“Ah, mas então tudo será baldado?
Tudo desfeito e tudo consumido?”
Cruz e Sousa
mas então
restará só uma promessa
pairando impassível
sobre o branco impossível do nada?
sentidos de alma
pedaços de estrela
tormentas de olhos
distâncias de amor
voando em vazio?
tuas asas não batem?
tua estrada não leva?
tuas flores não cheiram?
teu canto não canta?
e os altos de campos de sóis pelos cosmos?
e os lagos de olhares que um dia subi-me?
e os beijos nos ares que em sonho encontrei-te?
e as luzes eternas do Réquiem em que vivo?
mas então...
não?
28 dezembro 2008
25 dezembro 2008
Junqueira Freire (1832 - 1855)
Junqueira Freire é um dos poetas brasileiros incluídos em nosso Ultra-romantismo. É bem pouco conhecido, até mesmo pelos fãs da literatura sombria. No entanto, sua pequena produção poética, justificada em parte pela sua morte precoce (23 anos), se não é das mais originais e maduras, revela uma intensidade de vivência emocional e um profundo conhecimento dos conflitos que massacram a alma humana. O poema abaixo reflete de forma radical e definitiva uma visão inconsolável da desesperança do homem perdido dentro de um mundo aniquilador dos altos sentimentos.
DESEJO
(Hora do Delírio)
Se além dos mundos esse inferno existe,
Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;
Se ali se sente o que jamais na vida
O desespero inspira:
Se o suplício maior, que a mente finge,
A mente ali respira;
Se é de compacta, de infinita brasa
O solo que se pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;
Se ali se goza um gênero inaudito
De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;
Se é verdade esse quadro que imaginam
As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são uns erros vãos
Eu - que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afeição mais terna
Às penas mais incríveis;
Eu - que tenho pisado o colo altivo
De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
Surgido vencedor;
Eu - que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno;
Eu quero de uma vez morrer para sempre,
Entrar por fim no inferno!
Eu quero ver se encontro ali no abismo
Um tormento incrível:
- Desses que achá-los nas existência toda
Jamais será possível!
Eu quero ver se encontro alguns suplícios,
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
- "Chora por fim, - que és homem!"
Que, de arrostar as dores desta vida,
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo,
Quero vencer o inferno!
Junqueira Freire
DESEJO
(Hora do Delírio)
Se além dos mundos esse inferno existe,
Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;
Se ali se sente o que jamais na vida
O desespero inspira:
Se o suplício maior, que a mente finge,
A mente ali respira;
Se é de compacta, de infinita brasa
O solo que se pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;
Se ali se goza um gênero inaudito
De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;
Se é verdade esse quadro que imaginam
As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são uns erros vãos
Eu - que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afeição mais terna
Às penas mais incríveis;
Eu - que tenho pisado o colo altivo
De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
Surgido vencedor;
Eu - que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno;
Eu quero de uma vez morrer para sempre,
Entrar por fim no inferno!
Eu quero ver se encontro ali no abismo
Um tormento incrível:
- Desses que achá-los nas existência toda
Jamais será possível!
Eu quero ver se encontro alguns suplícios,
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
- "Chora por fim, - que és homem!"
Que, de arrostar as dores desta vida,
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo,
Quero vencer o inferno!
Junqueira Freire
23 dezembro 2008
13 Versos
Trago nos olhos uma marcha fúnebre
à humanidade que caminha pútrida,
e a mão que acena de caveira esquálida
a um hino roxo de um final que é trágico.
A tua desgraça, ó mundo humano, é júbilo
pra quem de horror já traz em lava o espírito
e viu à morte os altos gênios - mártires!
que pra te erguer verteram sangue e lágrimas.
Homem acabado, sinto miasma e túmulo
pra te enterrar em teu dantesco báratro
e erguer a flâmula em teu lixo cósmico.
A ti eu deixo o meu adeus de Hercólubus
e parto só pra contemplar o Término.
à humanidade que caminha pútrida,
e a mão que acena de caveira esquálida
a um hino roxo de um final que é trágico.
A tua desgraça, ó mundo humano, é júbilo
pra quem de horror já traz em lava o espírito
e viu à morte os altos gênios - mártires!
que pra te erguer verteram sangue e lágrimas.
Homem acabado, sinto miasma e túmulo
pra te enterrar em teu dantesco báratro
e erguer a flâmula em teu lixo cósmico.
A ti eu deixo o meu adeus de Hercólubus
e parto só pra contemplar o Término.
18 dezembro 2008
No Zero Hora
Foi uma honra para mim hoje ver um de meus poemas publicados no Almanaque Gaúcho do jornal Zero Hora, e ao lado uma foto e um comentário sobre Luiz de Miranda, um dos maiores poetas gaúchos da atualidade, poeta de intensa inspiração, como bem provam suas temáticas fortes e seu estilo contundente. E ainda fiquei sabendo que ele é o poeta que mais publicou poemas no mundo! Incrível! Ao lado, a página do jornal com meu poema e com o comentário sobre Luiz de Miranda. Agradeço ao Zero Hora e ao Almanaque Gaúcho pela publicação.
O quê?
não entenda nada do que digo
não digo nada para ser entendido
o nada é o que tenho a dizer
que eu nada tenho de nada
e meu nada tem só dúvida
eu todo sou nada e dúvida
pergunta de nada no cosmos...
veia de sonhos rebentou-me nos olhos
desejo último em cadeira elétrica
beijo de lâmina ao lábio enforcado
teu olho brilhou-me em aviso de raios
onde caiu tudo o que eu soube?
clarão de ocaso antes da noite
canto de cisne antes da chuva
vela de rosas acesa em tormenta
por onde é que voa tudo que eu verso?
um sopro de urgência tua alma me traz
mas em cuspes de deuses jamais te confessas
onde é afinal que tu estás?
dá-me tua mão ou as tuas promessas...
não digo nada para ser entendido
o nada é o que tenho a dizer
que eu nada tenho de nada
e meu nada tem só dúvida
eu todo sou nada e dúvida
pergunta de nada no cosmos...
veia de sonhos rebentou-me nos olhos
desejo último em cadeira elétrica
beijo de lâmina ao lábio enforcado
teu olho brilhou-me em aviso de raios
onde caiu tudo o que eu soube?
clarão de ocaso antes da noite
canto de cisne antes da chuva
vela de rosas acesa em tormenta
por onde é que voa tudo que eu verso?
um sopro de urgência tua alma me traz
mas em cuspes de deuses jamais te confessas
onde é afinal que tu estás?
dá-me tua mão ou as tuas promessas...
