No
meio da mata, durante a manhã, ele delirava. Já há tempos. Digamos que
perambular solitário entre a natureza, sonhando, fantasiando, delirando por
entre riachos, lagos, bosques, prados era o seu hobby. Uma das poucas coisas
que ainda lhe davam prazer. Ainda não afundada na indiferença apática que vem
dominando sua psique de forma lenta, insidiosa, mas inexorável.
Pela
tarde e à noite, trabalhava enfurnado em um escritório de uma grande empresa do
ramo da informática. Conhecia tecnologias de ponta. Avançadíssimas. Não podia
reclamar do seu salário. Muito menos, do status e das vantagens que sua
profissão lhe proporcionava. No entanto, como tudo isso era maçante, tedioso, insípido, sem graça. Todos os dias, a mesma coisa. Uma rotina massacrante. De
vez em quando, surgia uma variação, mas era apenas para perturbar seus já
dilacerados nervos.
Em
seus breves momentos de descanso, em que poderia usufruir de seu dinheiro e dos
inúmeros bens materiais com ele adquiridos, ou estava tão cansado que não tinha
a mínima energia para fazê-lo, ou eram tantas e tamanhas as preocupações
profissionais, as ânsias com relação ao futuro, à família, que mal se recordava
que deveria se divertir e aproveitar os instantes de lazer. Com o tempo, o
lazer passou a ser não um momento de descanso, mas uma obrigação moral ou um
ato mecânico Se ganhava tanto financeiramente, deveria aproveitar o dinheiro de
alguma forma. Sentia-se obrigado, ou simplesmente impelido a fazer alguma
coisa. Mesmo que no fundo preferisse não fazer nada.
Em
algumas manhãs, contudo, quando conseguia instantes de folga, partia para sua
propriedade no interior do município para realizar suas habituais caminhadas.
Somente então se sentia liberto. E sonhava. O sonho puro, o sonho pelo sonho, o
sonho sem esperança. Era o único momento em que realmente sonhava em toda sua
vida.
Contemplava
sem paz, fumando cigarro atrás de cigarro, as águas e as pedras dos rios,
imaginando ou delirando, que eles estavam ali cumprindo a sua função com um
objetivo perfeitamente estabelecido, havia um sentido absoluto para suas
existências. E ele imaginava, na fantasia absurda, que um dia, todas essas
águas, essas pedras e essas rochas, essa areia iriam se tornar esplêndidas
plantas, magníficos vegetais. Esse seria o sentido da suas existências. Se era
irreal ou não, pouco lhe importava naqueles instantes.
Não
ignorava o absurdo do seu pensamento, porém o alimentava e se satisfazia nele com
imensa volúpia, em um prazer análogo, para ele, ao ato de fumar.
Permaneceu
nesse delírio por alguns longos minutos, ao cabo dos quais passou a observar em
profunda compenetração todas as plantas ao seu redor, fossem elas musgos,
arbustos ou gigantes e seculares árvores. Encontrava-se, agora, no segundo
estágio de sua fantasia. Sentado sobre a grama bem ao centro de uma pequena
clareira na mata, imaginava que todas aquelas plantas viviam, existiam com um
sentido plenamente claro e definido. Um dia, por processos misteriosos que ele
mesmo não conseguia engendrar em sua mente, e nem desejava, aqueles vegetais
todos deixariam de ser vegetais para ascender na hierarquia da evolução.
Transformar-se-iam em animais de diferentes espécies. Seria esse, nos seus
pensamentos delirantes, o objetivo, ao menos um dos objetivos, de existirem
todas aquelas infinidades de plantas. Era algo como uma preparação para a
ascensão a um nível superior.
E,
finalmente, no último estágio de sua estranha fantasia, aquele homem cansado,
exausto de sua vida e de si mesmo, consolava-se perambulando e observando, ao
máximo que lhe era possível, os animais pelos quais passava ou que passavam por
ele. Divisava aves de diversas espécies, alguns lagartos, borboletas, cigarras,
macacos bugios, lebres, graxains etc. E para o caminhante em seu sonho absurdo,
esses animais e todos os outros que habitam a face terrestre existem e concretizam
suas vidas tendo em vista um único ponto: o de em algum momento oculto entre os
desígnios universais tornarem-se seres humanos. Sim, no seu delírio, talvez até
loucura, consistia nisso o sentido de, para eles, animais, existirem.
E
concluídas tais fantasias e divagações ilógicas, quase oníricas, quase insanas,
aquele homem deveria voltar para sua vida comum de ser humano que já beirava o
insuportável. E, mergulhado em densa melancolia, ele retornava para o seu
trabalho, que era o único sentido de sua existência, e não só da sua.
Perguntava-se a si mesmo qual seria, afinal, o sentido da vida humana. No seu
sonho fantástico, os animais viviam para um dia ascenderem a seres humanos. E
os humanos deveriam ascender ao quê? Ou não deveriam ascender a nada? Ou,
talvez, devessem descer? Ser um homem para ser o quê?
E, fumando seu último cigarro, voltou para sua vida sem nenhum sentido.
(Na imagem, o quadro "Caminhante Sobre o Mar de Névoa, de Caspar David Friedrich.)
Parabéns, Reiffer, pelas profundas divagações existenciais.
ResponderExcluirDe fato, viver e entender a vida, às vezes, é complicado! Ou somos nós que a complicamos?
Palmas, muitas palmas para o texto.
ResponderExcluirbeijos!!
A história, a meu ver, meio conto, meio prosa poética (aliás, sempre vejo um pouco de prosa poética no seus contos), realmente nos faz refletir. Texto bastante profundo, sem ser prolixo, de uma densa simplicidade. Abraço.
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