31 março 2008

"Dante e Virgílio no Inferno" de Delacroix


O Baque no Fundo do Abismo

Deveria ser mais uma de minhas consoladoras caminhadas noturnas. Como disse Victor Hugo, “Eu sou um poeta. É a melancolia da gente da minha profissão que nos faz andar de noite pelas ruas.” Porém, aquela caminhada não foi como as outras...

A princípio, apenas digo que parti em minha tranqüilidade soturna para perambular solitário pelas ruas obscurecidas de minha cidade. A temperatura reconfortantemente fria do cair da noite e o céu absolutamente límpido, cintilante pela onírica magia de um quase plenilúnio, causaram-me uma agradabilíssima sensação, um bem-estar físico e psicológico quase transcendente. E ocorreu que enquanto tais sensações atingiam o auge no momento em que percorria um trecho belamente arborizado e com algumas casas bastante antigas, carregadas de recordações e impressões, percebi a minha frente o elegante caminhar de uma mulher de longos cabelos castanhos escuros, vestindo um casaco preto com detalhes em lilás. Não pude ver seu rosto, mas algo nela atraiu-me fantasticamente, uma atração que não saberia explicar, que não era meramente física, uma atração quase sobrenatural. E foi essa poderosa sensação que fez com que eu seguisse a desconhecida mulher pelas ruas mergulhadas na noite, não me importando nem um pouco o seu destino...

Seu caminhar era charmoso, porém rápido, e necessitei apertar bastante o passo para acompanhá-la de uma distância relativamente pequena. Minha intenção era conseguir observar seu rosto, o qual, imaginava alucinadamente, deveria ser de uma rara beleza. Nos instantes em que ela olhava para os lados, ao atravessar as ruas, eu podia discernir com dificuldade algo de seu perfil, o que já me transmitia uma vaga idéia de sua fisionomia e confirmava minhas suspeitas sobre sua aparência física: concluí definitivamente que deveria ser de fato uma bela mulher...

No entanto, não conseguia me aproximar da desconhecida moça, seu caminhar era realmente acelerado, e o máximo que lograva manter era a nossa distância constante. Caminhávamos na mesma velocidade, se eu intensificasse meu passo, ela também o fazia, o que me levou a desconfiar que ela tinha conhecimento que eu a seguia e, temendo minha aproximação, decidiu chegar o mais rápido possível ao seu destino. Pelo menos foi o que pensei. Porém, apesar da exagerada velocidade de caminhada para uma mulher de aparência delicada e estatura mediana, não chegávamos a lugar algum. Estávamos atingindo já lugares afastados da cidade, pouco conhecidos por mim, contudo, minha inexplicável atração pela suposta beleza divina da misteriosa desconhecida era tamanha que nem pensei em desistir de minha insana perseguição.

Mas devo confessar que ao passar por aquelas ruas escuras, distantes, sombrias, comecei a recear... Um vago medo invadiu-me e passei a dirigir minha atenção não só para a mulher a minha frente, mas também para o que ocorria ao meu redor. A noite avançava, a lua cintilava intensa pelo empíreo sem nuvens, e um vento frio soprava impiedosamente em meu rosto, o que não chegava a ser para mim um desconforto, pois estava com o corpo já bastante aquecido.

Como disse, principiei a observar com mais atenção os meus arredores e percebi que, mesmo com o cair da temperatura, um sem-número de pessoas começava a abrir portas e janelas de suas residências para observar as ruas. Não entendia absolutamente nada, mas os olhares que aquelas pessoas a mim dardejavam não eram nem um pouco amistosos...

Em um momento, tive a nítida impressão que a mulher que eu seguia voltou seu rosto em minha direção, e julguei contemplar como um relâmpago um rosto feminino irrepreensivelmente angelical, com expressivos olhos escuros e uma boca de tonalidade avermelhada. Pareceu-me ainda que ela esboçou um suave sorriso. Porém, não pude ter certeza de nada, a escuridão naquele trecho impediu-me. E ela prosseguia em sua frenética caminhada, não obstante não perder a graça e a delicadeza jamais. E eu, sempre a seguindo desvairado, não podia deixar de perceber o número crescente de indivíduos, homens e mulheres, que surgiam às portas e janelas, e todos eles me fitavam canhestramente. Pude ver em seus olhos algo como um ódio, uma violência latente dirigida contra mim, um rancor, uma malignidade. Confesso que a partir desse instante um verdadeiro temor assolou meu coração, mas já não podia deixar de seguir aquele magnífico ser feminino, era tarde demais.