15 dezembro 2008
As Almas do Fantástico na História do RS - História 4ª: A Picada
Aproximava-se das 4h da tarde quando atingi a beira da sanga que corta os campos de meu avô. Desde o amanhecer havia algo de anormal naquele dia. O sol e o calor eram intensos demais, mesmo para o mês de março. Não havia o mínimo vento, a mínima brisa. Mas não era o clima físico que causava a anormalidade, porém o clima psicológico. Não que ele fosse negativo, ominoso, agourento, nada disso. Era simplesmente estranho, esquisito, anormal, anômalo, inexplicável, carregado de indefiníveis sensações perturbadoras. Existem sensações que não se consegue, que não se pode, que não se deve explicar. Tão-somente sentir. E eu as sentia de forma contundente em minha alma intuitiva e atormentada.
E sentia-me bem à beira daquela sanga de águas puras e límpidas, sob a sombra densa e benfazeja das árvores frondosas, entrecortadas pelos raios do sol impiedoso. Do local onde me encontrava havia uma forte, mas rasa, correnteza sobre uma grande quantidade de pedras e lajes de variados tamanhos. Ali, o número de aves era incomum, eu ouvia uma imensa diversidade de cantos, alguns bastante diferentes, os quais contribuíam para tornar ainda mais inquietante o clima de estranheza que pairava por aquelas atmosferas abafadas...
Sentei-me em uma das grandes pedras e respirei fundo, deixando-me levar pelo furacão de sensações que sempre se debate em minha alma. Percebi que estava com febre. Um torpor delicioso e violento inflamou-me a psique. Encontrava-me nesse misto de tormento e prazer que mal consigo definir. E que muito menos consigo adivinhar suas causas, suas origens. Apenas sei que as sentia e que meus sentimentos tomavam todo meu ser... E isso me basta. Caía a influência daquele dia estranho sobre a minha estranha psique. E eu voando afundava-me em pensamentos e emoções insensatas e absurdas.
Nesse instante soprou-me a única brisa do dia. Uma brisa quente, férvida, inflamada... Havia auras anômalas naquele sopro incendiado. Ouvi passos na mata. Desci-me de meu vôo e alertei-me. Uma jovem aproximava-se da sanga carregando uma sacola repleta de roupas. Minha febre talvez tenha aumentado. Seus longos cabelos castanhos e lisos caiam sobre um vestido claro um tanto simples, bastante adequado à sua beleza deslumbrante de naturalidade. Ao ver-me, a moça não se surpreendeu, como se já esperasse que eu estivesse ali. Chegou ao local onde eu me encontrava, saudou-me com uma familiaridade incompreensível para alguém desconhecido. Eu jamais a havia visto. Perguntei seu nome. Ela largou a sacola, sentou-se em uma pedra bastante próxima a mim e principiou a lavar as roupas nas intensas águas da correnteza.
- Isabela. Tu não lembras de mim?
- Não. Desculpa, mas sinceramente não. Nós nos conhecemos?
- Sim. Já há um bom tempo... Mas deixa pra lá, se não lembras, tudo bem, eu entendo. Outra hora tu irás lembrar. Vamos falar de outras coisas. Gostas deste lugar?
Iniciamos então uma conversa absurdamente delirante. É desnecessário mencionar o que falamos. Porém é necessário dizer que tratamos de assuntos e palavras de uma forma tão natural e com uma intimidade tão completa que me arrebatou de um assombro quase sobrenatural. Seus olhares profundos e hipnotizantes fizeram com que eu perdesse a noção de tempo e espaço. Sua voz doce e melodiosa parecia provir de regiões desconhecidas do cosmos e enlevava-me como uma música estranha e carregada de uma indecifrável magia. Pensei em coisas e existências que não sei nomear. Conforme avançávamos em nossa conversa, essas palavras penetravam como a embriaguez do vinho em minha mente e coração. Eu me sentia flutuar pelas águas cristalinas daquela sanga, ou então me via levado pelas brisas mornas do verão do pampa, ou mergulhava no verde infinito de matas simultaneamente reais e imaginárias... Em alguns momentos o som da voz de Isabela confundia-se com o canto dos pássaros, e eu já não sabia distinguir um do outro. Lembro-me de ter dito um rio de palavras para a bela moça, porém, não lembro de absolutamente nenhuma delas com precisão, muito embora os temas fantásticos das mesmas ainda ecoem romântica e fatalmente em minha alma... Por entre as frases nebulosas que de Isabela ouvia, sentia lâminas de desejo cortarem meu coração; minha febre se intensificava e um delírio sublime jogava-me sonhando por aquelas atmosferas quentes, estranhas e intuitivas.
Após lavar todas as roupas, Isabela recolocou-as na sacola e partiu calmamente por entre a mata, enquanto eu aos poucos deixava meu estado de entorpecimento psíquico.
Encontramo-nos no mesmo local cerca de um mês depois. Dessa vez ela não levava roupas para lavar. Trajava um vestido que se assemelhava bastante a um de prenda, intensamente vermelho. Era como se houvéssemos marcado um encontro, porém não havíamos marcado. Não sei o que aconteceu durante as várias horas que estive na presença da moça. Digo que realmente não sei. Tão-somente lembro de que ali se encontrava um urutau pousado em um galho, e que a ave cantava em inusitado desvario. Creio que um sorro também gritou em algum canto. Fora isso, era como se nada mais houvesse ocorrido, apenas um sonho insano e absurdo sem lembranças específicas, apenas vagos rumores enevoados. Até que viera o beijo...
Sim, de sua boca plena de sons indefiníveis, senti um beijo em forma de ciclone. Estou certo que sua boca permaneceu colada à minha por horas, não obstante eu não possuísse a mínima noção de tempo ou espaço. Eu não estava ali, eu não existia, eu apenas estava com ela. Naqueles instantes ocultos de um beijo absurdo, minha mente navegava pela imensidão do pampa gaúcho, eu mergulhava na alma das coxilhas cheirando a flores, viajava em colossais cavalos por campos intermináveis, por entre matas orvalhadas, comunicava-me com animais que não mais existiam. Sob um céu azul e frio pairavam corvos com anjos sombrios, enquanto sangas, córregos e rios pareciam fervilhar em minhas veias. E tudo fluía de seus lábios, de sua boca, de seu beijo. Não sei por que, eu captei rumores celestes e infernais, e uma tempestade de sonhos enlouquecia-me no alto de um cerro vertiginoso. Então, olhando-me doce e espiritualmente, Isabela, em estranha suavidade, retirou lentamente seus lábios dos meus. Levantou-se e partiu, sem dizer palavra e em perturbadora serenidade, pela escuridão da mata. Já era noite.
