11 fevereiro 2009

Poemas do Término e Contos do Fim 33

Com um pouco de atraso, hoje será lançada a edição 33 do zine Poemas do Término e Contos do Fim, referente aos meses de janeiro e fevereiro. Nesta edição, está o final do conto "Otacílio e Madalena (ou a Morte do Pampa)", 3º conto da série sobre o fantástico na história gaúcha, além do conto "Em Chamas". Contém ainda 6 poemas insensatos.

Em Santiago, em breve o zine poderá ser encontrado nas locadores Fox e Classic, na Biblioteca Municipal e na Ponto Cópias. A partir de março, poderá ser encontrado, inclusive, na biblioteca da Uri.

Ele também é distribuído nas seguintes cidades: Santa Maria/RS, Santo Ângelo/RS, São Leopoldo/RS, Porto Alegre/RS, São Gonçalo/RJ e Goiana/PE. Pode ser enviado para qualquer cidade do Brasil ou exterior, sendo cobradas apenas as despesas de correio.

Dengue, Febre Amarela, Leishmaniose

Apenas um pequeno comentário, pois o objetivo deste blog não é realizar análises de fatos do cotidiano, como os leitores já devem ter percebido. No entanto, reservo-me o direito de fazê-lo, quando julgar oportuno.

Há poucos anos atrás, e sou testemunha disso, ouvíamos dizer que o RS estava livre da dengue, uma vez que o clima frio do inverno impedia a proliferação do mosquito transmissor. Pois bem, ano passado tivemos uma epidemia de dengue no estado, que pode se repetir em 2009.

O último caso de febre amarela no RS havia sido em 1966, e a doença sempre foi raríssima aqui. Agora, em poucos meses, vários gaúchos foram vitimados pela doença, sendo ela contraída aqui, em nosso território. Se ainda não é uma epidemia entre os humanos, o mesmo não se pode dizer entre os indefesos bugios, as maiores vítimas do mosquito da febre amarela.

Ainda mais recentemente, em São Borja, surgiram casos de leishmaniose em cães e humanos, outra doença transmitida por mosquitos, o mosquito-palha. Diga-se de passagem que essa era outra doença praticamente inexistente no RS.

Mas o que mais me impressiona é que as autoridades responsáveis pela saúde no Estado parecem não demonstrar o mínimo interesse em procurar as causas do surgimento dessas doenças. Ou será que sabem as causas e não querem divulgar? Por que os mosquitos estão se proliferando tanto? Pela devastação das matas que os abrigavam, que cria ambientes favoráveis para sua multiplicação? Pela aniquilação dos predadores naturais dos mosquitos, em particular as aves, vítimas anônimas dos agrotóxicos, da caça, do tráfico? Pela formação irrefreável de inúmeras barragens de hidrelétricas no interior gaúcho, que além de inundar grandes áreas florestais, cria condições para o desenvolvimento das larvas dos mosquitos?

Ou será pelo aquecimento global, o qual muitos insistem em negá-lo? Todos sabem que quanto mais quente, melhor para os mosquitos, e para os insetos em geral. Ou será todos os motivos reunidos? São respostas? Não, são perguntas. Quem as responderá?

08 fevereiro 2009

Trecho de um Instante de Sono

e suas vozes rápidas
me calculavam as distâncias
fala comigo tu que tens olhos
tanto o amor é divino
que não adivinho em amar
um lago de piano em perfumes
mergulhou-me nas árvores
vi tudo que vinha voar lá nos vales
sentir o sonho distante dos vinhos
vagas caladas fluindo tua pele
vi tiros tortuosos nas lápides
não sou aquele que penso
castelo de almas ruiu-me aos teus beijos
cada vez que te passo
me vejo nos verbos
e atrás daquelas luas
são duas tão nuas são tuas
Deus me olha com cara de louco
por dormir-me contigo
um pouco...

07 fevereiro 2009

a Dante Alighieri

o que teus Olhos veem
dentro
de mim?
ó visionário do não-visto
o que teus Olhos veem
no além
de mim?

em trombetas a gritos de nove
sete demônios olham de mim
do sangue que cai da minha noite
lago de morto em tudo que fui
flecha em veneno varou-me do sol
olho de fogo abriu-se de mim
o gelo do fim beijou-me na essência
em meus sonhos de Cérbero os dentes
que veem teus olhos em mim o Inferno?

mas como chegar ao Paraíso
sem morrer no Purgatório?

o que teus Olhos veem
Dante
de mim?

