29 outubro 2013

Fragmento Absurdo de Uma Existência Futura nº5 - Quatro Golpes de Pá na Cabeça

Não se podia falar sobre o assunto. Nenhum comentário. Ninguém podia. Nem nas ruas nem em qualquer outro local público. Até mesmo em casa era perigoso. Quem o fizesse seria preso de imediato, caso fosse descoberto. O que não era algo difícil de acontecer, pois os malditos agentes e espiões do governo estavam por toda parte.  Havia escutas em todos os lugares. Era a lei do novo governo mundial. Foi necessário centralizar o governo da humanidade para, diziam eles, evitar que o pânico injustificado e errôneo se espalhasse por todos os cantos do planeta e então imperasse o caos. Qualquer um que falasse do assunto era considerado criminoso porque com sua irresponsabilidade alarmista e desinformada estaria espalhando um pânico talvez fatal por entre a população pouco esclarecida. Essa era a justificativa deles. Dos membros do governo mundial.
Claro que o governo mundial era formado por membros dos países ricos. Ou que se achavam ricos. A interminável e crescente crise econômica, a cada dia agravada pela aniquilação ambiental e pelas definitivas e radicais alterações climáticas, vem fazendo tabula rasa das “potências” mundiais. Países subdesenvolvidos, desenvolvidos, em desenvolvimento... Não faz mais sentido. Tudo faz parte da mesma merda.
Uma puta de uma mentira, é claro. Primeiro que o caos já impera absoluto há muito tempo. Segundo que o pânico não só é justificável como somente imbecis mantêm-se calmos diante da situação absurda em que nos encontramos como espécie, acreditando nas besteiras estúpidas dos governos e de suas ciências falidas. Imbecis, ou então pessoas que alimentam uma indiferença suprema, como a minha. Pouco me importa que a humanidade inteira apodreça. Talvez seja o que merecemos.  A civilização há tempos vem cavando sua sepultura. Uma hora tem que cair no buraco que cavou.
Mentiras deslavadas, falsas verdades, silêncios impostos a força (com subornos, ameaças, prisões ou mortes, por exemplo), versões distorcidas, engenhosas histórias inventadas, farsas escancaradas, belas e luminosas teorias sem pé nem cabeça, ocultação de fatos, enfim, o arsenal para manter a população sob controle  não tem fim. Mas começa a ruir, e as coisas começam a se acelerar. Há coisas que já não se pode esconder.
Principalmente, depois daquele colossal terremoto em terras do Primeiro Mundo. Ou do ainda chamado “Primeiro Mundo”. Mais de 400 mil mortos. Que se sabe. E mais algumas dezenas de milhares de desaparecidos. Talvez centenas. Foram pegos de surpresa.  Não paravam mais de achar corpos. Até que desistiram de procurar. Procurar mais seria fazer a população se chocar e sofrer desnecessariamente. Diziam. Já estavam mortos mesmo, fazer o quê? Que importava encontrar ou não agora seus corpos.
A ciência, já em franca decadência, não havia previsto nada. Ou, se previu, escondeu, acreditando que conseguiria evitar o pior. Eles sempre tentam evitar o pior. Ou melhor, dizem que tentam evitar o pior. E que trabalham em prol do bem da humanidade. Tudo fachada.  Conversa fiada para os palhaços. Trabalham para manter o status quo das coisas. Ou seja, dominantes e dominados, os que produzem e os que consomem, os que lucram e os que pagam. E consumir, basicamente, é o grande ideal da humanidade do século XXI. Poder consumir sempre e mais. E os que produzem convencem muito bem de que se deve consumir sempre e mais. Mas uma hora tinha que explodir. Só ninguém, ou quase ninguém, esperava que fosse do jeito que está sendo. Os filhos-da-puta ainda tentam mascarar com inúmeros atos sórdidos. Mas não está dando. Ele já está muito perto.
            Bom, mas eu falava naquele terremoto. Aqui na cidade miserável onde vivo também houve um. O primeiro da história nesta região. Não foi, obviamente, tão intenso quanto aquele na Europa. Mas matou gente, centenas delas, soterradas pelas ruínas de prédios. Minha casa não chegou a ser afetada. Mas me ofereci como voluntário para ajudar a socorrer os milhares de feridos. Cheguei a resgatar, ou tentei resgatar, uma menina de não mais que seis anos de idade dos escombros. Sua perna direita estava presa por umas ferragens gigantescas. Não havia como tirá-la dali. Eu estava sozinho. Chovia. Tive que serrar sua perna na altura do joelho. Eu havia trazido algumas ferramentas de casa, entre elas minha serra de açougueiro. O sangue esguichava na minha cara. Os berros da menina eram insuportáveis. Serrei a perna e tirei-a de lá. Carreguei-a sangrando por quase um quilômetro em busca de ajuda médica. Não encontrei nenhuma. Pensei em levá-la para minha casa. Mas seria inútil, eu não poderia fazer nada e ela morreria em poucas horas. Então, exausto, larguei seu corpo e disse a ela. “Mocinha, não tem jeito, nem eu nem mais ninguém pode te ajudar”. Ela ainda chorava, chamando pela mãe, quando morreu.

            Prossegui caminhando pela região do desastre. Já quase mais ninguém ajudava a encontrar sobreviventes. Talvez não houvesse mais. Parei quando uma mãe se escabelava pelo filho morto esmagado. Gritava desesperada:

             - Aqueles desgraçados, eles são culpados da morte do meu filho, matem aqueles desgraçados, me ajudem, façam alguma coisa! Eles são culpados, dizendo merdas, aqueles desgraçados, matem eles, sempre mentindo, sempre dizendo que tudo está bem, que tudo está sendo controlado, mentirosos filhos-da-puta, alguém mate aqueles desgraçados, pelo amor de Deus, ajudem uma pobre mãe!

Então, em poucos minutos, surgiram três homens com uma pá. Eram homens do governo. Agarraram a pobre mulher pelos braços e pelos cabelos, arrastaram-na até um canto escuro. Não perceberam que eu os observava. Mataram a mulher com uns quatro golpes de pá na sua cabeça. Depois, encheram de ferimentos seu corpo e cobriram-no de barro. Assim, ela pareceria ter sido tão somente mais uma vítima do terremoto. E a polícia não investigaria mesmo.

         A mulher havia falado demais num lugar público. Mesmo que não houvesse ninguém naquele merda de lugar devastado, sempre se corre o risco de alguém ouvir. Eu, por exemplo, ouvi. Tive a sorte de estar escuro e de não me verem. É como eu disse. Ninguém pode falar nada. Deve-se fingir que não se percebe o que está ocorrendo. Mas não adianta mais. Ele já veio, já está visível. Não sei que tipo de mentira estão dizendo agora, não tenho mais acompanhado as notícias fajutas do jornais, todos controlados pelo governo mundial. Mas a farsa está ruindo como aquele prédio ali adiante. Aliás, quando o prédio cair, aqui, deste ângulo em que estou, dará para vê-lo, triunfante.

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