(...)
Sim, meu avô, agora eu entendo o que me disseste. Deixei-lhe este relato porque vou partir com ela. Quando naquele fim de verão eu percorria os seus vastos campos, meu querido avô, eu senti que algo de anômalo pairava nas inquietantes atmosferas. Hoje, completam-se seis meses desde que recebi o absurdo e delirante beijo de Isabela. Desde então, vi-a por mais três vezes, e minha decisão está tomada. Eu sei, o senhor vai dizer que enlouqueci, que ela conseguiu seus objetivos, que me hipnotizou inexoravelmente com seu funesto poder, que pagarei com a morte a minha insanidade... Isso o senhor dirá, meu avô, mas eu não me preocupo. Provavelmente, isso tudo é verdade, talvez eu morra sob a influência da estranha mulher... Porém, morte ainda pior seria continuar vivendo entre os humanos sem ela.
É claro, como o senhor havia me alertado, talvez ela não seja uma mulher. Talvez ela seja um daqueles espíritos femininos que há milênios habitam as regiões isoladas do pampa, uma oculta alma da natureza, um daqueles elementais fantasmagóricos que em alguns momentos de suas misteriosas existências decidem encontrar uma vítima para levar para seu mundo inaceitável. E talvez tenha sido eu uma dessas vítimas. Desconheço por que eu seria um dos raros escolhidos... Talvez pela minha tendência doentia para a fantasia e para a mórbida imaginação... No entanto, provavelmente deverei morrer para acompanhá-la por regiões desconhecidas, e depois... Bem, depois nem mesmo o senhor soube me dizer o que aconteceria comigo...
Mas se assim for, tudo ocorrerá da maneira mais natural possível. O senhor encontrará meu corpo caído na beira da sanga. Eu terei morrido envenenado. Haverá um ferimento em minha perna, as marcas dos dentes de uma serpente. E o mundo não saberá de nada, apenas que eu morri pela picada de uma cobra...
28 de novembro de 1959.
Assina: Miguel Francisco Paiva
E sentia-me bem à beira daquela sanga de águas puras e límpidas, sob a sombra densa e benfazeja das árvores frondosas, entrecortadas pelos raios do sol impiedoso. Do local onde me encontrava havia uma forte, mas rasa, correnteza sobre uma grande quantidade de pedras e lajes de variados tamanhos. Ali, o número de aves era incomum, eu ouvia uma imensa diversidade de cantos, alguns bastante diferentes, os quais contribuíam para tornar ainda mais inquietante o clima de estranheza que pairava por aquelas atmosferas abafadas...
Sentei-me em uma das grandes pedras e respirei fundo, deixando-me levar pelo furacão de sensações que sempre se debate em minha alma. Percebi que estava com febre. Um torpor delicioso e violento inflamou-me a psique. Encontrava-me nesse misto de tormento e prazer que mal consigo definir. E que muito menos consigo adivinhar suas causas, suas origens. Apenas sei que as sentia e que meus sentimentos tomavam todo meu ser... E isso me basta. Caía a influência daquele dia estranho sobre a minha estranha psique. E eu voando afundava-me em pensamentos e emoções insensatas e absurdas.
Nesse instante soprou-me a única brisa do dia. Uma brisa quente, férvida, inflamada... Havia auras anômalas naquele sopro incendiado. Ouvi passos na mata. Desci-me de meu vôo e alertei-me. Uma jovem aproximava-se da sanga carregando uma sacola repleta de roupas. Minha febre talvez tenha aumentado. Seus longos cabelos castanhos e lisos caiam sobre um vestido claro um tanto simples, bastante adequado à sua beleza deslumbrante de naturalidade. Ao ver-me, a moça não se surpreendeu, como se já esperasse que eu estivesse ali. Chegou ao local onde eu me encontrava, saudou-me com uma familiaridade incompreensível para alguém desconhecido. Eu jamais a havia visto. Perguntei seu nome. Ela largou a sacola, sentou-se em uma pedra bastante próxima a mim e principiou a lavar as roupas nas intensas águas da correnteza.
- Isabela. Tu não lembras de mim?
- Não. Desculpa, mas sinceramente não. Nós nos conhecemos?
- Sim. Já há um bom tempo... Mas deixa pra lá, se não lembras, tudo bem, eu entendo. Outra hora tu irás lembrar. Vamos falar de outras coisas. Gostas deste lugar?
Iniciamos então uma conversa absurdamente delirante. É desnecessário mencionar o que falamos. Porém é necessário dizer que tratamos de assuntos e palavras de uma forma tão natural e com uma intimidade tão completa que me arrebatou de um assombro quase sobrenatural. Seus olhares profundos e hipnotizantes fizeram com que eu perdesse a noção de tempo e espaço. Sua voz doce e melodiosa parecia provir de regiões desconhecidas do cosmos e enlevava-me como uma música estranha e carregada de uma indecifrável magia. Pensei em coisas e existências que não sei nomear. Conforme avançávamos em nossa conversa, essas palavras penetravam como a embriaguez do vinho em minha mente e coração. Eu me sentia flutuar pelas águas cristalinas daquela sanga, ou então me via levado pelas brisas mornas do verão do pampa, ou mergulhava no verde infinito de matas simultaneamente reais e imaginárias... Em alguns momentos o som da voz de Isabela confundia-se com o canto dos pássaros, e eu já não sabia distinguir um do outro. Lembro-me de ter dito um rio de palavras para a bela moça, porém, não lembro de absolutamente nenhuma delas com precisão, muito embora os temas fantásticos das mesmas ainda ecoem romântica e fatalmente em minha alma... Por entre as frases nebulosas que de Isabela ouvia, sentia lâminas de desejo cortarem meu coração; minha febre se intensificava e um delírio sublime jogava-me sonhando por aquelas atmosferas quentes, estranhas e intuitivas.
Após lavar todas as roupas, Isabela recolocou-as na sacola e partiu calmamente por entre a mata, enquanto eu aos poucos deixava meu estado de entorpecimento psíquico.
