Eu convenci este primeiro indivíduo de tal forma que ele se convenceu que as minhas idéias eram, na verdade, suas, que ele sempre pensara assim, mas que apenas nunca havia expressado a outros. Nem a si mesmo. Para ele, era algo que jazia nas profundezas de seu subconsciente. Bastava o seu descobrimento. E então, uma vez tendo descoberto (era assim que ele pensava), resolveu-se por expressar, cheio de entusiasmo, de orgulho, com o ego totalmente inflado, absolutamente cheio de si. Que gênio! Tendo ideias tão novas, tão revolucionárias, tão convincentes... e tão humanas... O que as pessoas não fazem por orgulho, por vaidade... ? Eu sempre soube manter as pessoas inflamadas no incêndio do orgulho. E, orgulhoso, aquele imbecil acreditava que irradiava para outros as “suas” ideias, não as minhas. E assim, muito bem convencido e entendendo perfeitamente tudo o que eu quis dizer sem dizer, foi o meu primeiro porta-voz, sem saber que o era.
Ah, as verdades agradáveis... Mas o que seria uma verdade agradável? É aquela que não condena, mas que aceita, perdoa e compreende tudo. E mais ainda, é aquela que julga como correto o que se julga em geral como errado. Não em totalidade, mas parcialmente. Como disse, uma verdade agradável está sempre cercada de agradáveis mentiras. Eu nunca me pronunciei contra qualquer verdade generalizada. Isso seria um comportamento estúpido, pois seria rechaçado de imediato. Há que se ir contornando a situação, envolvendo as vítimas com a sedução das verdades agradáveis.
Uma verdade agradável concordará inicialmente com todas as verdades, para depois, com as mentiras intimamente a ela ligadas, ir aos poucos, bem as poucos, muito gradualmente, de forma imperceptível, distanciando-se da verdade primordial. Até que acabará por inverter totalmente o que antes era uma verdade absoluta, porém, desagradável. Desagradável porque ia contra o desejo geral das pessoas. As verdades absolutas pretendem ser inflexíveis. A minha intenção era acabar com tais verdades absolutas. O que eu tencionava era transformar desejos aparentemente condenáveis em desejos perfeitamente realizáveis, justificáveis, que sorrissem, que agradassem, que pudessem ser concretizados sem o mínimo sentimento de culpa. E isso sempre foi feito de forma tão sistemática e tão gradativa, através de tantos engodos e enleios em torno de verdades agradáveis, com tão inteligentes e inquestionáveis argumentos, através de raciocínios e teorias tão lógicas e envolventes que duvidar das minhas mentiras tornou-se um absurdo. Qualquer um que duvidasse seria ridicularizado.
Há que se saber agradar, atender aos desejos mais intensos e secretos do ser humano, não importando as consequências. Nunca me importei se o desejo era correto ou incorreto. Correto com relação a quê? O que importava é que ele fosse realizado. Sempre fui um especialista nisso. Mas não era eu quem realizava os desejos. Não, eu incitava, imperceptivelmente, aquelas pessoas a que realizassem os seus desejos mais “culpáveis” de maneira absolutamente livre. E elas realizavam os seus desejos entre elas próprias.
Mas... e se elas não tinham nenhum desejo “culpável”? Aí está outro ponto de minha responsabilidade. Saber criar desejos, criar necessidades, tornar aquilo que antes era desprezível, ou visto como um erro, ou que era sempre evitado, ou, simplesmente, desconhecido de forma completa, em algo intensamente desejável. Incutir o desejo naquelas pessoas constituía-se em um imenso prazer para mim. E, mais uma vez, eu não ditava nada como algo que deveria ser desejado, mas apenas sugeria muito sutilmente para algumas pessoas mais influenciáveis e mais naturalmente corruptíveis que talvez houvesse algo que valeria a pena se fosse desejado. Porque seria facilmente realizável. E traria infinito prazer e satisfação.