04 fevereiro 2009

à Loucura

jamais se sufoca a Loucura
que só ela sente o sonho do sol
antes que nos chore a noite
só ela beija o lilás dessas rosas
antes que as geade o inverno
só ela soa o pulsar do violino
antes que se matem as cordas
só ela traga o sopro do vinho
antes que nos seque o sangue
só ela abraça o infindo da estrela
antes que a tormenta a vele
só ela toca o longe de uns olhos
antes que os beba o Fim...

jamais se sufoca a Loucura:
há que se pousar na Eternidade
antes que o Eterno acabe

03 fevereiro 2009

A Relação Demoníaca


Poucos acontecimentos causaram-me uma sensação tão dilacerante de tristeza e fatalidade como a impiedosa maldição que recaiu implacável sob aquela bela menina, a infeliz Daniele. Muitos simplórios insistem em crer que tudo não passou de algum terrível mal meramente orgânico, uma enfermidade desconhecida, de origem unicamente física. Todavia, não apresentam provas do que afirmam, nem mesmo indícios. Todos os exaustivos exames realizados não obtiveram o mínimo esclarecimento, e o caso permanece obscuramente inexplicável, pois nenhum possível agente patogênico foi encontrado no corpo de Daniele, nenhum de seus órgãos apresentava qualquer deficiência, no entanto, a menina enfraquecia cada vez mais...

Conheci muito bem a pobre Daniele. Melhor ainda, o que ocorreu com ela. Quando surgiu das trevas aquele demônio, a menina não tinha mais que 14 anos. Eu, quatro anos mais velho, estava absolutamente fascinado com sua beleza e expressão de ternura e inocência. Mais um passo, e cairia nas garras insanas da paixão. Mas, talvez, Daniele não fosse tão inocente quanto sugeria sua doce fisionomia. Estou firmemente convicto de que a demoníaca maldição foi atraída por sua própria vontade, como funesta conseqüência de seus terríveis e irrefreáveis desejos sexuais, os quais todas as noites a assaltavam até exaurirem miseravelmente sua energia vital. Sei de tudo, porque fui um observador assíduo de sua vida, queria conhecê-la a fundo. Fui a única testemunha da infernal cena. Minha atração pela menina era tão veemente que me utilizei de todos os meios ao meu alcance para retirar o véu de sua existência.

Posso afirmar com segurança que durante quase dois anos soube que a formosa e plena de vida Daniele deitava-se em seu leito, cobria-se com um lençol ou cobertor e principiava a acariciar seus seios e órgão genital durante prolongados minutos, ou seja, masturbava-se com uma tremenda volúpia sexual. Estando Daniele em plena adolescência e sendo ainda virgem, a energia sexual da menina encontrava-se em seu ápice, em seu esplendoroso e arrebatado afloramento. Percebiam-se as correntes energéticas percorrendo em fosforescente eletricidade todo o seu superexcitado organismo, incendiado pelo desejo sexual. Contudo, tal energia poderosa e incontrolável era todas as noites descarregada no ambiente penumbroso de seu quarto através da masturbação. Sua energia sexual, quando ainda em seu corpo físico, antes do orgasmo, oferecia aos olhos uma fulgurante visão que brilhava deslumbrantemente nos canais etéricos de seu formoso organismo. Entretanto, uma vez jorrada no ambiente externo pelo orgasmo, aquela cintilante energia multicolorida tornava-se opaca, avermelhada e sanguinolenta, às vezes pendendo para o negro.

Para onde iria toda aquela energia? De alguma forma ela seria aproveitada... Lembremos da célebre sentença de Lavoisier: “Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. A energia se transforma, como a energia sexual de Daniele, que se metamorfoseou pela infrene masturbação. De límpida e fulgurante, tornou-se escabrosa e pestilenta.

A energia alastrava-se pelo ambiente astral de seu quarto, e este, com o passar dos dias e com a repetição dos atos masturbatórios, foi acumulando toda aquela energia sexual desperdiçada. Foi acumulando, até que, em certa noite tenebrosa, que ainda sinto calafrios ao recordá-la, uma negra e espantosa presença diabólica penetrou pela porta de seu quarto... Irradiavam-se pestilências e malignidades da coluna vertebral visível daquela coisa. E ela foi lentamente sugando através de asquerosos tentáculos membranosos a densidade energética ali presente.

