27 fevereiro 2021

Três Rapidinhas

1 - Máscaras:

andamos tão mascarados na vida 
que a vida nos fez andar mascarados

2 - Divina Comédia 

já disseram 
que a vida é uma comédia:
é porque Deus é um irônico 
e o homem é um palhaço 

3 - Humana Comédia:

quando podemos 
não sabemos como
quando sabemos 
não podemos mais



24 fevereiro 2021

O Brasil de Kafka


O Brasil é o enredo de um romance de Kafka, o genial escritor Rei do Absurdo, só assim se entende o Brasil.

Explico: tem gente pressionando publicamente pela volta à "normalidade"... Normalidade???? Voltar a que tipo de normalidade no pior momento da pandemia no país,  em que hospitais entram em colapso,  em que mais de 1200 pessoas morrem por dia de covid-19, muitas sem atendimento, esperando por uma vaga na UTI,  em que as novas variantes se espalham em velocidade crescente e implacável?

E,  aqui no RS, o dito governador pede que as pessoas evitem a circulação,  mas,  ao mesmo tempo, quer a volta das aulas presenciais. Ir para as aulas é  um dos maiores motivos de circulação de pessoas, pois envolve o deslocamento de centenas de milhares de alunos, pais, professores,  funcionários, de transporte coletivo, de ônibus lotados, sem falar no contato inevitável entre todos eles dentro das escolas.

Só Kafka teria pensado em tanto absurdo. 

18 fevereiro 2021

Deus o Livre ou Good Vibes

as pessoas brincam sobre a época antiga do "Deus o livre!"
mas vivemos a mesma época do "Deus o livre!"
só mudaram os tipos de "Deuses o livrem!"
hoje em dia é deus o livre não se sentir feliz
deus o livre demonstrar tristeza
deus o livre não ser bem sucedido
deus o livre não ter sucesso em tudo
deus o livre não ser um vencedor
deus o livre não seguir um só dos ditames da sociedade
e mais deus o livre ainda é não aparentar tudo isso
para todos os outros
se souberem ou olharem pra ti
e tu não corresponder ao que de ti esperam
DEUS O LIVRE!
tu não vale nada. ninguém te quer.
que importa se o sofrimento 
é a única coisa que faz o ser humano evoluir
e que a tristeza nos torna mais profundos e reflexivos?
isso não vale nada
o que importam são as good vibes
prolongadas como um elástico
até arrebentarem na cara.

15 fevereiro 2021

Coisas que diria Beethoven


"eles disseram que eu não tinha futuro
que era um surdo bêbado acabado
um louco um triste um trágico
misantropo,  grosseiro,  antipático
a despencar nas valas das sarjetas
até eu provar que eu sempre fui Beethoven.

minha música veio do que mais fundo se vive
de tudo aquilo que está dentro de todos
mas que ninguém percebe de nada 
eu estive em alma em todas as vidas
em todos os tempos em todos os cosmos
porque eu sempre fui o que sou: Beethoven.

eu estive na vitória na derrota na morte no amor
as nuvens abriam caminho quando eu mandava
os relâmpagos sorriam ante a força de meus gritos
anjos fechavam os olhos sob o peso dos meus passos
eu sempre soube o que tudo e todos sentiam
porque através dos séculos eu era Beethoven.

mesmo quem nunca me ouviu, me ouviu dentro de si
eu estou em todos sendo vida paixão e mistério
eu resisti aos máximos infortúnios fui julgado e condenado
e compreendi o que se passa em cada alma em cada coração
quando eu morri desabou tremenda  tempestade
porque, digam o que disserem (e sempre dizem demais)
eu sempre serei Beethoven."




















10 fevereiro 2021

Os Urubus da Vida

é preciso se colocar a culpa em alguém
é preciso alguém para se colocar a culpa
alguém algo alguma coisa que se foda
quem é que quer assumir a culpa que for?
e continuar de que jeito depois?
tem que ter um bode expiatório
para que os outros possam 
se olhar no espelho
inocentemente
(espelho espelho meu
existe alguém mais justo 
e correto do que eu?)
a culpa não é algo que desapareça 
que se desintegre
assim do nada
ela precisa ser deixada para outros
ou depositada em algum lugar
para que a vida de alguns 
possa prosseguir.
os que assumem a culpa
são os limpadores 
os urubus da vida.

