15 agosto 2009

O Triunfo dos Abutres


Minha solidão e meu desconsolo levaram-me a perambular melancólico e sem destino rumo às imensidões nostálgicas do pampa gaúcho. Parti ainda bastante cedo, em um dia frio e ensolarado. Os ares salutares do campo aos poucos foram aliviando o transtorno de meu espírito. Sentia-me relativamente bem contemplando os horizontes onde resplandeciam verdes coxilhas, exuberantes capões de mata, e, vez ou outra, eu atravessava pequenas e límpidas sangas. Minha maior alegria era quando avistava algum animal selvagem, como graxains, seriemas e lagartos.

De modo que lentamente fui avançando pelas pradarias, a locais cada vez mais isolados, onde já não divisava nenhum ser humano. Porém, quando já havia praticamente esquecido de meus infortúnios e decepções, ao sair de um trecho fechado de mata, algo de anômalo e doentio irradiou-se em meu interior.


O cenário que avistei a minha frente divergia de tudo o que contemplara até então. O que avistei não eram mais coxilhas verdejantes, porém uma vastidão de campos cinzentos e ressecados, canhestramente cobertos de nuvens ainda mais cinzentas, que transmitiam uma pungente sensação de dor e desespero. Lá, o sol não brilhava, e ao me aproximar mais do local, percebi que o campo seco apresentava um forte declive logo adiante, que levava a algo como um vale ainda mais sombrio. Tal vale parecia impregnado de altas árvores secas e retorcidas, as quais cercavam um vasto lago de águas lugubremente estagnadas.


Nesse instante, um sentimento de absoluta e devastadora tristeza apossou-se de mim. Um furacão de sensações febris e perturbadoras fervilhou em minha psique inflamada, e senti que o bando de meus sonhos mortos principiou a se debater violentamente em meu peito. Levado por meu tormento hipnotizante, decidi pisar aqueles campos funestos que gradativamente tornavam-se mais e mais escuros e ressecados, infestados de espinhentos caraguatás. Sentindo todo o peso agourento daquelas nuvens sobre meus ombros, lutulento, aos poucos fui descendo e dirigindo-me àquele vale infausto.


Um cheiro enjoativo de sangue surgiu em ondas pelos ares densos e pesados. Conforme avançava, meu transtorno físico e psíquico se intensificava. O caminho até o fundo abismal do vale parecia agora bem mais extenso do que a impressão inicial, e o próprio lago e a infinidade de árvores secas e retorcidas que o circundavam eram, em realidade, de uma imensidão assombrosa e absolutamente ilógica.


Apesar da temperatura fria do dia e de não brilhar o mínimo raio de sol no lugar sombrio em que me encontrava, um bafo morno e carregado, que parecia ter surgido daquele lago de águas estagnadas, oprimia minha angustiada respiração.


Finalmente, atingi a região do lago. O cheiro de sangue coagulado e apodrecido era quase insuportável. O ar quente, fétido e insalubre causava-me náuseas. A concentração de nuvens escuras no céu era intensa e opressiva. Pareciam estar muito baixas, como nimbos de mau agouro. Meu estado de perturbação psíquica atingira o auge, porém, uma força de atração irresistível impedia-me de abandonar aquela tétrica região.


Observei com atenção a imensidade doentia daquele lago absolutamente parado, não havia a mínima movimentação em suas águas medonhamente avermelhadas. Aproximei-me dele, infiltrando-me por entre aquelas odiosas árvores secas e espinhosas, e toquei aquelas águas. Embora não tendo coragem de provar seu sabor, tive a certeza, pelo cheiro, aparência e consistência, que eu me encontrava às margens de um gigantesco lago de sangue, provavelmente mesclado com alguma água imunda.


Fitando com torturante atenção os arredores do lago, vislumbrei uma vastidão pantanosa de banhados e charnecas que exalavam uma névoa abjeta e repulsivamente rosácea. Eram cobertos por uma desolada vegetação rasteira de aspecto cinzento e degradado. Foi no instante em que contemplava estarrecido todo o horror diante de mim e tentava explicar para mim mesmo o que seria tudo aquilo, que surgiu de um ponto negro do céu as asas de um imenso urubu preto que ameaçadoramente pousou em um galho retorcido.


Imediatamente após esse primeiro urubu, surgiram dezenas, centenas, milhares de outros urubus, tão gigantescos e ameaçadores como o primeiro. Alguns pousavam nas árvores mortas, outros, à beira do lago de sangue e bebiam de suas águas Pude observar de forma mais detalhada os que pousavam nas árvores. Eram imensos e possantes, possuíam garras enormes e afiadas, diferentes do urubu comum encontrado nas terras gaúchas. Aparentavam-se bem mais com os abutres africanos, com a diferença de que apresentavam, como os urubus, uma plumagem inteiramente negra no dorso, com penas brancas na região interna das asas.


Amanhã, a parte final...

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