29 junho 2014

Diversão e Inteligência

o problema da ironia
é que ela se ri dos imbecis
e os imbecis
por serem imbecis
não entendem ironias

pois uma boa ironia
é o deboche inteligente
(quase sempre)
sobre alguém
que não tem inteligência
para entender o deboche

de forma que a ironia
se torna uma brincadeira ácida
entre sagazes:
a ironia é a diversão
da inteligência

27 junho 2014

A Hipócrita e Midiática Punição de Suárez

O "caso Suárez" na Copa do Mundo não foi uma punição de uma agressão, foi o atendimento estúpido de uma demanda artificial da mídia que, por achar o caso inusitado e ver nele uma forma de "ganhar ibope" deu atenção demasiada a uma agressão sem maiores consequências para a vítima, enquanto vemos em jogos, todos os dias, agressões bem mais sérias, com potencial ofensivo e risco para o agredido muito maior. E que, muitas vezes, não resultam nem em cartões para os agressores. Muito menos em uma punição absurda de 9 jogos, privando uma seleção de seu melhor jogador em uma Copa do Mundo. 

Sim, porque quais as consequências da mordida do Suárez em Chiellini? Uma dor momentânea, passageira e uma marquinha de dentes no ombro. Talvez, sangrasse um pouquinho. Só. Nada mais além disso poderia acontecer. Agora, a cotovelada de Neymar em um jogador da Croácia, por exemplo, poderia ter quebrado os dentes, até mesmo o nariz, da vítima. Poderia lhe lesionar um olho. Mas nem falta foi marcada, e ninguém viu nem se mostrou nada. Porque isso acontece todos os dias.  Não foi algo "diferente", como a mordida de Suárez, que foi tomada como mais um showzinho para a hipócrita "Sociedade do Espetáculo se "impressionar" com a "violência" de Suárez. 

O trecho abaixo, retiro da coluna de Hiltor Mombach, no jornal Correio do Povo:

"... o lance envolvendo Marchisio e Arévalo Rios, aos 14 minutos finais. O italiano levanta a perna, enfia o pé na canela de Arévalo e, não satisfeito, pressiona com a clara intenção de machucar o rival. Machucou, apenas, quando poderia ter quebrado a perna. Pela solada que poderia ter aleijado Arévalo, Marchisio levou o vermelho. Ficou nisto. "

Injustiças como a cometida pela FIFA, no fundo, nem são culpa da entidade. É culpa de uma sociedade que elevou a hipocrisia e a aparência a patamares absurdos, onde o diferente é punido pelo simples fato de ser diferente dos "padrões estabelecidos". A agressão de Suárez foi uma agressão? Claro. Foi violenta? Não, foi diferente, inusitada. O jogador foi punido por isso. E ponto final.

Porém, creio que agora a garra e a força uruguaias, com esse episódio, serão triplicadas para compensar a ausência de Suárez, e, de uma certa forma, vingar a injustiça. É para o Uruguai que torço. Inclusive, se jogar contra o Brasil. 

26 junho 2014

Adeus, Poesia

I

adeus, Poesia

não vês
que o fim te bate a porta?
só os raros ainda vivos
não pensam
que tu estás morta

II

Poesia
não serves para nada
sempre foste muito
para ser (f)útil

sábia demais
para os sermões

e alta
entre os anões

III

da tua última carta
mais ninguém
abrirá o selo.
melhor assim...
o que verdade
(agora)
antes morrer
do que dizê-lo

IV

adeus, Poesia
abandonas o mundo
para ir com a alma
que abandona os homens

e isto ficará escrito
em sangue 
e espírito

22 junho 2014

Sobre Copas

qualquer um que queira
melhorar a humanidade
perderá uma Copa
todos os dias

não adianta
as pessoas não mudam
a não ser de capa

o melhor
é ir para a copa do bar
encher o copo
e a cara

20 junho 2014

dos Homens que Temem a Morte

I

há homens
que temem a morte
porque não se conhecem:
quem não se conhece
não sabe o que faz
quem não sabe o que faz
não sabe o que segue
após o que se fez