Avançava infrene, mesmo me sentindo seriamente ameaçado. E o clima de ameaça tornou-se ainda mais carregado no momento em que verifiquei estarrecido que as fisionomias de todas aquelas pessoas assustadoras pareceram sofrer algum tipo de funesta alteração, uma modificação monstruosa. Aparentavam ter perdido algo de suas características humanas para assumirem outras doentiamente diabólicas. Intensificou-se a perversidade, a malignidade daqueles rostos, e acelerei ainda mais o passo, não só para acompanhar a bela mulher, mas também para fugir daquelas visões pavorosas. Porém aquelas pessoas de expressões demoníacas estavam em todas as casas, em todas as portas, em todas as janelas. E o que mais me assombrava era a impressão de profundo e implacável ódio que a mim, e somente a mim, transmitiam. Intentei compreender o porquê de tamanha maldade ser a mim direcionada e deixei que minha intuição falasse...

Seria somente porque eu perseguia a enigmática mulher? O que haveria de especial nela? Seria algo divino ou diabólico? Ou ambos? Ou os motivos do ódio anormal e monstruoso contra mim possuiriam raízes mais diversas, mais profundas, mais secretas? O que eu via nos olhares ominosos de todos era uma degradante e inexorável miséria. Não uma miséria material (em nossos dias, a humanidade é tão miserável que se julga que a única miséria possível é a ausência de dinheiro e bens materiais), mas uma vergonhosa miséria psíquica e espiritual. E percebi que todo o ódio que me ameaçava tinha como causa o fato de que eu ainda sonhava...

Sonhava romântica e absurdamente ao perseguir alucinado e febrento pela noite invernal e escura aquela mulher supostamente misteriosa. E isso era para eles inadmissível, eu jamais deveria cometer o abominável crime de sonhar insanamente em meio a pessoas que há muito já extirparam e asfixiaram suas próprias almas. E o fizeram, segundo elas, em nome de uma fina intelectualidade e de uma moderna filosofia.

A verdade é que, para eles, seres como eu não deveriam dar-se ao trabalho de existir. Afinal, de acordo com o julgamento daquela gente, uma real existência consistia simplesmente em viver-se como um cadáver ainda com energia vital. Vivo, porém interiormente morto. Percebi de forma definitiva naqueles instantes oníricos, de sonho e pesadelo, que o terrível peso anímico de minha existência anômala recairia com toda sua força sobre minhas costas.

O ódio egóico daquelas pessoas de mefistofélica perversidade desejava esmagar-me, banir a minha diferença do meio delas. Como seria possível aceitar alguém tão diverso das determinações padronizadas? Um lunático, um nefelibata, um homem absurdo como eu, um ser impregnado de ideais e emoções nebulosas, de ânsias de um sublime perdido, deveria ser naturalmente aniquilado. Eu seria tão-somente um mau-exemplo, uma indesejada influência a todos aqueles cadáveres autômatos que não queriam abandonar suas acomodações. Não sei como ocorreu aquela materialização tão ostensível, tão visível de tamanho ódio a mim direcionado. O que sei é que fui escolhido como uma espécie de bode expiatório. Iria pagar o altíssimo preço por ter tido a ousadia de sonhar com o impossível, com o inatingível, com a busca do segredo das almas... O segredo daquela mulher era um segredo de alma. E aqueles cadáveres da miséria do mundo que intentavam massacrar-me com seus olhares mentiam a si mesmos que eles representavam toda a vida possível e estavam certos que as minhas sombras nebulosas e secretas do sonho e do ideal eram símbolos de morte. Eu era um louco e, como tal, era um perigo à ordem geral estabelecida: afinal, todos devemos ser iguais...