Encontramo-nos no mesmo local cerca de um mês depois. Dessa vez ela não levava roupas para lavar. Trajava um vestido que se assemelhava bastante a um de prenda, intensamente vermelho. Era como se houvéssemos marcado um encontro, porém não havíamos marcado. Não sei o que aconteceu durante as várias horas que estive na presença da moça. Digo que realmente não sei. Tão-somente lembro de que ali se encontrava um urutau pousado em um galho, e que a ave cantava em inusitado desvario. Creio que um sorro também gritou em algum canto. Fora isso, era como se nada mais houvesse ocorrido, apenas um sonho insano e absurdo sem lembranças específicas, apenas vagos rumores enevoados. Até que viera o beijo...
Sim, de sua boca plena de sons indefiníveis, senti um beijo em forma de ciclone. Estou certo que sua boca permaneceu colada à minha por horas, não obstante eu não possuísse a mínima noção de tempo ou espaço. Eu não estava ali, eu não existia, eu apenas estava com ela. Naqueles instantes ocultos de um beijo absurdo, minha mente navegava pela imensidão do pampa gaúcho, eu mergulhava na alma das coxilhas cheirando a flores, viajava em colossais cavalos por campos intermináveis, por entre matas orvalhadas, comunicava-me com animais que não mais existiam. Sob um céu azul e frio pairavam corvos com anjos sombrios, enquanto sangas, córregos e rios pareciam fervilhar em minhas veias. E tudo fluía de seus lábios, de sua boca, de seu beijo. Não sei por que, eu captei rumores celestes e infernais, e uma tempestade de sonhos enlouquecia-me no alto de um cerro vertiginoso. Então, olhando-me doce e espiritualmente, Isabela, em estranha suavidade, retirou lentamente seus lábios dos meus. Levantou-se e partiu, sem dizer palavra e em perturbadora serenidade, pela escuridão da mata. Já era noite.
(...)
Sim, meu avô, agora eu entendo o que me disseste. Deixei-lhe este relato porque vou partir com ela. Quando naquele fim de verão eu percorria os seus vastos campos, meu querido avô, eu senti que algo de anômalo pairava nas inquietantes atmosferas. Hoje, completam-se seis meses desde que recebi o absurdo e delirante beijo de Isabela. Desde então, vi-a por mais três vezes, e minha decisão está tomada. Eu sei, o senhor vai dizer que enlouqueci, que ela conseguiu seus objetivos, que me hipnotizou inexoravelmente com seu funesto poder, que pagarei com a morte a minha insanidade... Isso o senhor dirá, meu avô, mas eu não me preocupo. Provavelmente, isso tudo é verdade, talvez eu morra sob a influência da estranha mulher... Porém, morte ainda pior seria continuar vivendo entre os humanos sem ela.
É claro, como o senhor havia me alertado, talvez ela não seja uma mulher. Talvez ela seja um daqueles espíritos femininos que há milênios habitam as regiões isoladas do pampa, uma oculta alma da natureza, um daqueles elementais fantasmagóricos que em alguns momentos de suas misteriosas existências decidem encontrar uma vítima para levar para seu mundo inaceitável. E talvez tenha sido eu uma dessas vítimas. Desconheço por que eu seria um dos raros escolhidos... Talvez pela minha tendência doentia para a fantasia e para a mórbida imaginação... No entanto, provavelmente deverei morrer para acompanhá-la por regiões desconhecidas, e depois... Bem, depois nem mesmo o senhor soube me dizer o que aconteceria comigo...
Mas se assim for, tudo ocorrerá da maneira mais natural possível. O senhor encontrará meu corpo caído na beira da sanga. Eu terei morrido envenenado. Haverá um ferimento em minha perna, as marcas dos dentes de uma serpente. E o mundo não saberá de nada, apenas que eu morri pela picada de uma cobra...
28 de novembro de 1959.
Assina: Miguel Francisco Paiva
11 dezembro 2008
Não - Soneto
nas longas águas que enloucaram um vale
perdi estas cruzes todas elas vivas
me viram corvos perpassar nas línguas
eu tudo aquilo que não fui me lembro
caía um mundo sobre meus crepúsculos
ouvi de um selo que beijou-me em fronte
só eu sozinho sim vi de em fim a arte
mas um martelo mais letal me acerta
perdi perdões que não te arrependi-me
eu sou aquilo que não tive e mato
e os teus desejos que pedi sonhei-me
um cristo leu-me pra acenar caveira
e fui beijar-te em alto horror sublime:
te sinto em versos sem nenhum sentido...
perdi estas cruzes todas elas vivas
me viram corvos perpassar nas línguas
eu tudo aquilo que não fui me lembro
caía um mundo sobre meus crepúsculos
ouvi de um selo que beijou-me em fronte
só eu sozinho sim vi de em fim a arte
mas um martelo mais letal me acerta
perdi perdões que não te arrependi-me
eu sou aquilo que não tive e mato
e os teus desejos que pedi sonhei-me
um cristo leu-me pra acenar caveira
e fui beijar-te em alto horror sublime:
te sinto em versos sem nenhum sentido...
10 dezembro 2008
Um Poema do Mestre
A esperança, como um fósforo inda aceso
A esperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.
Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança ...
Mas viver é esperar e se cansar.
O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança é gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.
Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.
Fernando Pessoa
A esperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.
Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança ...
Mas viver é esperar e se cansar.
O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança é gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.
Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.
Fernando Pessoa
08 dezembro 2008
Menstruada
má...agoada
des/manchada em derr/amamentos
tu te purificas
ex/pulsando
trágica e catártica
lágrimas de útero
em alertas de término
tu te santi/ficas
em choros sanguino
lentos
lentos
pela tua pele
pelas tuas pernas
em rubras pétalas
das cho/rosas murchas
do jardim quente
do teu ventre
em chuvas...
eu absorvo
as tuas dores
melan
cólicas
des/manchada em derr/amamentos
tu te purificas
ex/pulsando
trágica e catártica
lágrimas de útero
em alertas de término
tu te santi/ficas
em choros sanguino
lentos
lentos
pela tua pele
pelas tuas pernas
em rubras pétalas
das cho/rosas murchas
do jardim quente
do teu ventre
em chuvas...
eu absorvo
as tuas dores
melan
cólicas
05 dezembro 2008
Além...