II

há homens
que temem a morte
porque se conhecem

III

há homens
que temem a morte
porque não conhecem

IV

há homens
que temem a morte
porque não conhecem
que já estão mortos

V

há homens
que temem a morte
porque só conhecem da vida
aquilo que morre

VI

só não temem a morte
os que conhecem
o que vivem

(Na imagem, "Death on a Pale Horse", de William Blake)


18 junho 2014

Não Jogar Pérolas aos Porcos

ontem
tentou elevar a humanidade
propondo o amor
como o maior desafio...
hoje
imenso
foi à puta que pariu

ontem
tentou ampliar horizontes
trazendo às pessoas
uma reflexão profunda...
hoje
grandioso
tomou na bunda

ontem
tentou derrubar limites
dissolvendo egoísmo
entre o meu e o seu...
hoje
monumental
se fodeu

(Na imagem, detalhe de "O Jardim das Delícias Terrenas" de Hieronymus Bosch)


17 junho 2014

Alemanha, Tetra?

Assistindo ao jogo entre Itália e Inglaterra, sábado, ocorreu-me calcular os anos que os maiores campeões de Copas do Mundo levaram para conquistar seus títulos. Uma curiosidade interessante que constatei, a qual publiquei em meu perfil do Facebook domingo, é esta: O Brasil foi tricampeão do mundo em 1970 e tetra em 1994, 24 anos depois. A Itália foi tricampeã em 1982 e tetra em 2006, 24 anos depois. A Alemanha foi tricampeã em 1990. Fica a pergunta: a coincidência da "transição" dos tris para os tetras prosseguirá, e a Alemanha será tetra em 2014, 24 anos depois? A julgar pelo seu jogo de estreia, com a goleada que humilhou Portugal, é bem possível. Aliás, é o meu palpite. Alemanha tetra.

15 junho 2014

Entre Horrores e Alguns Risos

os homens
acreditam que fazem...
mas nada fazem:
têm a ilusão de que o que é feito
é feito por eles
quando em verdade o que é feito
é feito pelas circunstâncias

o homem não age
é vítima

o que o homem faz
é se arrastar pelo que acontece
desviando-se aqui e ali
com uma hipocrisia
e uma desonestidade
como um verme se desvia na lama
entre horrores e alguns risos
entre infâmias e alegrias
medos erros e cagadas
(seus autênticos feitos)
segue o homem pelo engano
de que o seu nada
é um nada feito

é só um nada acontecido
que estaria onde está
de qualquer jeito:
coisas erguidas tortas
por uma humanidade torta
com objetivos torpes:
explorar seus humanos toscos
para (dizendo) fazer um mundo melhor
que acaba sempre mais torto

o homem pensa
que faz o seu feito
mas o faz
como quem larga um peido:
involuntário e (uma hora) inevitável
que acaba sendo só vento
levado pelo tempo

13 junho 2014

O Corte de Pinus na BR 287 e a Genialidade de alguns em Santiago



Em Santiago há muitos gênios incompreendidos. Alguns deles são aqueles que defendem o corte de pinus em trechos entre Santiago e Jaguari nas margens da BR 287. Estão cobertos de razão. Os pinus são plantas mortíferas e traiçoeiras, que se antepõem entre os motoristas e seus naturais desvios de percurso. Além de serem plantas absolutamente feias. Observem, por exemplo, acima, as imagens horríveis e deprimentes onde, em rodovias da atrasada Europa, os pinheiros ameaçadores ficam quase que dentro da estrada. Um absurdo! E percebam ainda que, na Europa, continente onde a educação é desprezada, nem há acostamento naquelas rodovias. O que farão os motoristas quando vier um caminhoneiro enlouquecido invadindo a pista contrária? Ou dirão agora, talvez, que na Europa não existem caminhoneiros enlouquecidos?

