual água preencherá
o vazio de se não-ser?

mais seco que qualquer leito
(de qualquer rio
em qualquer seca
pela terra afora)
é o vácuo esvaziado em pó
(e varrido de horror
de hora em hora)
...mais seco que qualquer leito...
é a terra seca
do humano peito

todo o esgoto das águas do mundo
não é páreo
ao seu coração esgotado
como quem cortasse
sua própria artéria
de cima abaixo
de lado a lado

nenhuma semente germinará
nem das mais reles ervas
nem das mais tênues palmas
na esterilidade esfarelenta
destas humanas almas

 meu deus, que Sede!

quando é que chove no que trágica?
vou ver se sobrevivo
com a minha última gota
de lágrima

29 maio 2012

Fernando Pessoa e a Eternidade do Poeta - E Bach e o prefeito de Brandenburg-Schwedt

Ninguém melhor que Fernando Pessoa, gênio que não obteve sucesso em vida, para falar sobre a eternidade do poeta. Hoje, Pessoa é unanimidade absoluta, maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da poesia universal do século XX. 

A maioria absoluta das pessoas, ainda que importantes e famosas em vida, são filhos do seu tempo. Morreram, passaram. É o caso dos políticos, em quase sua totalidade. Mas o poeta, o artista, se verdadeiro, continua, seja para poucos, seja para muitos. 

Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde se não está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo, em conseguir, enfim, qualquer coisa de difícil, de absurdo, em vencer, como obstáculos, a própria realidade do mundo.


Se me disserem que é nulo o prazer de durar depois de não existir, responderei, primeiro, que não sei se o é ou não, pois não sei a verdade sobre a sobrevivência humana; responderei, depois, que o prazer da fama futura é um prazer presente — a fama é que é futura. E é um prazer de orgulho igual a nenhum que qualquer posse material consiga dar. 


O milionário americano não pode crer que a posteridade aprecie os seus poemas, visto que não escreveu nenhuns; o caixeiro de praça não pode supor que o futuro se deleite nos seus quadros, visto que nenhuns pintou.


Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)

O trecho me lembra um incidente ocorrido com Johann Sebastian Bach. Em 1721, o compositor alemão dedicou a Christian Ludwig, margrave de Brandenburg-Schwedt, uma espécie de prefeito da época na Alemanha, os seus 6 Concertos de Brandenburgo, uma das obras musicais mais geniais já compostas. O próprio margrave havia encomendado as obras. Porém, o senhor Christian Ludwig não deu muita importância para os concertos. E os concertos de Brandenburgo não foram executados. Ficaram lá, jogados a um canto. Até porque, na época, quem era Bach? 


Bach não era reconhecido como o gênio musical que é hoje. Vivia de forma muito modesta, tinha que trabalhar muito para sustentar sua numerosa família. Não enriqueceu com sua arte. Muitas de suas obras nunca foram executadas durante sua vida, várias se perderam. Bach era visto como um grande organista e cravista, mas não como um grande compositor. Julgavam-no como um compositor menor. Não entendiam seu gênio. Achavam sua obra muito hermética, difícil, sombria, e até retrógrada. De modo que o pouco caso do senhor margrave, um ilustre político, não foi algo surpreendente.


Porém, como o mundo dá voltas, não? Quem hoje conhece Herr Christian Ludwig? O leitor conhece? E quem não conhece Bach? Se o senhor ex-prefeito Christian Ludwig ainda é lembrado no mundo, é como aquele para quem Bach dedicou os Concertos de Brandenburgo. E que não os quis executar. Ou seja, é lembrado como um idiota.

27 maio 2012

Sete Rápidos Sinais dos Tempos

I

no antigamente
aparecia-se nos quadros e nas fotos
com uma nobre seriedade
desde o camponês até a imperatriz

agora
se fores tirar uma foto
ai de ti
se não saíres feliz

II

que saudades que tenho
quando acordava
com o cantar do galo

agora
é com um alarme de carro

III

naquele tempo
se perguntava o nome primeiro
e se beijava depois
(fazia nexo)

agora
se pergunta o nome depois
e primeiro se faz sexo

IV

naqueles dias
sábios
eram um Dante
um Kant
um Victor Hugo

agora
é o sábio Google

V

antigamente
tinha que se pensar por si próprio
era duro...

agora
a TV
faz por nós
esse serviço sujo

VI

que saudade que tenho
de ir para as matas
ver os animais

agora
vou para as baladas
ver os animais...

VII

antes
poesia era moda

agora...
é foda!

