24 janeiro 2014

"Sinto o ar de outros planetas" no Quarteto n°2 de Schoenberg

Música e Literatura sempre andaram de mãos dadas. Desde os tradicionais lieder e óperas até as peças incidentais, balés, poemas sinfônicos etc.  Uma das mais inusitadas união entre música e literatura foi a inclusão de um poema cantado por uma soprano no Quarteto para Cordas n°2, Op.10, de Arnold Schoenberg (1874-1951), escrito em 1908.

Até então, um quarteto para cordas, assim como a sinfonia antes da 9ª Sinfonia de Beethoven, era exclusivamente instrumental, sem interferências vocais. Schoenberg  quebrou o paradigma incluindo uma soprano que canta o poema Êxtase do poeta alemão Stefan George (1868-1933) nos dois últimos movimentos da obra. O texto do poema, de características simbolistas e expressionistas, de versos sem métrica, é perfeitamente adequado à obra de Schoenberg, que é uma peça de transição do tonalismo para o atonalismo, o próprio quarteto vai se tornando cada vez mais atonal conforme se aproxima do fim (música atonal é aquela em que não há um tom, uma tonalidade predominante, quebrando, assim, a estrutura clássica em que se insere a música ocidental). Schoenberg foi um dos pioneiros da atonalidade.

O início do poema de Stefan George, "Sinto o ar de outros planetas", nos dá uma ideia bastante sugestiva daquela sensação de estranheza e obscuridade que a música atonal de Schoenberg nos passa, onde a quebra do centro tonal relaciona-se com a ausência ou diferenças de gravidade de um outro planeta ou de outras regiões do espaço, e ainda a ausência de referenciais terrestres do eu-lírico pode também relacionar-se à ausência de tonalidade, principalmente nos últimos movimentos, como sugere o poema em alguns trechos, tais como: "eu me desprendo em sons...", "sinto como se nadasse acima da última nuvem..." "E árvores e trilhas que amo me faltam/ De modo que mal as reconheço..." Música e Literatura envoltas em mistérios cósmicos. 

Abaixo, o poema de Stefan George:

Êxtase

Sinto o ar de outros planetas.

Os rostos, gentilmente voltados para mim, desvanecem pálidos na escuridão.

E árvores e trilhas que amo me faltam

De modo que mal as reconheço; e tu, brilhante e

Amada sombra – chamado de meus tormentos –

Agora estás apagada, extinta em ardor profundo

Para, depois da vertigem de um frenesi belicoso,

Animar-me com um piedoso arrepio.

Eu me desprendo em sons, circundando e tecendo infundados agradecimentos
[e impronunciáveis elogios.

Entrego-me ao Destino sem temores.

Quando me sobrevém uma impetuosa dor,

Na embriaguez da solenidade, onde imploram
[aos gritos

As rezadeiras, jogadas à poeira:

Então eu vejo como nuvens perfumadas de neblina
[se elevam

Em uma amplidão clara e ensolarada,

Que cerca apenas os cumes mais distantes das
[montanhas.

O solo treme branco e macio como coalhada...

Eu escalo penhascos pavorosos e

Sinto como se nadasse acima da última nuvem,

Em um mar de brilho cristalino –

Eu sou apenas uma fagulha do fogo sagrado.

Eu sou apenas um murmúrio da voz sagrada.

Stefan George

(Na imagem, Schoenberg pensando em como fazer mais música estranha.)



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