- Então ele está vindo?
- Sim, está se aproximando.
- Tens certeza?
- Absoluta.
- Como podes ter tanta certeza?
- É que é uma questão matemática, de cálculos que já foram realizados com certa exatidão. Além do mais, é o que dizem as antigas tradições.
- Ainda que tais tradições estejam perdidas no tempo?...
- Principalmente por isso.
- Sim, mas fora isso, se tu dizes que é também uma questão matemática, é algo que não pode ser contestado.
- Precisamente.
- Então me diz, se os cálculos já estão realizados, a data da vinda dele já deve estar determinada, não?
- Não, a data não, não há como prever a data de sua chegada, por mais que os cálculos estejam exatos, porque estamos lidando com números muito altos, cuja menor variação pode ocasionar uma alteração em muitos dias, até meses, talvez anos. Poderíamos até mesmo falar em variações de décadas.
- Décadas?!!
- Sim, poucas décadas.
- E onde ele estaria agora?
- Isso eu não posso precisar, mas em algum lugar relativamente próximo. Entendes quando eu falo em “relativamente”, não é mesmo?
- Sim, sim, creio que posso compreender...
- Mas a questão não é tanto a data em que ele chegará. O que seria essa data para ti? Quando tu pudesses vê-lo ao vivo e em cores?
- Sim, naquelas cores fatais de que tu já me falaste...
- Sim, naquelas cores fatais, perigosas, sanguinolentas...
- Pois é, sim, eu acho que seria isso mesmo, vê-lo, digamos... pessoalmente.
- Entendo, mas tu tens que perceber o seguinte: a data a que me refiro não seria necessariamente essa, de vê-lo “pessoalmente”, creio que seria até mesmo antes, é uma questão relativa, mais uma vez. Isso a que tu te referes, de ver pessoalmente, de uma forma absolutamente clara, já seria um fato extremo, em que provavelmente tudo já estará consumado, ou a caminho definitivo da implacável consumação.
- Queres dizer que antes da sua chegada tudo já terá ocorrido?
- Sim e não. Talvez o mais importante já tenha acontecido, mas não tudo. Também não se pode prever, estabelecer com exatidão o que ocorrerá em tal momento, se será um pouco antes ou um pouco depois, mas o certo é que tudo ocorrerá no momento que for julgado como mais adequado. E tal pode ser dar quando se espera alguma coisa ou quando não se espera absolutamente nada. A segunda hipótese é a mais provável.
- E, como já me disseste, serão acontecimentos graduais?
- Exatamente, agora tu mencionaste uma palavra fundamental: “graduais”. Isso é essencial, compreender a questão da gradação dos acontecimentos. É algo que depende substancialmente do ponto de vista.
- Como assim, do ponto de vista?
- Se tu estiveres envolvido nos acontecimentos, terás dificuldade de perceber o seu desenrolar, a sua evolução. E quanto maior é o envolvimento, menor será a capacidade de percebê-los. Por isso, é vital manter certo distanciamento. E quanto mais for possível esse distanciamento, tanto melhor. Claro que consegui-lo não é tarefa das mais fáceis.
- Admito que não estou entendendo...
- É um pouco complicado de explicar, mas vou tentar explanar melhor. Distanciar-se, não física, mas mental, psiquicamente, é, neste caso, mudar de ponto de vista. Nesta intrincada questão, todos nós, seres humanos, a princípio, partimos do mesmo ponto de vista quanto à sua chegada e aos acontecimentos que ela acarretará. E temos esse ponto de vista em comum porque estamos dentro dos acontecimentos. Somos partes dele. Suas vítimas. Por isso não os percebemos como deveríamos. No momento que desenvolvermos nossa consciência e nossa capacidade observativa (que, no fundo, consistem na mesma coisa), poderemos captar determinadas transformações que indicam claramente que os fatos estão realmente ocorrendo e que são causados pela chegada dele. Poderemos realizar inferências relativas a isso.
Não podemos ficar de fora dos acontecimentos trágicos, mas podemos identificá-los bem mais apropriadamente. Creio que com este exemplo deixarei mais claro: imagina uma pessoa que está se viciando em uma droga. Na grande maioria das vezes, como ela está por demais envolvida em seu vício, não irá perceber que está se viciando, a não ser quando surgirem os seus efeitos e consequências inconfundíveis e irrevogáveis. Mas quem está de fora, seus amigos, seus parentes, irão se dar conta, desde o princípio, que a pessoa está se viciando.
- Ah sim, agora começo a compreender...
- O problema da humanidade é permitir-se envolver-se demais pelas coisas que acontecem com ela, é como se deixassem se hipnotizar. E assim não percebem os acontecimentos, tornam-se vítimas de todas as circunstâncias. Quando forem dar-se conta, já será tarde demais.
- Sim, entendo... Mas... o que fará a humanidade?
- Talvez o melhor seja acostumar-se à sombra.
Essas falas dão vontade de falar...
ResponderExcluirE, acostumando-se à sombra, saberá o homem libertar-se de si mesmo? Bom, é inegável que vc tem um humor dos mais finos. Será que todos os dias compartilharei um texto seu? Faço-lhe um convite: entre para o grupo "A tela e o texto" do facebook. Há muitas pessoas que amam literatura lá (creio que todas). Termos um bom escritor como um dos membros será bastante enriquecedor.
ResponderExcluir