Definitivamente, nossos gênios estão certos, os pinus devem ser extirpados. Ou vão querer proibir os homens de bem e progressistas, cultos e conscienciosos, de dirigirem seus carros, de último tipo e potentíssimos, a 160, 170 km/h? E na eventualidade de algum acidente com esses motoristas absolutamente inocentes, para que acidente mais humilhante do que bater o carro em um pinheiro, naquelas plantas exóticas e com clima de cemitério? Melhor é espatifar o carro em uma parede de terra,  direto na vívida terra brasileira, ou, melhor ainda, capotar algumas vezes em uma planície aberta. Ou descer barranco abaixo, afundando em um perau. É mais belo e mais emocionante.

Além do mais, árvores estão fora de moda. Ou melhor, a moda são as árvores cortadas, seus tocos à vista, parecendo banquinhos em praças bucólicas. Ou seja, os gênios santiaguenses, além da segurança, também estão preocupados com a beleza, com a estética de nossas rodovias. Por isso que eu os parabenizo e os louvo, e estou certo de que farão bom uso dos troncos dos pinus cortados, enfiando-os naquele lugar propício. 


12 junho 2014

da Decadência II – O Sem Sentido

no mundo atual
não há espaço
para o mundo interior:
o lírico foi asfixiado
entre as vitrines da aparência

por isso
não mais falo
do que sinto:
a qual alguém pode interessar
o que um outro sente
se o alguém nem sente
por si mesmo
e nem quer saber do outro?

só há sentido
no sentimento expresso
quando o outro
o reflete e o encontra
expresso no seu ser

mas ninguém
nem se encontra no seu ser
nem reflete por si mesmo
nem se expressa o que não sente
e por Fim
nem sentido há algum

09 junho 2014

Opinião Unânime*

desconfio
de toda opinião unânime
ou quase unânime:
pusilânime
desconfio
de tudo que é tido
como já tido
como aceito
do tipo
“isso é o certo
o correto
e não tem jeito.”

desconfio
de tudo que é dado
para se ficar
do lado
do que é dado
como fato
e ato
do que é bom
e sensato

porque isso
me cheira
a enfático
a acrítico
midiático
patriótico
idiótico
mecânico
robótico

porque isso
me cheira
a coisas
empurradas
pela goela
com cobertura
de chocolate

ou enfiadas
mais adiante
(lá embaixo)
bem untadas
com azeite
e lubrificante

*Poema reelaborado e republicado

06 junho 2014

Bêbado

I

ser poeta
é estar enchendo a cara
no final da reta
ter chegado antes
e contemplar já bêbado
a chegada cágada
aos trancos e aos rastejos
do que resta
dos humanos sãos
com seus saudáveis desejos

II

o verso é o outro caminho
do paralelo ao fracasso
onde sopra uma vida de vento
e uma alma de aço

III

ser poeta é um ato infame e vil:
é saber
olhando nos olhos
de cada um
o quanto há de humano
e o quanto há de imbecil

04 junho 2014

da Decadência

o que há de mais vazio
do que o discurso de uma autoridade?
o que é perdoável,
sendo o representante
legal oficial
o preparado autorizado
a ser o nada absoluto
que ele interpreta ao absurdo

o que há de mais vazio
do que o decurso desta atualidade?
o que é perdoável,
sendo a época-reflexo
de um espelho
que reflete os vácuos de si-mesmos
um caminho sem-sentido e sem-estrada
entre abismos e desalmas

o que há de mais vazio
do que o percurso desta humanidade?


02 junho 2014

Governo combate cigarro, mas nada faz contra pragas ainda piores: funk e sertanejo universitário

Que o governo tenha eleito o cigarro como bode expiatório e culpado por todos os males da saúde pública é compreensível em um país que, por exemplo, é campeão, há muito tempo, no uso de agrotóxicos e nada faz para acabar com esta situação vergonhosa. 

Agora, o que não entendo, é como se permite que pragas degradantes como funk e sertanejo universitário, ambas, degenerações dos gêneros originais, sejam proliferadas indiscriminadamente em nosso país, infectando psiques e causando a liquefação de milhões de cérebros de vítimas com predisposição à imbecibilidade, na maioria das vezes de indivíduos jovens.

Por isso, já que virou moda se fazer todo tipo de campanha, deveriam criar a campanha "CUIDE BEM DO SEU CÉREBRO!" e o Dia Nacional de Combate ao Funk e ao Sertanejo Universitário. 

