16 dezembro 2013

Esta é a Tua História Real (ou O Pesadelo) - Final

As cédulas serão necessárias para o necessário investimento. Tudo na vida é investir no futuro, sempre foi teu pensamento, tua filosofia. Futuro que talvez não chegue. E a tarde vai passando. O momento vai passando, e com ele o que se convencionou chamar de vida. Passando como se não passasse. Ou como se passasse de forma total e devastadora. E não deixaste nada de nada. Como se não fosse nada. Mas sendo tudo para ti. O tempo morreu. Foste tu que o mataste.

Finalmente, o instante de deixar o escritório. Alívio. Dever cumprido. Poder pensar em outras questões... Talvez mais profundas... Talvez mais sublimes... Mas o que há de mais profundo e sublime que o trabalho? E aquele relatório, que não há maneira de concluir, não te abandona a racionalidade. Sempre foste um homem racional. E como ser de outra forma? Ser racional é saber o certo. E o que é certo? É o que é, dirás, o que convencionamos, nós como humanidade, determinar como certo, correto e que dever ser feito, ser seguido porque assim é. É o sensato. Não pode ser outra coisa. Qual outra coisa poderia ser? E jamais se finda aquela angústia de ter que fazer o que tens que fazer pelo simples fato de que tens que fazer.

É o que pensas enquanto conduzies dormindo o veículo pelas ruas povoadas. Dormindo não de dormir, embora com os sonhos já sonhasses. Com os sonhos não da vida, mas do sono. Pouco sono, aliás. Que o teu pesadelo voltará... Tu sabes. Mas os sonhos da vida... Estes não germinam na alma empedrada de compromissos.

Na avenida de intenso movimento, um acidente. O motorista da moto morreu. Contemplas como se nunca irás morrer. Com piedade do morto. Mesmo não sabendo o que acontecerá com ele agora. O que acontecerá com ele agora? O homem pensa em tudo para ter uma vida cada vez mais cômoda. Mais tecnológica. E lógica. Tudo deve ser lógico e confortável... Para isso o dinheiro. Para explicar tudo. Aliás, amanhã deves comprar um sofá novo. Dás duro para isso. Mereces. Mas o motoqueiro morreu. O vermelho do sangue no calçamento. Para onde ele haverá de ir? Acabou? Foi no que pensaste, sem querer. Sabes? Não queres nem saber. Um pouco de medo, nada mais. Rapidamente substituído pelos olhos da moça do escritório. Rapidamente substituídos pelo relatório de amanhã.

Chegaste. Belíssimo jardim ostenta tua casa. Mal pisaste nele desde que foi construído. Para não matar as gramas, argumentas para ti mesmo. Sabes que mentes. Mas nem pra ti admites. Para não matar teu tempo. Tempo é trabalho. Exausto, a cerveja desce aliviando teus músculos e nervos. Isso é reconfortante. Ainda antes da academia, para revigorar. Uma latinha apenas.

Tua esposa também chegou. Os olhos da moça do escritório são mais doces que o da tua esposa. Aliás, ela também está muito cansada. Até porque recém chegara da academia. Agora é a tua vez de ir. Beijo no rosto. Tchau. De carro para a academia. Por que não a pé? A violência. Estás certo. A violência das grandes cidades não combina com a preservação ambiental. Nada combina com a preservação ambiental. Principalmente o homem. Principalmente o mundo de que o homem necessita. Mas não é coisa para se pensar agora. É coisa para se pensar no nunca. Agora pensarás na academia, pois já estás nela. Ou melhor, nem na academia, mas no relatório de amanhã. E agora nos olhos da moça. E então no sofá novo que tens que comprar. No dinheiro que estão te devendo. No crescente da tua empresa. Estás conseguindo. Mesmo. Só não consegues o que não sabes que queres.

Exercitar-se é um saco, pensaste. Já não aguentas mais. Mas é necessário. Assim como trabalhar. Não fossem os exercícios, talvez a moça do escritório não teria te olhado. Ainda assim, terias bolso. Sim, talvez ela tivesse te olhado mesmo sem academia.

Em casa, outra vez, que alívio. Fazes todas as coisas do dia querendo que elas passem logo, até que venha a hora de se deitar e dormir. Mesmo assim és feliz, dizes. E como nos dias de hoje dizer-se que não se é feliz? Um crime. Imperdoável. Pensas agora em algumas impossibilidades da vida. Rios límpidos e serenos emitindo sinfonias aéreas e reflexivas. Tranquilizantes. Como gostarias de estar tranquilo neste momento. Quanto pagarias para isso? Os sons aéreos dançantes de tudo que não podes. E eles queimam rápido naquilo que tu sentes. Quase nem conversas com tua mulher. Nenhum dos dois está com alguma disposição de diálogo.

Mas é noite, e a noite nunca tarda, e a noite é um réquiem. Descanso. Delicioso jantar escorreu mecânico pelo teu organismo. Até te sentiste um pouco mal. O jeito foi deitares mais cedo do que o habitual, mesmo com o medo do pesadelo... Na noite que convidava ao amor... Que espécie de amor? O que sentes pela tua esposa? Sentes? Ou é o desejo que se intensifica pelo olhar da moça do escritório? Não sabes. Mas certamente era esse tipo de amor que a violência emocional em silêncio da noite te convida. O sonho...

Dormiste pensando em coisas importantes... No relatório de amanhã, por exemplo. No sucesso da tua vida, sem dúvida, plena de sucesso. Mas o pesadelo te despertou. Pesadelos têm por princípio despertar os homens que dormem. Agora, o silêncio da noite era fúnebre. Havia algo de estranho pairando no ar. Pensaste lento em coisas distantes. O pesadelo foi, como sempre, de um mistério inquietante. Mistério era tudo o que respiravas agora... Estavas certo que nele, alguém ou algo chamou teu nome. No pesadelo, tu não eras tu. Tu fingias que era feliz, mas sabias que não eras. Tentavas enganar a ti mesmo. Em outro momento de teu pesadelo, enlouquecias, eras o mais insensato dos homens, e então te sentias bem.

Acordava sempre imerso na dúvida. Alguma coisa esquisita vibrava em tua alma. Lembravas da música do pesadelo. Estavas certo que era Bach, mesmo não conhecendo quase nada de Bach. Talvez não fosse pesadelo, talvez fosse um sonho mirífico. Não sabias. Alguém batia na porta, pesadas batidas. Não tinhas coragem de atender. Sinuoso e enigmático. Densificou-se  tua respiração. Algo de impalpável te alarmava.

O sopro das narinas em sono de tua mulher intensificava a tensão. Algo de oculto flutuava no desconhecido da noite. O Desconhecido... Soava uma voz de fêmea. O mistério que te falava e que eternamente sustinha suas asas negras sobre tua alma. Que crescia e te fitava nos olhos, em paroxismos e apoteoses, falando-te de tudo que nunca fizeste. Que nunca viveste.

Mas amanhã é dia de trabalho. Isso é o que fazes. Trabalhas para um algo. Sejamos sinceros: na verdade nem sabes para que trabalhas. Deves dormir. Isso é o que sabes. Tentando esquecer o pesadelo, conseguiste.

Passaram-se horas. Acordas para o teu novo dia. Novo... Como será o teu novo dia? Basta que releias esta história, que é a tua história. Serão bem poucas as variações.

(Este conto foi reelaborado e republicado.)


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