queria expressar
além de toda expressão
dizer o que não é
escrever o que não posso
fazer arte do absurdo
que o limite do que existe
não me é e não me basta
não me é tal alto o céu
não me é tão fundo o inferno
não é tão negro o negro
nem tão belo o belo
queria fixar palavras
que passassem ao outro lado
do infinito
que ficassem mais além
da eternidade
palavras
que não fossem palavras
que fossem o universo
em essência de verbo
queria dizer tudo
não dizendo nada...
enfim eu não queria
que as minhas palavras
falassem do teu beijo
queria que elas...
fossem a tua boca
além de toda expressão
dizer o que não é
escrever o que não posso
fazer arte do absurdo
que o limite do que existe
não me é e não me basta
não me é tal alto o céu
não me é tão fundo o inferno
não é tão negro o negro
nem tão belo o belo
queria fixar palavras
que passassem ao outro lado
do infinito
que ficassem mais além
da eternidade
palavras
que não fossem palavras
que fossem o universo
em essência de verbo
queria dizer tudo
não dizendo nada...
enfim eu não queria
que as minhas palavras
falassem do teu beijo
queria que elas...
fossem a tua boca
04 dezembro 2008
INTER - Campeão de Tudo
Não sou um fanático por futebol, mas aprecio bastante esse esporte. E o meu time é o Internacional. Assim, venho aqui deixar minha homenagem a mais uma façanha do Colorado: a conquista da Copa Sul-Americana, sendo o 1º clube brasileiro a vencê-la. Além do mais, segundo as palavras da própria Conmebol, o Inter passa a ser o mais INTERNACIONAL dos clubes brasileiros, sendo o único a conquistar todos os títulos disponíveis a um time do Brasil: Libertadores da América, Mundial Fifa, Recopa e Sul-Americana. Somente o Boca Júniors, da Argentina, também conquistou esses 4 títulos. Isso sem contar os títulos internacionais não oficiais que o Inter venceu, como o Torneio de Dubai. São façanhas que não podem passar ignoradas por um gaúcho. Em pouco mais de 2 anos o Inter vergou 5 dos maiores times mundiais (Barcelona, Boca, Stuttgart, Internacional de Milão, São Paulo) e quebrou vários tabus, como vencer o Boca no La Bombonera depois de 5 anos de invencibilidade do time argentino em torneios internacionais. O Inter é Mortal. Mata todos! Parabéns, "Glória do desporto nacional, Ó Internacional..."
03 dezembro 2008
Uma Tragédia Sem Importância...
Naquele ensolarado final de tarde primaveril, saí às ruas para mais uma de minhas costumeiras caminhadas. É sempre inspirador caminhar sentindo a brisa prazerosa tocar nossa face sob um límpido céu azul, ao paradisíaco aroma das flores e ouvindo o canto celestial das aves.
E quando já estava ao fim de meu passeio, encontrei sentada sobre uma calçada uma linda menina de cabelos brilhantes e olhos dourados, aparentando não mais que 13 anos de idade e vestindo uma roupa de cor verde bastante simples mas que muito se adequava à sua inocente beleza. Aproximei-me da menina e percebi que ela chorava copiosamente. Sentei-me ao seu lado e perguntei por que ela chorava tanto, ao que ela respondeu-me:
“Meus pais foram mortos há alguns dias, foram assassinados. Meu pai levou um tiro no peito, seu sangue respingou sobre mim. Minha mãe também foi ferida com um tiro, caiu no chão e teve sua cabeça esmagada sem piedade por aqueles homens cruéis. Meus irmãos mais jovens foram raptados pelos assassinos, eles os levaram. Eles gritavam e choravam desesperados, mas não podiam fugir. Só eu consegui escapar.
Eu fugi, e sem meus pais não sabia o que fazer. Nós vivíamos no interior de uma floresta, tínhamos a nossa casinha onde éramos tão felizes, mas ela foi destruída, e aqueles homens maus devastaram toda a floresta. E lá plantaram uns arbustinhos que chamavam de soja. Eu fiquei por um tempo escondida em um pequeno bosque, o único pedaço de mata que restou. Alimentava-me de algumas frutinhas que encontrava por ali.
Um dia os homens maus vieram carregando algumas coisas que não sei dizer o que eram e começaram a fazer sair uma nuvem branca sobre a soja. Acho que aquela nuvem era venenosa, porque ela veio até mim, e eu a respirei, e seu cheiro era horrível. Comecei a me sentir mal, fiquei tonta e saí da mata em direção ao rio.
Quando lá cheguei, bebi um pouco d’água para me sentir melhor, mas a água estava com um gosto muito ruim, e senti-me ainda pior. Havia coisas estranhas no rio, sujeiras, lixos, e as águas que antes eram tão limpinhas, tão bonitas, onde eu e meus irmãos brincávamos e pegávamos bichinhos da água, estavam marrom, mau-cheirosas e sem nenhum peixe. Também não havia mais na beira do rio as grandes árvores verdejantes onde nós tanto gostávamos de brincar.
Então saí do rio sentindo-me muito mal. Voltei para a mata, a nuvem branca já tinha passado. Foi então que ouvi tiros que se aproximavam de mim. Seriam aqueles assassinos? pensei. Eu devia fugir dali, ainda que mal tivesse forças para isso. Então saí da mata no mesmo momento em que vi aqueles homens matando a tiros uma família de cachorros-do-mato. Mataram todos os cachorros, pai, mãe e os três filhinhos, mataram por matar, para se divertir, porque nem levaram seus corpos, deixaram lá para apodrecer e saíram rindo muito satisfeitos.
Mesmo quase sem forças, eu consegui escapar. E assim, lentamente fui me dirigindo para a cidade. Então, com muita dificuldade, cheguei até aqui onde estou. Eu estava escondida naquela árvore, mas perdi todas as minhas forças, mal conseguia respirar, e caí sobre a calçada. Ainda consegui erguer-me, mas sentia que aquela nuvem venenosa que respirei no campo estava me matando, ela me asfixiava. Mas ainda vivia e lutava pela vida. Tentei caminhar pela rua, era tudo que podia fazer, na esperança de que alguém me ajudasse. Vi que vinham crianças, e pensei que elas não seriam más e então me ajudariam.