Para tal feito revolucionário, deveria ser criado o Ministério da Inteligência e da Sensibilidade. O problema é que para esse ministério não se poderia colocar nossos conhecidos políticos, devido ao fato de que o cargo exige, como sugere o próprio nome, inteligência e sensibilidade. 

Uma sugestão para a campanha seria: "O Ministério da Inteligência e da Sensibilidade adverte: ouvir funk e sertanejo universitário imbeciliza sua psique, degenera suas células cerebrais, deteriora sua capacidade de raciocinar e atrofia suas funções emocionais, podendo causar morte interior precoce." Ou ainda: "Não há níveis seguros para a audição desses coliformes fecais dissimulados em sons".

O mais difícil do problema é convencer as vítimas de que estão ouvindo merda, uma vez que tais degradações sonoras realizam uma insidiosa lavagem cerebral e causam fobia à boa música. 


30 maio 2014

Testamento

escrever uma palavra
antes que a palavra acabe:
nem ao menos um poema
que um poema nem mais há de ...
mas viver uma palavra
que ao menos não nem nada
pois nem mesmo vai ser lida
e se for: mal compreendida
mas sofrer uma palavra
que já era no que foste
e antes que o dizer se morra
e antes que o amor se passe
(como se ele já não fosse)
construir uma palavra
antes que o humano acabe
(como se ele ainda fosse)...

enfim
te deixar uma palavra
entre caos horror e calma
antes que se dane a vida
e antes que se foda a alma...

28 maio 2014

Homem Fraco - Caderno Pragmatha

Poema publicado na edição 57 do Caderno Literário Pragmatha, de Porto Alegre. Para ler, clique na imagem.

25 maio 2014

Final de Sinfonia (e de Humanidade)*

tudo ao mesmo tempo agora
tudo o que já foi
sendo outra vez como não foi
sendo em tons mais abaixo
entrecruzando-se em escalas mais graves
mais graves
mais baixas
a humanidade agora
é todas as humanidades
ao mesmo tempo
e ao mesmo tempo
não é humanidade alguma
é todos os ideais e todas as ideias
e sendo todas não é nenhuma
vê como tudo que foi feito
tende a ser feito outra vez agora
mas não em um após o outro
mas em um sobre o outro
conversões e convivências
feito de forma que se desfaz
para acabar finalmente não sendo

há de tudo hoje pelo humano mundo
mas esse tudo torna-se um nada
que não leva a mundo humano algum

a humanidade é agora todos os seus temas
que foram a sua história
todos os temas
ao mesmo tempo agora
toda a orquestra
tudo o que já foi tocado
tudo foi tocado e nada resta
como o final de uma sinfonia
o final de uma sinfonia
em termos artísticos e humanos
vazia

*Poema reelaborado e republicado.

23 maio 2014

A Coisa Taciturna*

Bêbado de vinho e de noite, outra vez vagava pela madrugada. Mas ao invés do silêncio noturno esperado, alguma coisa perturbadora, algo como um ritmo lento, macabro, hipnotizante, surgia de todos os cantos, sem que eu soubesse exatamente de onde e qual a causa daquelas batidas absurdas.

A princípio, eu ouvia, ou acreditava ouvir, conforme avançava pela sujeira das ruas, sapos que batiam seus pés em uníssono. Delírios de um bêbado com a imaginação exacerbada, pensei. Talvez, se esse fosse o único som que eu escutasse. Havia outros, e eram piores.

Das árvores surgia alguma coisa como batidas de bicos de aves, transmitiam a sensação de que bicavam uns nos outros, ou como se tentassem furar a madeira, e a madeira propagava o som da carne sendo furada. Mas eu não posso dizer se realmente era assim. Para mim era como se fosse. Sei que a sensação era horrível e que o ritmo crescia em velocidade e barulho.