26 maio 2012

ao Compasso das Gargalhadas *

ao compasso das gargalhadas
dos abutres sobre o sangue...

vinho desgarrado das garrafas
cataratas rubras dos gargalos
e o catarro das risadas
dos abutres sobre a terra
garra a garra pela carne
em brasas de vida e graça
e a branca alada da garça
assanguinada em fraca faca
ao compasso das metralhas
em deboches alastrados
e os abertos bicos-corvos
na cantata das gargalhas
nas vagas claras do teu riso
cruéis dentes em vãs asas
como o branco das cascatas
e o sarcástico dos asnos
e o rastejo das serpentes
e o gaguejo dos macacos
gorgolejo de galinhas
e o grotesco destes sapos
e o motejo destas cabras
e o manquejo destes diabos
soando graves como larvas
despencadas dos cadáveres
ou como bruxas engasgadas
de ironias devoradas
e zombarias pelas águas
entre as línguas engraçadas
de lagartos arrastados
em macabras danças largas
mefistófeles e gárgulas
entre valsas e risadas

dos abutres sobre o sangue
ao compasso das gargalhadas...

*Revisão do poema publicado em 30/11/2010.

25 maio 2012

"O concurso do magistério tinha o objetivo de reprovar os professores em massa"

Transcrevo abaixo, na íntegra, a carta do leitor publicado no jornal Correio do Povo do dia 21 de maio de 2012, de autoria de Joice Colbeich, de Farroupilha.

"Gostaria de esclarecer aos milhares de leitores que leram as capas de todos os jornais do dia 18 de maio, nas quais está estampado que 90% dos professores são reprovados no concurso do magistério em 2012, que esse tão fatídico concurso tinha justamente este objetivo, de reprovar os professores em massa para arrastar pela lama o pouco brio que resta a essa classe tão sofrida e mostrar para a população que não são merecedores desse piso pelo qual têm lutado com tanto empenho, pois nem em um concurso conseguem passar. 

Essa prova era dividida em cinco partes (português, legislação, conhecimentos pedagógicos, conhecimentos específicos e da área de formação), pois, para passar, o professor deveria acertar, no mínimo, 60% de cada um dos itens. Ou seja, poderia gabaritar todas as questões em quatro itens, porém se não conseguisse apenas uma questão em apenas um dos itens, estaria reprovado. Então, para passar, não bastaria saber 60% da prova. Há alguns colegas que acertaram 48 questões das 60 disponíveis no concurso e nem assim passaram."

Exato, Joice. Concordo contigo. O concurso do magistério tinha sim a intenção de reprovar o máximo possível. Eu fiz o concurso. E não estou concordando porque fui reprovado. Não, eu fui aprovado, e com boa nota, 9,1, acertando 52 das 60 questões. Porém, se eu tivesse errado uma só questão a mais, teria sido reprovado, mesmo ficando com a nota 9,0. Ou seja, é um absurdo alguém ser reprovado em um concurso que ficou com nota 9,0. Explico: na verdade, a parte de legislação contava com 25 questões, subdividida em direito constitucional e em legislação da área da educação. 10 e 15 questões, respectivamente. Gabaritei a primeira parte e acertei os exatos 60% da segunda. Se tivesse errado uma só questão, teria sido reprovado. Mas minha nota continuaria na casa dos 9,0, porque as questões que acertei tinham valor maior. Sei de pessoas que ficaram com nota acima de 8,0 e foram reprovadas. 

E mais: 25 questões de 60 só sobre legislação? Para quê? De conhecimentos específicos eram apenas 10! Ou seja, um professor deve saber mais sobre legislação do que da sua própria área de conhecimento? Só pode ser piada. Ah, deve ser porque os professores devem conhecer muito legislação para depois poderem processar o governo do Estado por não estar CUMPRINDO COM A LEI que o OBRIGA a pagar o piso salarial. Cidadão fora da lei não pode, mas governo pode? Fora isso, não vou nem mencionar o fato de que a prova era extremamente cansativa e desgastante, com questões-textos gigantescas.

Juntando todos esses elementos, torna-se claro que o objetivo da SEC era a reprovação em massa. Para quê? Há vários motivos. Como disse a Joice, desmoralizar os professores um pouquinho mais, para tentar fazer eles ficarem quietos. E também para seguir com as contratações, pois um contratado recebe menos que um nomeado e possui menos direitos. E ainda para poder realizar um outro concurso com taxas de inscrição estratosféricas, como foi este último, e assim seguir enchendo os cofres do governo às custas do sacrifício do magistério. 

Esse é o Brasil, que deseja ingressar no primeiro mundo. Não, antes vai ter que acertar, no mínimo,  60% de cada lição. A primeira delas: professor desvalorizado resulta em educação ruim. E educação ruim resulta em país de merda.