Mas eu muito me enganei. Aquelas crianças, ao verem que eu ali estava caminhando com dificuldade, juntaram muitas pedras para atirar em mim, acertando algumas com muita força. A dor que elas me causavam era insuportável. Eu sentia as pedras machucando e cortando minha carne, fraturando meus ossos, via meu sangue escorrer, e não podia fazer nada. Uma das pedras quebrou minha perna direita, e não pude mais caminhar. Eu já não agüentava mais, até que uma pedra enorme foi jogada sobre minha cabeça. Ainda ouvi e senti meu crânio ser esmagado, e logo a morte veio para aliviar minha dor. Ali está o que restou do meu corpo.”
Olhei à minha esquerda e percebi o cadáver de um pequeno pássaro de plumagem verde, amarela e azul esmagado por dezenas de pedras. Perplexo, voltei meu rosto para a menina e nem precisei perguntar, pois ela se adiantou:
“Sim, eu sou o espírito daquela avezinha, sou sua alma. Os homens acabaram com a minha vida, com minha família, com meu canto, com minha felicidade. E quem teria piedade de um pobre pássaro, quem daria atenção para mim? Ninguém, ninguém dá atenção para essas coisas... Esses são os humanos... O que vocês estão fazendo com a vida deste planeta? E quando toda essa vida morrer, o que será de vocês?”
Nesse instante, acordei de meu sonho. Sim, tudo não passou de um sonho. Ou pesadelo. Levantei-me, profundamente abalado. Horas depois saí para caminhar nas ruas. E qual não foi meu espanto ao encontrar em um local arborizado um pássaro verde, amarelo e azul esmagado por dezenas de pedras. Agora, era a realidade...
E quando já estava ao fim de meu passeio, encontrei sentada sobre uma calçada uma linda menina de cabelos brilhantes e olhos dourados, aparentando não mais que 13 anos de idade e vestindo uma roupa de cor verde bastante simples mas que muito se adequava à sua inocente beleza. Aproximei-me da menina e percebi que ela chorava copiosamente. Sentei-me ao seu lado e perguntei por que ela chorava tanto, ao que ela respondeu-me:
“Meus pais foram mortos há alguns dias, foram assassinados. Meu pai levou um tiro no peito, seu sangue respingou sobre mim. Minha mãe também foi ferida com um tiro, caiu no chão e teve sua cabeça esmagada sem piedade por aqueles homens cruéis. Meus irmãos mais jovens foram raptados pelos assassinos, eles os levaram. Eles gritavam e choravam desesperados, mas não podiam fugir. Só eu consegui escapar.
Eu fugi, e sem meus pais não sabia o que fazer. Nós vivíamos no interior de uma floresta, tínhamos a nossa casinha onde éramos tão felizes, mas ela foi destruída, e aqueles homens maus devastaram toda a floresta. E lá plantaram uns arbustinhos que chamavam de soja. Eu fiquei por um tempo escondida em um pequeno bosque, o único pedaço de mata que restou. Alimentava-me de algumas frutinhas que encontrava por ali.
Um dia os homens maus vieram carregando algumas coisas que não sei dizer o que eram e começaram a fazer sair uma nuvem branca sobre a soja. Acho que aquela nuvem era venenosa, porque ela veio até mim, e eu a respirei, e seu cheiro era horrível. Comecei a me sentir mal, fiquei tonta e saí da mata em direção ao rio.
Quando lá cheguei, bebi um pouco d’água para me sentir melhor, mas a água estava com um gosto muito ruim, e senti-me ainda pior. Havia coisas estranhas no rio, sujeiras, lixos, e as águas que antes eram tão limpinhas, tão bonitas, onde eu e meus irmãos brincávamos e pegávamos bichinhos da água, estavam marrom, mau-cheirosas e sem nenhum peixe. Também não havia mais na beira do rio as grandes árvores verdejantes onde nós tanto gostávamos de brincar.
Então saí do rio sentindo-me muito mal. Voltei para a mata, a nuvem branca já tinha passado. Foi então que ouvi tiros que se aproximavam de mim. Seriam aqueles assassinos? pensei. Eu devia fugir dali, ainda que mal tivesse forças para isso. Então saí da mata no mesmo momento em que vi aqueles homens matando a tiros uma família de cachorros-do-mato. Mataram todos os cachorros, pai, mãe e os três filhinhos, mataram por matar, para se divertir, porque nem levaram seus corpos, deixaram lá para apodrecer e saíram rindo muito satisfeitos.
Mesmo quase sem forças, eu consegui escapar. E assim, lentamente fui me dirigindo para a cidade. Então, com muita dificuldade, cheguei até aqui onde estou. Eu estava escondida naquela árvore, mas perdi todas as minhas forças, mal conseguia respirar, e caí sobre a calçada. Ainda consegui erguer-me, mas sentia que aquela nuvem venenosa que respirei no campo estava me matando, ela me asfixiava. Mas ainda vivia e lutava pela vida. Tentei caminhar pela rua, era tudo que podia fazer, na esperança de que alguém me ajudasse. Vi que vinham crianças, e pensei que elas não seriam más e então me ajudariam.
Mas eu muito me enganei. Aquelas crianças, ao verem que eu ali estava caminhando com dificuldade, juntaram muitas pedras para atirar em mim, acertando algumas com muita força. A dor que elas me causavam era insuportável. Eu sentia as pedras machucando e cortando minha carne, fraturando meus ossos, via meu sangue escorrer, e não podia fazer nada. Uma das pedras quebrou minha perna direita, e não pude mais caminhar. Eu já não agüentava mais, até que uma pedra enorme foi jogada sobre minha cabeça. Ainda ouvi e senti meu crânio ser esmagado, e logo a morte veio para aliviar minha dor. Ali está o que restou do meu corpo.”
Olhei à minha esquerda e percebi o cadáver de um pequeno pássaro de plumagem verde, amarela e azul esmagado por dezenas de pedras. Perplexo, voltei meu rosto para a menina e nem precisei perguntar, pois ela se adiantou:
“Sim, eu sou o espírito daquela avezinha, sou sua alma. Os homens acabaram com a minha vida, com minha família, com meu canto, com minha felicidade. E quem teria piedade de um pobre pássaro, quem daria atenção para mim? Ninguém, ninguém dá atenção para essas coisas... Esses são os humanos... O que vocês estão fazendo com a vida deste planeta? E quando toda essa vida morrer, o que será de vocês?”
Nesse instante, acordei de meu sonho. Sim, tudo não passou de um sonho. Ou pesadelo. Levantei-me, profundamente abalado. Horas depois saí para caminhar nas ruas. E qual não foi meu espanto ao encontrar em um local arborizado um pássaro verde, amarelo e azul esmagado por dezenas de pedras. Agora, era a realidade...