Na minha insânia, portanto, eu prosseguia seguindo os passos fantásticos da moça. E a que preço a minha demência me carregaria? O que deve pagar alguém que ainda crê possível encontrar algo mais em uma simples perseguição noturna que uma simples mulher, tão normal e medíocre como todas as outras? Como eu poderia ser tão desvairado a ponto de acreditar que naquela mulher que eu seguia haveria mais que um corpo vulgar desprovido de alma como outorga a regra geral? Porém, por mais absurdo que isso fosse, eu acreditava. Para mim, naquela mulher havia alma, algo me dizia que ela não era como as outras, que valeria a pena segui-la... E prossegui.

Mas também algo mais prosseguiu sobre meus calcanhares: ao voltar rapidamente meu olhar para trás, senti um calafrio percorrer minha medula ao observar todas aquelas pessoas monstruosas correndo em meu encalço com um ódio catastrófico em suas faces cada vez mais disformemente demoníacas. A mulher à minha frente acelerou seu passo, agora para uma corrida desesperada, e, é claro, fiz o mesmo. E essa infernal perseguição manteve-se por um tempo indeterminado, porém relativamente longo, onde fomos paulatinamente deixando as casas e as ruas para trás e penetrando em um local desolado onde nada havia além de um terreno escuro e pedregoso, em um ambiente verdadeiramente insalubre. Nesse instante, dei mais uma olhada à minha retaguarda e percebi que tinha obtido uma considerável vantagem sobre meus perseguidores, mas eles permaneciam em meu encalce.

Foi então que a mulher estancou sua corrida subitamente e voltou-se em minha direção... O que meus olhos vislumbraram nesse momento assombrou-me terrivelmente: diante de mim estava um rosto onde somente se distinguia dois olhos escuros e doces com chamas violetas que me fitavam intensamente, como que escrutando os recônditos de minha alma, e uma boca vermelha como o sangue que me convidava estranhamente a beijá-la. E em seu rosto não havia mais nada, só olhos e boca. Tudo o mais era invisível, transparente, de modo que me era possível divisar os seus belos cabelos caídos sobre seu casaco. Nem mesmo seu pescoço era distinguível. Parecia algo suspenso no ar aqueles seus cabelos. O restante de seu corpo estava coberto por suas roupas, inclusive suas mãos por estranhas luvas brancas.

Após o choque causado pela visão absurda, desviei minha atenção para um ponto à frente da mulher e percebi para meu maior assombro que estávamos a poucos passos de um vasto precipício. Os olhos daquela moça fantástica permaneciam fixos em mim, como se quisessem descobrir-me profundamente. Intentei, atônito, falar-lhe, mas antes que o pudesse fazer, surgiu por entre a escuridão um daqueles monstros que me perseguiam e derrubou-me violentamente no abismo, caindo ele junto comigo. Mas minha queda no precipício também foi insólita: eu caía, muito lentamente, quase que flutuando. Mas caía...

Porém, aquele que me empurrou já havia caído. Ouvi o baque fúnebre de sua queda. E logo depois, discerni caindo todos os outros seres diabólicos que me perseguiam, dezenas deles, pessoas monstruosas que submergiam no mar de trevas com uma velocidade vertiginosa, tanto que rapidamente passaram por mim, que me mantinha em minha queda canhestramente lenta.

Enquanto eu caía pairando, transcorreram alguns segundos, e então ouvi um aterrador baque que me gelou o espírito. Era o som dantesco da queda dos monstros... Porém, estranhamente, mesmo sabendo que cedo ou tarde eu também deveria atingir o fundo daquele báratro, não me desesperei. E simplesmente pelo fato de que dirigindo minha atenção para os escuros olhos violetas daquela que na beira do precipício me observava, percebi que ela sem dúvida faria algo para evitar minha queda... Sim, eu possuía essa certeza, aquele ser feminino não me deixaria cair naquele abismo... Ou deixaria? Bem, seja como for, isso já aconteceu... Ou seja, ou eu caí, ou fui salvo. E este relato foi escrito. Resta saber em que condições? Na escuridão do precipício ou sob a luz dos olhos dela?...