07 fevereiro 2021

Ela...

o outro lado
aquilo que não nos é 
que não vemos não estamos não entendemos
interior de floresta jamais pisado
profundo absoluto do oceano
centro impenetrável dos desertos
animais desconhecidos em extinção
notas estranhas de uma cantata de Bach
detalhe mínimo de uma pintura de Da Vinci
região de onde vieram os melhores versos de Poe
autêntica alquimia medieval
compêndios proibidos de ocultismo
pequeno país longínquo da Ásia
lado oculto da lua Júpiter Netuno 
outras galáxias supernovas  buracos negros
fantasmas espíritos aparições
e Ela
a Morte.






03 fevereiro 2021

Desastres vão até o Fim

não existem desastres pela metade
desastres vão até o fim.
é como um destino que se cumpre:
tu pode tentar o que for
não há freio que pare
não há reza que salve
não há esperança que chegue
não o importa o que se diga o que se peça
tudo vai conspirar 
para que o desastre aconteça 
o desastre não olha nem dá ouvidos
nem mesmo vira a cabeça
e não conhece misericórdia.
não há nada que possa ser feito:
um desastre é sempre perfeito.


30 janeiro 2021

A Vez da Morte

nosso mundo é um ocaso
uma tarde que se finda
sol que se põe noite que chega
tudo anoitece tudo se desfaz
nada mais quer mais ser
nada mais a não ser destruição
não é mais tempo de vida
agora é tempo de morte
irão me condenar pelo que digo, eu sei
nunca ninguém aceitou o fim
fosse do que fosse
é preciso ter vivido muitos fins
(e eu vivi)
para se entender a inevitabilidade do fim
e de que um dia ele chega.
mas não é que ele chegue  só de fora
ele também chega de dentro de nós
(talvez ainda mais)
ninguém mais quer viver grandes coisas:
nem grandes sonhos
nem grandes ideais
nem grandes artes
nem grandes amores
agora tudo se resume ao pequeno:
ter emprego dinheiro lazer
e tudo isso é ocaso
é a morte do que um dia foi grande
eu sei que ninguém quer ler isso
mas a vez da morte chegou.
e meu poema morre aqui.


25 janeiro 2021

Para Fortes

as pessoas dizem: seja forte
como se elas fossem fortes.
o que é ser forte?
se segurar em um ponto
em que deu sorte na vida
crendo que fosse mérito?
estou cansando de ver pessoas se esforçarem
tanto ou mais do que as que conseguiram
e não conseguirem nada.
o que existe é esforço com sorte
(a vida também é jogar dados)
ou sem sorte, mas não propriamente mérito.
mas voltando, o que é ser forte?
é não chorar é não sofrer?
ou é negar que se quer chorar e que se sofre?
é resistir?
mas quem é que chorando não resiste?
ser forte é NÃO ser humano?
ser forte é dar sorrisos falsos
enquanto por dentro a desgraça 
(sem que se saiba) consome?
(nem digo mentindo ao mundo
mas a si mesmo)
é se afirmar em redes sociais
enquanto a vida real está uma merda?
Forte
é quem assume que sente e vive
é quem tem a coragem
de confessar sua dor
e mesmo assim amar.
reconhecer sua fraqueza
num mundo de aparências
é só para fortes.



23 janeiro 2021

Só há juízes no mundo

cada qual é um tribunal.
só há juízes no mundo! onde é que há gente?
ou melhor, onde é que há espelho?
chegamos a um estágio tão avançado e sublime
da humanidade
que ninguém mais erra
ninguém mais tem fraquezas
ninguém mais tem defeitos
só o outro
ah, se o outro comete um erro
oh my god, como pôde?
vamos condenar vamos isolar vamos cancelar!
se não me engano foi o Cristo 
que falava sobre a primeira pedra...
mas isso foi há muito tempo
hoje não há mais humanos
só há juízes
e robôs.

21 janeiro 2021

Viver é não estar nos planos

o que se planeja
não é o que vida:
viver é não estar nos planos
não esperar
é evitar que o vindo
não seja o esperado

só espero pelo que não se espera
que é o que não depende
do inútil do meu esforço
mas de um indefinido não pensado
paisagem em súbito na estrada
susto de inspiração surgida do nada

como pode valer a pena
ser alcançado o que sempre esteve
ao alcance da mão?
a canção que mais nos comove
é aquela que canta
(em nosso íntimo)
o imenso de um não

o que é então
que deve ser como deveria?
melhor é o que não se espera
o que não se vê e nem seria

as mais longínquas estrelas
são vistas apenas
durante noites sombrias

16 janeiro 2021

O que sei fazer

pensei: o que vou escrever agora?
não tinha ideia nem inspiração nenhuma.
e continuo não tendo.
no fundo não vale a pena escrever: 
se ganha poucas coisas
e a principal é inimigos.
mas tenho que escrever alguma coisa
porque é só o que sei fazer
(e olhe lá)
não gosto de ficar dois três dias 
sem escrever nada
me sinto um fracassado
(como se eu não fosse
como se alguém não fosse).
então vou escrever qualquer coisa
alguém há de gostar
há gosto para tudo.
bom, estou ouvindo Katatonia
e bebendo whisky com gelo
lá fora se prepara uma tormenta.
e acho isso perfeito.
mais alguma coisa? ah sim:
foda-se.