E então ensejava no indivíduo o desafio de realizá-lo, com frases tais como esta: “Mas é claro que tu jamais farias uma coisa dessas, eu mesmo nunca fiz, e nunca faria. Quem sou eu para tanto? Eu sou um ninguém. Somente uma pessoa com mais coragem, com mais determinação, com mais força interior seria capaz de fazê-lo. Não acho que tu serias capaz...” E, assim, a pessoa, desafiada e ferida em seu orgulho (o orgulho, sempre o orgulho...), e, também, desejando sobressair-se sobre os demais, por realizar algo até então inédito, considerava como um feito extraordinário a realização daquele desejo, e o concretizava. E, naturalmente, aos poucos, outros foram seguindo seu exemplo.
É lógico que muitas vezes encontrava-se resistência. Muitos se manifestavam indignados, escandalizados, em presenciar a perpetração de atos considerados até então completamente absurdos ou perversos ou imundos ou até mesmo inconcebíveis... De modo que eu, por diversas e diversas vezes, necessitei agir, claro, sempre em segredo, sempre através de uma insidiosa sutileza, para que aquilo que eu queria que os outros fizessem, desejassem, sentissem, pensassem, enfim, estivesse de acordo com a minha vontade. Foi necessário para tanto, recuar alguns passos, retornar às verdades agradáveis, unir um desejo condenável a uma demonstração celestial, “provar” que era possível amar sem abrir mão do egoísmo, sem deixar de lado a realização dos desejos mais intensos, satisfazendo-se sempre, de forma fácil, sem a necessidade de percorrer caminhos tortuosos. É claro que eu sempre agradava.
Eu buscava exatamente essa agradabilidade de se viver. Que todos vivessem assim. Na alegria, na despreocupação, levando a vida de forma leve, sem nenhum peso , sem nenhuma culpa, sem a necessidade de ir-se em busca de feitos ditos grandiosos, belos, sublimes, mas irrealizáveis. Que apenas trariam amarguras e infelicidades. Provei que a felicidade estava apenas na satisfação do desejo do momento. Assim deveriam ser os sonhos. Ou, para aqueles que disso jamais eram convencidos, deixei a alternativa de se satisfazerem exatamente não satisfazendo seus desejos momentâneos. Para receberem uma recompensa bem maior depois. Também é uma forma de se satisfazer desejos. E o que mais poderia fazer sentido?
E foi assim que eu, que nunca existi de fato, aquele que ninguém nunca notou DEVIDAMENTE, obtive a vitória de minha vingança silenciosa e imperceptível. E fez-se, então, a minha vontade. .. Exatamente o oposto do que era no princípio. Entre todas aquelas pessoas. Que nunca viram e nunca veem a minha vontade como se fosse minha. Mas isso pouco me importa. O que me importa é que, agora, a humanidade me pertence.
Fora de série, conto genial!
ResponderExcluir(Y)
ResponderExcluirExtremamente inquietante, e muito bem desenvolvido.
ResponderExcluirChocante!
ResponderExcluirExcelente, Reiffer.
E qual seria a verdade?
ResponderExcluirOu como é a verdade?
É tudo tão subjetivo,
Bjka
Grande texto, poeta!
ResponderExcluirHá verdades que incomodam muito mesmo. atualmente, a verdade de estar sob vugilância dia e noite como os BBBs, me incomoda e nçao nego a ninguém. Sou verdadeira, mas os opositores se armam contra mim.
Vou levando, mas não me desvio da minha verdade.
Beijos
Mirze
Confesso: reli o primeiro e me arrepiei com a sensação amarga nos lábios, como se algo tocasse os preceitos e conceitos e ideais que eu creio. Fiquei com medo e me senti frágil demais, justo eu que tento a todo custo erguer-me diante das intempéries da existência e tentar abrir sempre os meus próprios olhos para tudo que existe de bom ou ruim no mundo. Até mesmo esse conceito de bom e ruim era algo aceitável por mim. Porém seus escritos derrubam minha vaidade e meu besta orgulho de tentar aceitar as coisas como são. Sou como todos, influenciável. Não há como negar isso. E agora, vendo o desfecho, vejo que sou tão frágil em minha existência de hoje como quando vim a esse mundo. É como Berman diria: nada é sólido, tudo se desmancha no ar.
ResponderExcluirParabéns pelo conto!
A humanidade e o dom de escrever.
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