Aquilo era como um repulsivo espectro que flutuava abjetamente pelo ar. Tinha olhos amarelados e doentios, arregalados e com veias proeminentes. Arrastava uma imensa cauda imunda e, na cabeça, apresentava um par de orelhas desproporcionais e repugnantes que balouçavam constantemente. Sua face envelhecida e impregnada de furúnculos, com um nariz de formato suíno, causava uma repulsão e um medo arrepiantes. Suas mãos escamosas eram enormes e projetadas para frente, com unhas curtas e pontiagudas, de uma nojenta cor arroxeada. Aquela coisa esvaziou o ambiente, sorvendo com repelente prazer a energia sexual despejada na atmosfera por Daniele.

Minha impressão negativa foi tamanha que me retirei do local e somente a ele retornei uma semana depois. Quando o fiz, meu horror foi ainda maior, ao contemplar, no aposento iluminado somente pelo luar, aquele ser diabólico sobre o corpo de Daniele, realizando um revoltante ato sexual com a menina. Esta aparentava sentir um imenso prazer, porém, seguramente, não tinha consciência do imundo demônio que estava sobre ela. Para Daniele, tudo não passava de masturbação. No entanto, o hediondo diabo, astralmente, aproveitava-se de forma perversa da assombrosa luxúria da adolescente, drenando toda sua energia vital e assim mantendo a sua ominosa existência.

Após presenciar tão chocante cena, não tive mais ímpetos de à noite visitar minha admirada menina, tamanha era minha perturbação. Dias depois, caminhando abatido pelas ruas, ocorreu-me o feliz incidente de encontrar Daniele. Como nos conhecíamos, chamei-a para termos uma breve conversa. Disse que a achei um tanto magra e desanimada e perguntei se estava sentindo-se bem. A menina, entristecida, macilenta e com fundas olheiras, respondeu-me que fisicamente sim, mas não psicologicamente. Declarou que sofria de horríveis pesadelos. Em um deles, disse-me que via espiar furtivamente pela porta de seu quarto uma horripilante e repulsiva velha de aparência inominável. A velha ria malignamente de Daniele, em um riso torpe e encatarrado; em seguida, piscava seus enormes olhos dilatados e se ocultava atrás da parede. Daniele contou-me ainda que ouvia seus passos arrastados distanciarem-se lentamente de seu quarto. Então se acordava em estado de indizível pavor. Tais sonhos repetiam-se freqüentemente.

A menina narrou-me também que certo dia, durante o final da tarde, viu, sentado sobre um muro, um homem estranho e muito feio que a olhava fixamente e apontava-lhe o dedo indicador como em um sinal de advertência. Então o homem pulou do muro, sorriu sinistramente e desapareceu de maneira furtiva. Ao dizer isso, vi que os olhos ainda belos de Daniele encheram-se de lágrimas. Senti uma cortante piedade da menina, mas não sabia o que fazer, nem mesmo o que dizer a ela. Despediu-se rápida e nervosamente, e eu ali permaneci como se minha alma estivesse aniquilada.

Meses depois, retornei ao seu quarto e aguardei alguns instantes, enquanto Daniele lia em sua cama. Minutos depois apagou a luz e principiou a se masturbar sob as cobertas. Não demorou muito para que aquele demônio surgisse vagando pela porta e lentamente flutuasse de forma abjeta sobre a adolescente, efetuando outra nauseante relação sexual, explorando a inconsciência da menina. Não mais pude permanecer diante daquela visão deprimente e voltei à minha casa. Passadas algumas semanas, encontrei outra vez Daniele na rua. Estava verdadeiramente acabada, esquelética, como que corroída por uma peste letal. Sua beleza murchara, secara, sua vida esvaí-se como o vinho que escorre de uma taça quebrada. Dias depois, fui ao velório de Daniele.

