Fumando mais um cigarro, sentado no
horror da minha cozinha, recordo-me, em deprimente indiferença (uma suprema
indiferença tem sido a tônica da minha vida), os tempos em que eu assaltava
bancos com meus amigos. Bons tempos.
Agora devem estar todos mortos. Eles, meus familiares e aquelas mulheres,
poucas, bem poucas, que amei. Ou quase isso. Na verdade, nem sei se estão
mortos ou não. Nunca mais soube deles. Nem tenho como saber, por mais que eu
deseje. E também, agora, já nem desejo
tanto assim. De que adiantaria? Mas devem
estar mortos, é o lógico, dadas as circunstâncias. E em breve eu também estarei
morto, é só uma questão de tempo. Sinto-me realmente doente. Não sei de qual
doença se trata, é tudo tão confuso, uma reunião de sintomas de que nunca ouvi
falar, sobre os quais nunca li, mesmo com os razoáveis conhecimentos de
medicina que possuo.
É como se minha pele ardesse e
coçasse, saindo pequenas feridas purulentas em várias partes do corpo. Meus
olhos ardem e estão sempre vermelhos. Às vezes, tenho pequenos sangramentos do
nariz, dos olhos, das feridas da pele. Meu catarro grosso e amarelado volta e
meia está manchado de sangue. Seguidamente, tenho febre. Por vezes, alta. Minha
cabeça dói. Tenho tonturas, vertigens. De vez em quando, algum tipo de alucinação.
Além de outros sintomas menores. Deve ser alguma doença oriunda da água
contaminada ou da comida apodrecida. Ou, talvez, levando-se em conta os
problemas de pele, pode ser efeito da radioatividade. Afinal, ela deve estar
muito alta nessa região. E não só aqui, obviamente. Aliás, a doença não deve ser A doença, mas AS
doenças. Devo estar com um monte de merda em meu corpo. Só sei que não é aquele
vírus que dizimou a cidade, porque o principal sintoma da epidemia era
diarreia, e isso, pelo menos, eu não tenho. Ou também pode ser uma mutação do
vírus, sei lá. Mas enfim, agora, o que importa? Como sei que não há forma de me
curar, ainda que eu soubesse do que se trata, aguardo a morte. E mesmo que eu
pudesse me curar, viveria pra quê?
Seja como for, a doença não me tirou
o apetite. Tenho fome. E muita. Agora mesmo, estou pensando no que vou comer. Há
meses, eu e alguns vizinhos, que já estão mortos, saqueamos todos os
supermercados da cidade. Eu e meus vizinhos fomos os únicos que sobrevivemos
após a epidemia do vírus desconhecido. O vírus havia contaminado a rede de água
da cidade, mas nunca bebíamos água da torneira. Bebíamos de um grande poço
artesiano que mantínhamos em conjunto. Quando a população inteira foi morrendo
rapidamente, defecando sangue e pedaços de órgãos, isolamo-nos em nossas casas,
bebendo água somente do poço e nos alimentando de nossos estoques. Mas, quando
os estoques acabaram, tivemos que sair para procurar comida.
Nas ruas, cadáveres e mais cadáveres,
todos mortos, todos. O fedor era insuportável. É interessante notar como a
necessidade imperativa, imediata, de alimentos parece debochar daquilo que
chamamos de “humanitarismo”, “compaixão” “amor ao próximo”. Pisando por entre
cadáveres, sofríamos com a morte de outros seres humanos, muitos, conhecidos
meus, mas isso não impedia que corrêssemos por entre eles esmagando
involuntariamente seus crânios ou afundando os pés na sua carne apodrecida, ou
chutando seus corpos para abrir caminho o mais rápido possível, sem
absolutamente nada daquilo que chamaríamos “respeito pelos mortos”. E quanto
aos meus vizinhos, em nenhum momento eu pensei em auxiliá-los na busca por
alimentos, ou em dividir parte do que eu tinha conseguido saquear. Muito pelo
contrário, era cada um por si, e o que conseguíamos pegar antes que algum outro
pegasse era comemorado como uma gloriosa vitória. Naturalmente que brigas
existiam, e violentas. Eu mesmo tive que matar dois de meus vizinhos. Quando
digo que tive de matar, era porque a questão era simples: ou eles ou eu. O primeiro,
matei com um espeto que estava ao meu alcance em um supermercado, pois
disputávamos os últimos pedaços de carne fresca. O segundo, estourei os miolos
com minha pistola, para poder ficar com um imenso estoque de frutas secas que
ele tinha roubado.
De modo que agora, logo ao acabar de
fumar meu cigarro, comerei algumas nozes. É curioso notar a forte semelhança do
formato interno das nozes com o cérebro humano. Mais interessante ainda é o
fato de eu ter obtido essas nozes estourando o cérebro de um dos meus vizinhos,
com o qual eu até mantinha uma amigável relação. Remorso? Que nada! O que significaria agora o remorso? Fiz o que
deveria ter feito. E isso é tudo. Valeu a pena pelas nozes que comerei agora.
Obrigado Al Reiffer por ter aderido ao meu blog. Seja bem-vindo e volte sempre. Aquele abraço.
ResponderExcluirCrisjoli Fingal
Que conto - eu diria pra mamãe
ResponderExcluireu nem lhe conto
um dos gêneros que mais gosto
e este esta um horror de lindo
estupendo
se permitir vou lê-lo na minha sala de aula
quando passar o documento arte do Solon
mui belo
Luiz Alfredo - poeta
Al, querido, seu texto é tragico porque retrata os absurdos das mentes doentias que querem enfrentar políticas internacionais pondo fim a vida de inocentes.
ResponderExcluirBjs