13 janeiro 2021

Alarme

viver é estar atento
é ver o óbvio como sendo óbvio
(e olha que não é fácil)
se não tivermos antena
nada vale a pena

o melhor é que não nos escape nada
nem o mínimo movimento que se esconde
o como o onde o cada
o que não pode o que não há-de
como a presa percebe a cobra
como a cobra pressente a presa

há que se sentir
cada pulsar de veia
todo sinal que vibre
como o tigre persegue a presa
como a presa se esquiva ao tigre

há que se captar o gesto o cheiro a íris
o sonho o vago o sem-saída
que eu esteja sempre atento
no sangrar do crepúsculo do tempo
no que está aqui fora
e mais ainda
ao que está lá dentro

11 janeiro 2021

A Doença

nós somos os doentes de um mundo doente
e o mundo está doente porque nós o adoecemos
nós somos os doentes e a doença
doentes da doença que nós mesmos causamos
e tudo adoece ao nosso redor:
os rios têm febre alta
os animais vomitam sangue
as árvores têm hemorragias
as aves tossem sem parar
os mares estão cobertos de chagas e feridas
o céu está pálido e com fadiga
as flores não conseguem respirar
os campos têm rachaduras na pele
as florestas têm tremores e não conseguem se erguer
e as cidades têm cancer
e nós somos as células cancerígenas


31 dezembro 2020

Poema de Ano-Outro

ano-novo? que é que terá de novo nisso?
como que as pessoas esperam algo de novo
se continuamos sendo os velhos bostas de sempre?
como se a mudança viesse de fora e não de dentro
como se o que mudasse fosse a humanidade
e não o ser humano
como se o novo viesse por decreto
ou pela simples passagem do tempo
que novo que haverá dentro das mesmas regras
das mesmas convenções dos mesmos limites dos mesmos padrões?
todo mundo pensa em novo
mas ninguém muda como pensa
todo mundo fala em novo
mas segue o modelo que já está pronto
e olha com cara feia a quem segue diferente
quem quer mudar seus conceitos?
olhar pelo olhar do outro?
admitir que tem culpa que está errado?
quem é que olha pra seu coração e confessa:
"eu tenho que ser melhor"
quem é que se propõe a amar mais?
então até me falem em ano-outro
mas não me falem em ano-novo.


28 dezembro 2020

Coisas que Não Consigo (e Mahler)

eu não consigo olhar filme dublado
não consigo comer comida recém saída do fogo
não consigo usar roupas claras
não consigo tomar cerveja no inverno
frio exige vinho ou destilado
não consigo ver um gato sem admirá-lo
não consigo gostar de matemática
não consigo dormir cedo
(a não ser em caso de real necessidade, mas é complicado)
não consigo entender quem não gosta de animais
não consigo entender gente que não gosta da natureza
nem mesmo quem gosta um pouco
que negócio é esse de gostar um pouco?
natureza é para ser amada adorada idolatrada
não consigo ler poesia só mentalmente
tem que se usar a voz e sentir a sonoridade das palavras
não consigo escutar música baixa
não consigo imaginar uma reunião
divertida de amigos sem música
não consigo ficar um dia sem ouvir música
e eu não consigo ter esperanças nesta humanidade
(eu disse NESTA)
ainda mais agora enquanto escuto
as sinfonias de Mahler.






25 dezembro 2020

Beethoven e a Solemnis: "De todo o Coração"


Certo músico escreveu que se Beethoven tivesse composto SOMENTE a Missa Solemnis, já seria considerado um gênio da música. Na partitura da Missa, o seu Opus 123 (ou seja, é da mesma época da 9ª Sinfonia, Opus 125, da sua última fase) Beethoven escreveu "De todo o coração".  E de fato o é: música composta de todo o coração, de toda alma, da genialidade mais profunda. Trata-se de uma das maiores obras musicais de todos os tempos, tão alta, tão poderosa, tão imponente, tão revolucionária quanto a Nona Sinfonia, mas bem menos conhecida do grande público. Há obras bem menores de Beethoven, bem menos expressivas, como a bagatelle Für Elise, que  são muito mais conhecidas.