Sons de baques de pedras enormes em açudes, em abismos, em poças surgiam de todos os lados. Ruídos agudos de brigas de punhais, de espadas, antigos gonzos orientais, tudo soava simultaneamente. Ou alguma coisa, alguma força desconhecida, sobre-humana, absurda, fazia-os soar. Aquele barulho infernal findou-se, ou deu uma trégua, após eu ouvir se aproximar um gigantesco galope de cavalos, seguido por pancadas retumbantes, ruídos brutais de machados quebrando crânios e, por fim, uma série de pauladas cuja categoria de som não pude determinar,  mas das quais o ritmo era matematicamente perfeito, que se finalizou de súbito com uma espécie de tiro de canhão muito próximo. E tudo retornou ao silêncio.

Mas o silêncio era tão insuportável quanto os barulhos. Porque parecia anunciar que mais horrores viriam. Eu estava absolutamente certo de que em breve desabaria um temporal, mesmo antes de qualquer sinal de tempestade. De modo que em questão de poucos minutos, relâmpagos apareceram ao longe, e ouvi sons abafados de trovão. A tormenta se intensificava e se aproximava rápido. Pensei em ir para casa, mas não sabia como. Não havia um caminho. Ou melhor, havia um caminho que não era o caminho de volta. E que eu não sabia para onde me levaria. Eu estava perdido.

No escuro completo, aguardando a tempestade, sentei-me desolado sobre uma pedra úmida, intentando me concentrar para lembrar o caminho. Então uma coisa surgiu que parecia chorar. Tive a impressão que estava em algum arbusto próximo a mim. Mas aquele som de choro foi crescendo e percebi que não estava tão perto como imaginei, mas que advinha de longe e não era um choro, era um violino, ou algo como um violino, desesperado e fúnebre.

Um som de um violino transtornado, que aumentava de forma incessante seu volume, pairando pesaroso pelos ares densos de tempestade. E logo começou a ser acompanhado por outros violinos, que formavam uma melodia estranha, caótica, dilacerada. E os violinos passaram a ser acompanhados por outros instrumentos de cordas, tais como violoncelos e contrabaixos, formando uma apocalíptica orquestra de cordas cujo ritmo era determinado pelos trovões e relâmpagos da tormenta que já caía sobre mim. Era como se um dependesse do outro para existir, a tempestade da orquestra e vice-versa. Pelo menos essa foi minha impressão. Que se intensificou quando olhei para o alto e vi aquela massa monumental de tormenta assomando-se sobre onde eu estava, ameaçadora, ao mesmo tempo em que os sons das cordas amplificavam-se indefinidamente.

Não havia onde me abrigar da chuva torrencial, e fiquei ali, sentado sobre o temporal e ouvindo os acordes crescentes e magnéticos daquela orquestra alucinada. Porém, transcorrido um curto intervalo de tempo, o som orquestral, ou seja lá o que fosse aquela coisa, sofreu uma substancial modificação.

Os sons emitidos pareciam agora energizados, elétricos, carregados, como se eles próprios fossem raios e era praticamente insustentável continuar os ouvindo. Pensei que iria ensurdecer em definitivo, quando um raio acompanhado pela orquestra elétrica (ou talvez não fosse que um acompanhasse o outro, mas que consistissem em essência a mesma coisa...) caiu a algumas centenas de metros de mim, em um estrondo indescritível, em uma descarga de eletricidade que iluminou quilômetros e quilômetros de horizontes funestos e desolados. E a tempestade e a música caótica cessaram-se de súbito.

Após um breve instante, a chuva retornou, porém era mais uma garoa do que uma chuva, um gotejar lento e monótono. De maneira simultânea, uma densa névoa entranhou-se através das árvores e invadiu todo o ambiente. Principiei a ouvir algo como uma voz ao longe... Sim, agora era realmente uma voz humana, ou, ao menos, um simulacro de uma. Consistia numa voz arrastada e de uma tristeza arrepiante, um lamento desesperado. De início, parecia ser apenas uma voz por entre a cerração, mas em um curto espaço de tempo outras vozes somaram-se à primeira, de modo que formaram um coro de lamentações. Porém, não conseguia entender uma palavra do que pronunciavam, ou cantavam, ou choravam, não sei dizer exatamente o que era aquela coisa.