06 março 2008

Eu Amo a Humanidade

Estão completamente enganados aqueles que dizem que eu odeio a humanidade. Como poderia odiá-la? Em amo a humanidade infinitamente, meu amor não pode ser maior. Estou certo que a amo mais que vocês todos, afinal, eu amo tudo que não presta. Há muito tenho dito que sou um doente, uma alma enferma que ama o horror, conseqüentemente, amo a humanidade, não cansarei de repetir isso.
Sou realmente apaixonado pelo sangue em suas mais variadas formas, menos dentro dos organismos. Sim, eu adoro ver o sangue derramado, coagulado em lagos cobertos por corvos, o sangue podre fedendo pelas ruas, o sangue de um sapo esmagado a pedradas, todos os tipos de sangue espalhados, seja A, B, O, AB, nos campos de batalha, nas esquinas das grandes cidades, o sangue do assassinato, do estupro, o sangue do trabalhador explorado esvaindo-se por seus poros, o sangue das focas tingindo o gelo do ártico, o sangue com aids, o sangue verde da Amazônia evaporando ao sol, o sangue do petróleo tingindo de negro os mares, sim, eu sou um demente, eu amo todos esses sangues, por isso eu amo a humanidade!
Como não amar a humanidade se é ela que derrama tanto sangue pelo mundo? Se é ela que espalha tanto horror pelas ruas, se é ela que faz as guerras, e das guerras surge muito sangue. Sangue! Eu amo a humanidade porque sou muito cruel, frio e insensível. Adoro ver os animais levando balas nos miolos, de ver os miolos sanguinolentos voarem pelos ares! Esse prazer que sinto é sublime... É a humanidade que estoura esses miolos? Oh sim, é ela, por isso eu amo a humanidade infinitamente, sem ela, como eu iria me divertir? Quando vejo uma criança sendo morta por bala perdida, fico triste quando o sangue dela não respinga (sim, eu disse quando ele NÃO respinga) no meu rosto. Gosto de sentir o sangue no rosto, o sangue quente, e viva a humanidade que mata crianças com balas perdidas! Eu amo a humanidade, não me cansarei de repetir.
Eu adoro campos queimados, matas queimadas, tostadas, devastadas, o chão duro, seco, cinzento, coberto de carcaças de animais tostados, adoro pisar sobre eles, sentir os ossos quebrando, o fedor de carniça, eu amo todo esse horror. Eu sou muito mau, gosto de saber que faço parte da humanidade e que é a humanidade que massacra todos esses seres inocentes. Eu amo tudo que não presta porque eu sou humano e não presto também, por isso eu amo a humanidade. Adoro rios imundos, ares imundos, mares imundos, adoro lixões a céu aberto, adoro valetas fétidas e enfermiças, eu sou mesmo um demônio. Por isso eu amo a humanidade, porque ela suja tudo que vê, a humanidade é formada por porcos, e eu amo porcos também.
Eu amo tudo que é desonesto, injusto e corrupto, eu amo a falsidade e a ganância, a hipocrisia, “ó falso hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”(Baudelaire). Eu vos amo, porque vós sois humanos, e eu amo a humanidade. Amo tudo que chafurda no lodo, amo a miséria, a fome, o medo, amo ver a mãe africana dando terra suja para seu filho comer! Que espetáculo aos meus olhos diabólicos e humanos. Eu sou realmente muito mau, e sinto um deleitoso prazer ao contemplar meia dúzia de políticos enriquecendo às custas de todo um povo de ignorantes retardados fãs de bigbrother. Isso é digno da humanidade. E eu a amo muito e com orgulho.
Eu sou um diabo, e por ser um diabo amo todas as religiões que prometem o céu, porque o homem crendo que tem o céu, não precisa melhorar, e continuam os merdas de sempre. Eu amo isso tudo, essas religiões que são Robin Hood ao inverso: roubam dos pobres pra dar aos ricos. Amo toda essa mentira porque mentir é humano e eu amo a humanidade.
Eu amo tudo onde não há amor, eu odeio o amor, porque o amor não faz parte da humanidade, e eu só amo a humanidade, não cansarei de repetir isso. Amo todos aqueles que não puderem se amar, amo os que não se amaram, os que não deixaram que se amassem, amo os que não souberam ou não quiseram amar, e a humanidade ama não amar, por isso eu amo a humanidade. Amo! Enfim, eu amo o fim deste planeta, de toda vida que há nele, amo a destruição total e absoluta de tudo. E a humanidade está fazendo isso muito bem... Por isso eu amo a humanidade. Eu, definitivamente, não presto.