01 dezembro 2008
O Poema mais Trágico
Qual o poema mais trágico da literatura brasileira? O amigo leitor já pensou a respeito? Certamente, é uma decisão dificílima, ainda que a literatura brasileira não seja lá tão trágica, se compararmos com a alemã, com a inglesa, com a francesa... Nas américas, eu escolheria "O Corvo", de Poe, como o mais trágico poema. Mas ficando apenas no Brasil, qual escolher? Pensei bastante a respeito, e entre os poetas que conheço oscilei entre obras de Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Fagundes Varela, Alphonsus de Guimaraens, Emiliano Perneta, entre alguns trágicos poemas de nosso Modernismo e Pós-modernismo, entre obras de alguns autores bem pouco conhecidos, enfim, analisei um quantidade razoável de poemas dentro de minhas possibilidades, mas acabei me decidindo pela poesia do talvez mais famoso de nossos poetas sombrios: Álvares de Azevedo. De fato, ele compôs um poema que é insuperável no quesito "tragicidade"(na minha opinião, que isso fique bem claro, afinal sempre haverá divergências naturais e compreensíveis, até porque eu não posso conhecer todos os poemas escritos no Brasil). E mesmo que o poema abaixo não seja o mais trágico entre os brasileiros, pois trata-se de uma análise obviamente subjetiva, como não pode deixar de ser em artes, é fato incontestável que muito dificilmente alguma obra em verso superará o profundo e radical desespero e melancolia deste escrito azevediano, o clima desolador de perda e de fim, a densidade perturbadoramente sombria de um universo emocional carregado de devastadores desejos e inquietações sem resposta e que se chocam fatalmente contra um mundo sem sentido. A seguir, o poema que, na minha humilde decisão, é o mais trágico da literatura brasileira. Se alguém quiser deixar sua contribuição, citando algum outro poema brasileiro que seja mais trágico do que este, sinta-se à vontade, será muito bem-vindo.
Lágrimas de Sangue
Ao pé das aras no clarão dos círios
Eu te devera consagrar meus dias;
Perdão, meu Deus! perdão
Se neguei meu Senhor nos meus delírios
E um canto de enganosas melodias
Levou meu coração!
Só tu, só tu podias o meu peito
Fartar de imenso amor e luz infinda
E uma Saudade calma;
Ao sol de tua fé doirar meu leito
E de fulgores inundar ainda
A aurora na minh'alma.
Pela treva do espírito lancei-me,
Das esperanças suicidei-me rindo...
Sufoquei-as sem dó.
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.
Indolente Vestal, deixei no templo
A pira se apagar — na noite escura
O meu gênio descreu.
Voltei-me para a vida... só contemplo
A cinza da ilusão que ali murmura:
Morre! — tudo morreu!
Cinzas, cinzas... Meu Deus! só tu podias
À alma que se perdeu bradar de novo:
Ressurge-te ao amor!
Malicento, da minhas agonias
Eu deixaria as multidões do povo
Para amar o Senhor!
Do leito aonde o vício acalentou-me
O meu primeiro amor fugiu chorando.
Pobre virgem de Deus!
Um vendaval sem norte arrebatou-me,
Acordei-me na treva... profanando
Os puros sonhos meus!
Oh! se eu pudesse amar!... — É impossível!
Mão fatal escreveu na minha vida;
A dor me envelheceu.
O desespero pálido, impassível
Agoirou minha aurora entristecida,
De meu astro descreu.
Oh! se eu pudesse amar! Mas não:
agora que a dor emurcheceu meus breves dias,
Quero na cruz sangrenta
Derramá-los na lágrima que implora,
Que mendiga perdão pela agonia
Da noite lutulenta!
Quero na solidão — nas ermas grutas
A tua sombra procurar chorando
Com meu olhar incerto:
As pálpebras doridas nunca enxutas
Queimarei... teus fantasmas invocando
No vento do deserto.
De meus dias a lâmpada se apaga:
Roeram meu viver mortais venenos;
Curvo-me ao vento forte.
Teu fúnebre clarão que a noite alaga,
Como a estrela oriental me guie ao menos
Té o vale da morte!
No mar dos vivos o cadáver bóia
— A lua é descorada como um crânio,
Este sol não reluz:
Quando na morte a pálpebra se engóia,
O anjo se acorda em nós — e subitâneo
Voa ao mundo da luz!
Do val de Josafá pelas gargantas
Uiva na treva o temporal sem norte
E os fantasmas murmuram...
Irei deitar-me nessas trevas santas,
Banhar-me na friez lustral da morte
Onde as almas se apuram!
Mordendo as clinas do corcel da sombra,
Sufocado, arquejante passarei
Na noite do infinito.
Ouvirei essa voz que a treva assombra,
Dos lábios de minh'alma entornarei
O meu cântico aflito!
Flores cheias de aroma e de alegria,
Por que na primavera abrir cheirosas
E orvalhar-vos abrindo?
As torrentes da morte vêm sombrias,
Hão de amanhã nas águas tenebrosas
Vos rebentar bramindo.
Morrer! morrer! É voz das sepulturas!
Como a lua nas salas festivais
A morte em nós se estampa!
E os pobres sonhadores de venturas
Roxeiam amanhã nos funerais
E vão rolar na campa!
Que vale a glória, a saudação que enleva
Dos hinos triunfais na ardente nota,
E as turbas devaneia?
Tudo isso é vão, e cala-se na treva
— Tudo é vão, como em lábios de idiota
Cantiga sem idéia.
Que importa? quando a morte se descarna,
A esperança do céu flutua e brilha
Do túmulo no leito:
O sepulcro é o ventre onde se encarna
Um verbo divinal que Deus perfilha
E abisma no seu peito!
Não chorem! que essa lágrima profunda
Ao cadáver sem luz não dá conforto...
Não o acorda um momento!
Quando a treva medonha o peito inunda,
Derrama-se nas pálpebras do morto
Luar de esquecimento!
Caminha no deserto a caravana,
Numa noite sem lua arqueja e chora...
O termo... é um sigilo!
O meu peito cansou da vida insana;
Da cruz à sombra, junto aos meus, agora
Eu dormirei tranqüilo!
Dorme ali muito amor... muitas amantes,
Donzelas puras que eu sonhei chorando
E vi adormecer.