Caminhei alguns metros em direção às vozes, talvez, pensei, fosse quem fosse que ali estivesse, soubesse um caminho para sair daquele lugar. O que vi, no entanto, foi algo como uma caravana de pessoas com longos palas escuros e encharcados, com botas atoladas na lama. Apesar da escuridão e da névoa, pude distinguir todas essas coisas, porque quando perceberam minha presença, aqueles homens, se é que eram homens, acenderam inúmeros lampiões de uma luz doentia.

Então uma voz que parecia estar à frente do grupo, ainda que quem a emitia eu não pudesse ver, gritou, ou rugiu, com uma violência absolutamente monstruosa e imperativa, que todos nós, inclusive eu, deveríamos seguir aquela coisa que era nosso destino, o destino de todos nós.  Bem, eu não tinha alternativa. Deram-me um pala negro, vesti-o, e me incluí na caravana...

(Na imagem, detalhe de "A Tentação de Santo Antônio", de Hieronymus Bosch.)

*Este conto foi escrito a pedido da banda The Taciturn Thing, e também constitui uma forma de homenagem ao trabalho dos amigos Alan, Luiz Paulo e Marlon.

20 maio 2014

Eu Não me Explico

não me explico
ponto.

por que deveria dar um motivo
para perder ou não o meu siso?

reservo-me o inexplicável direito
(com o que faço
só eu devo estar satisfeito)
de dizer-me ou não
e se assim desejo
se for pelo dizer mais alto
(ou sonho que me tomou de assalto)
de meu eu eu me desdigo
ou nunca falo do meu falo
e não sou meu próprio umbigo

a minha palavra vai
e isso basta:
vai por um longo longe de  mim
e por outra maior estrada

se eu tivesse que explicar tudo
melhor seria não dizer nada

18 maio 2014

Quatro Chutes na Bunda da Civilização, por Bukowski

o Velho Bukowski sabia o que dizer para esta humanidade, confiram:

Chute 1:  “Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?”

Do romance "Factótum"

Chute 2: "Havia alguns turistas, velhos, determinados a aproveitar suas férias. Espiavam ferozmente as vitrines das lojas e caminhavam, batendo os pés contra o pavimento, emitindo raios que anunciavam: tenho dinheiro, temos muito dinheiro, temos mais dinheiro do que vocês, somos melhores do que vocês , nada nos preocupa, tudo está uma merda, mas nós estamos bem e sabemos como funcionam as coisas, olhem para nós.

Com suas camisas rosas e verdes e azuis e corpos brancos e simétricos apodrecendo e calções listrados, olhos esvaziados de olhar, bocas desbocadas, caminhavam por aí, cheio de cores, como se cores pudessem ressuscitar a morte e transformá-la em vida. Eles eram uma espécie de carnaval da decadência americana, um desfile, e não faziam ideia da atrocidade que infligiam a si mesmo."

Do conto "Sem pescoço e ruim como o inferno"

Chute 3: "Como qualquer um pode lhe dizer, não sou um homem muito bom. Sempre admirei o vilão, o fora da lei, o filho da puta. Não gosto dos garotos bem-barbeados com gravatas e bons empregos. Gostos dos homens desesperados, homens com dentes rotos e mentes arruinadas e caminhos perdidos. São os que me interessam, cheios de surpresa e explosões. (...) Posso relaxar com os imprestáveis, porque sou um imprestável. Não gosto de leis, morais, religiões, regras. Não gosto de ser moldado pela sociedade."

Do conto "Colhões"

Chute 4: "Big Bart era o melhor e ele sabia disso.(...) Encontraram uma carroça que fazia sozinha o caminho pela pradaria. Um garoto magricelo de aproximadamente 16 anos com um caso sério de acne estava nas rédeas. Big Bart se aproximou e conduziram lado a lado: 

- Qual é, garoto? - ele disse.
O garoto não respondeu.
- Estou falando com você, garoto...
- Vai tomar no cu - disse o garoto.
- Eu sou Big Bart
- Tá, vai tomar no cu, Big Bart - disse o garoto.

Do conto "Pare de olhar para minhas tetas, senhor"