Não é música fácil, de se compreender com facilidade, exige uma, duas, três, quatro, várias audições, o que não a torna inacessível, pelo contrário, seu caráter é tão poderoso e impressionate que assombra a qualquer ouvinte já na primeira vez que a escutar. E mesmo sem muita concentração.

Também não é, como muitos devem imaginar, música de caráter meramente religioso, apesar do seu nome (uma missa) e de sua letra (é a letra da tradicional missa do cristianismo antigo, cantada em latim), pois a missa na música já havia se transformado em mais um gênero à serviço dos grandes gênios.

A Missa Solemnis vai muito, muito além. Beethoven não era um homem propriamente religioso. Também não era ateu. Entendia Deus como uma força, uma potência universal que abrangeria a tudo e a todos. Beethoven era um panteísta. E assim é o caráter da Missa Solemnis. Um sobre-humano monumento à essa força universal, uma obra-prima absoluta de expressão do Cosmos, do amor entre todos os seres, advinda do Ser, é a materialização musical da alma do universo.

A 2ª missa de Beethoven, ou seja, a Solemnis, finalizada em 1823, não é a única grande missa da história da música. Bach compôs a sua fenomenal Grande Missa em Si, Mozart tem a Grande Missa em Dó, Schubert, Bruckner, Haydn, entre outros, também criaram nesse gênero obras excepcionais. Mas a Solemnis de Beethoven possui algo que a torna única, inigualável, e não se sabe dizer exatamente o que é. Talvez a força descomunal, a inovadora potência instrumental, a inusitada violência sinfônica, talvez os coros alucinados, dilacerados entre o sofrimento e a glória, entre a angústia e a grandeza, entre o tragédia e o amor. Talvez tudo isso junto e ainda mais.

A Missa Solemnis é Beethoven em seu auge. É o que há de mais elevado no gênio de Bonn. É o que há de mais elevado na Arte. É arte "de todo o coração" para o coração dos homens.

Acima, um trecho da Missa Solemnis, o Gloria, em uma das melhores interpretações dessa obra gigantesca: a da Concertgebouw Orchestra, com o grande Bernstein na regência.

22 dezembro 2020

O que Falta aos Homens

não precisamos de mais mente
precisamos de mais coração.
inteligência sem coração se transforma em vazio
em maldade em destruição.
desconfia de toda pessoa 
que despreza o coração e o sentimento:
é ou será um perverso um tirano.

precisamos de mais coração:
quem ama um árvore
não corta uma árvore
quem ama um animal
não caça ou maltrata um animal
quem ama um rio um mar
não joga lixo nas águas
quem ama sua terra não destrói sua terra.
quem mantém o seu coração
entende e sente compaixão pelo sofrimento
e evita o sofrimento dos outros
busca aliviar as dores e reduzir as injustiças
só o coração traz, ao menos, a empatia
(eu nem vou falar de amor).
inteligência não significa sabedoria.

não é inteligência que falta:
o que falta é sensibilidade.
a ausência de coração
está destruindo nosso planeta
e a humanidade.

21 dezembro 2020

Poema de Natal a um Urutau



naquela noite de Natal
tu serás tu mesmo:
enquanto os homens se mostram
tu te escondes
como se nem fosses.

tu não estás nem aí
para o que os homens fizeram de 2020
ou de todos os anos que passaram 
tu és pássaro
és noite e oculto
tu existes no teu não estar
não sendo nada além de Ser
és um verbo que se fantasma
grito do não-dito
és um lamento-punhal
és toda a Dor 
de uma era final
quem te vê quando cantas?
quem te sente quando choras?
o que cantas é um susto
que não nos deixa sinal
por isso este poema
ninguém te vê ninguém te quer por perto
porque dizem que és ave-funeral
mas tu sabes, Urutau
que ninguém também 
vê o Natal.


Obs.: o urutau é uma ave noturna que se utiliza muito bem da sua incrível capacidade de camuflagem. Por isso, raramente é vista. Vive da Costa Rica até a Argentina. Seu nome, urutau, em tupi-guarani significa "Ave-Fantasma". O motivo do nome, além de sua quase "invisibilidade", é que o seu canto melancólico é uma espécie de gemido muito triste, que lembra um lamento humano.