Ouço da terra cânticos errantes,
E as almas saudosas suspirando,
Que falam em morrer...
Aqui dormem sagradas esperanças,
Almas sublimes que o amor erguia...
E gelaram tão cedo!
Meu pobre sonhador! aí descansas,
Coração que a existência consumia
E roeu um segredo! ...
Quando o trovão romper as sepulturas,
Os crânios confundidos acordando
No lodo tremerão.
No lodo pelas tênebras impuras
Os ossos estalados tiritando
Dos vales surgirão!
Como rugindo a chama encarcerada
Dos negros flancos do vulcão rebenta
Golfejando nos céus,
Entre nuvem ardente e trovejada
Minh'alma se erguerá, fria, sangrenta,
Ao trono de meu Deus...
Perdoa, meu Senhor! O errante crente
Nos desesperos em que a mente abrasas
Não o arrojes p'lo crime!
Se eu fui um anjo que descreu demente
E no oceano do mal rompeu as asas,
Perdão! arrependi-me!
Álvares de Azevedo
Lágrimas de Sangue
Ao pé das aras no clarão dos círios
Eu te devera consagrar meus dias;
Perdão, meu Deus! perdão
Se neguei meu Senhor nos meus delírios
E um canto de enganosas melodias
Levou meu coração!
Só tu, só tu podias o meu peito
Fartar de imenso amor e luz infinda
E uma Saudade calma;
Ao sol de tua fé doirar meu leito
E de fulgores inundar ainda
A aurora na minh'alma.
Pela treva do espírito lancei-me,
Das esperanças suicidei-me rindo...
Sufoquei-as sem dó.
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.
Indolente Vestal, deixei no templo
A pira se apagar — na noite escura
O meu gênio descreu.
Voltei-me para a vida... só contemplo
A cinza da ilusão que ali murmura:
Morre! — tudo morreu!
Cinzas, cinzas... Meu Deus! só tu podias
À alma que se perdeu bradar de novo:
Ressurge-te ao amor!
Malicento, da minhas agonias
Eu deixaria as multidões do povo
Para amar o Senhor!
Do leito aonde o vício acalentou-me
O meu primeiro amor fugiu chorando.
Pobre virgem de Deus!
Um vendaval sem norte arrebatou-me,
Acordei-me na treva... profanando
Os puros sonhos meus!
Oh! se eu pudesse amar!... — É impossível!
Mão fatal escreveu na minha vida;
A dor me envelheceu.
O desespero pálido, impassível
Agoirou minha aurora entristecida,
De meu astro descreu.
Oh! se eu pudesse amar! Mas não:
agora que a dor emurcheceu meus breves dias,
Quero na cruz sangrenta
Derramá-los na lágrima que implora,
Que mendiga perdão pela agonia
Da noite lutulenta!
Quero na solidão — nas ermas grutas
A tua sombra procurar chorando
Com meu olhar incerto:
As pálpebras doridas nunca enxutas
Queimarei... teus fantasmas invocando
No vento do deserto.
De meus dias a lâmpada se apaga:
Roeram meu viver mortais venenos;
Curvo-me ao vento forte.
Teu fúnebre clarão que a noite alaga,
Como a estrela oriental me guie ao menos
Té o vale da morte!
No mar dos vivos o cadáver bóia
— A lua é descorada como um crânio,
Este sol não reluz:
Quando na morte a pálpebra se engóia,
O anjo se acorda em nós — e subitâneo
Voa ao mundo da luz!
Do val de Josafá pelas gargantas
Uiva na treva o temporal sem norte
E os fantasmas murmuram...
Irei deitar-me nessas trevas santas,
Banhar-me na friez lustral da morte
Onde as almas se apuram!
Mordendo as clinas do corcel da sombra,
Sufocado, arquejante passarei
Na noite do infinito.
Ouvirei essa voz que a treva assombra,
Dos lábios de minh'alma entornarei
O meu cântico aflito!
Flores cheias de aroma e de alegria,
Por que na primavera abrir cheirosas
E orvalhar-vos abrindo?
As torrentes da morte vêm sombrias,
Hão de amanhã nas águas tenebrosas
Vos rebentar bramindo.
Morrer! morrer! É voz das sepulturas!
Como a lua nas salas festivais
A morte em nós se estampa!
E os pobres sonhadores de venturas
Roxeiam amanhã nos funerais
E vão rolar na campa!
Que vale a glória, a saudação que enleva
Dos hinos triunfais na ardente nota,
E as turbas devaneia?
Tudo isso é vão, e cala-se na treva
— Tudo é vão, como em lábios de idiota
Cantiga sem idéia.
Que importa? quando a morte se descarna,
A esperança do céu flutua e brilha
Do túmulo no leito:
O sepulcro é o ventre onde se encarna
Um verbo divinal que Deus perfilha
E abisma no seu peito!
Não chorem! que essa lágrima profunda
Ao cadáver sem luz não dá conforto...
Não o acorda um momento!
Quando a treva medonha o peito inunda,
Derrama-se nas pálpebras do morto
Luar de esquecimento!
Caminha no deserto a caravana,
Numa noite sem lua arqueja e chora...
O termo... é um sigilo!
O meu peito cansou da vida insana;
Da cruz à sombra, junto aos meus, agora
Eu dormirei tranqüilo!
Dorme ali muito amor... muitas amantes,
Donzelas puras que eu sonhei chorando
E vi adormecer.
Ouço da terra cânticos errantes,
E as almas saudosas suspirando,
Que falam em morrer...
Aqui dormem sagradas esperanças,
Almas sublimes que o amor erguia...
E gelaram tão cedo!
Meu pobre sonhador! aí descansas,
Coração que a existência consumia
E roeu um segredo! ...
Quando o trovão romper as sepulturas,
Os crânios confundidos acordando
No lodo tremerão.
No lodo pelas tênebras impuras
Os ossos estalados tiritando
Dos vales surgirão!
Como rugindo a chama encarcerada
Dos negros flancos do vulcão rebenta
Golfejando nos céus,
Entre nuvem ardente e trovejada
Minh'alma se erguerá, fria, sangrenta,
Ao trono de meu Deus...
Perdoa, meu Senhor! O errante crente
Nos desesperos em que a mente abrasas
Não o arrojes p'lo crime!
Se eu fui um anjo que descreu demente
E no oceano do mal rompeu as asas,
Perdão! arrependi-me!
Álvares de Azevedo