Semanas após seu falecimento, estando meu corpo adormecido e meu espírito vagueando pela dimensão astral (que era como eu visitava Daniele em seu quarto), tive um encontro com um perverso homem... Possuía uma bela aparência e segurava um cálice que julguei contivesse vinho. Estas foram algumas das palavras que o sinistro homem me dirigiu:

- Pensas que bebo vinho? Não. Bebo sangue, bebo a vida que o sangue espiritualmente contém. Assim mantenho essa aparência física através dos séculos, que não é a real, mas é com ela que me apresento imaginativamente às mulheres, entre elas a tua querida Daniele... Certamente, vira-me na forma real tendo relações com ela, não? Pois a menina via-me em sua mente com um aspecto bem diferente... Ah, suguei toda a sua energia, mais do que normalmente faço, pois ela era muito receptiva. É claro que com a maioria das mulheres, não chego a matá-las, dreno um pouco de energia, e isso é tudo. O máximo que pode ocorrer é elas terem alguma doença, ou serem infelizes no amor, pois não poderão amar devidamente, se é que me entendes... Logicamente, não sou o único a realizar tais ações, tenho colegas, masculinos e femininos. Minhas colegas femininas, é óbvio, sugam os homens. Atuamos não só em masturbadores, mas também em relações sexuais feitas sem nenhum sentimento, sem amor. Ah, quantos belos rostinhos nós já secamos... mesmo que lenta, bem lentamente, quase imperceptivelmente... Mas o que é isso? Não, não chores pela Daniele! Hahahahaha!

02 fevereiro 2009

Seca

minha poesia
é pesada de tristeza
e paira como chumbo pelo ar
como um peso nas minhas costas

é atmosfera
em prole de pesares
princesa pesarosa
preta pestilência
um pêsame plúmbeo
um pesadelo em pânico
uma peçonha sem paz

minha poesia
é um pecado em prece
relâmpago em pedra
prelúdio de praga
prístina sombra
perturbada
de púrpura pálida
em protesto profundo...

minha poesia
é como a nuvem negra
que ameaça carregada
e toda nuvem negra é benvinda
após a seca massacrante

31 janeiro 2009

U

mantra do luto
intercessor das corujas
sustentáculo dos túmulos
lúgubre ululo dos galopes
sussurro dos vultos
soluço do fúnebre
púrpura dos ocultos
Hino de Urubu!

Ó U!!!

essência verbal do escuro...
será por acaso
que és a vogal principal
de Futuro?

29 janeiro 2009

O Réquiem de Brahms (Op.45)


O réquiem é uma composição bastante comum na música clássica. Mozart, Verdi, Schumann, Berlioz, Dvorák, Fauré, Bruckner, Liszt, Palestrina, Lassus, Victoria, entre vários outros, compuseram réquiens.


Brahms também compôs o seu, um dos mais profundos e grandiosos entre todos. Poucas obras na história da música aparecem tão impregnadas de espiritualidade, não apenas no que diz respeito ao texto, mas também no que concerne à própria música. Chamou-o de "Réquiem Alemão", porque é cantado em alemão, e não em latim, como são os outros réquiens.


Nessa obra, potentes e terríficas massas corais e orquestrais duelam com celestiais e serenos coros de anjos, enquanto um barítono e uma soprano sublimam-se por momentos ora luminosos, ora pesadamente sombrios. Em um clima que alterna o tormento e a paz, Brahms realiza uma longa e profunda reflexão sobre a morte, em mais de 75 minutos de um dos mais originais réquiens da história da música.


O fato de que o próprio Brahms designasse esta obra-prima como "ein deutsches Requiem", ou mais exatamente, "eine Art deutsches Requiem (um tipo de réquiem alemão)" obedece ao propósito de configurá-la como uma composição de índole exclusivamente musical e, portanto, alheia à celebração litúrgica, apesar de que "Requiem" é, precisamente, a palavra com a qual inicia-se o Introitus da missa aos mortos da Igreja Católica, a qual, no âmbito musical, deu origem a numerosas obras.


Dois foram os acontecimentos que impulsionaram Brahms a compor o seu réquiem: o falecimento, no verão de 1856 de seu amigo Robert Schumann (o qual, paradoxalmente, também havia se proposto a compor uma obra com o mesmo título) e, principalmente, a morte de sua própria mãe em fevereiro do ano de 1865.


Os primeiros compassos da obra foram escritos por Brahms em 1856 e sua conclusão se prolongou, praticamente, até pouco antes de sua estréia, na catedral de Bremen, na Sexta-Feira Santa do ano de 1868. O texto foi escolhido pelo próprio autor a partir das traduções do Antigo e do Novo Testamentos.


Alguns trechos da letra do "Réquiem Alemão":


II – CORO


Porque toda carne é como a erva e toda a glória do homem é como as flores do campo. A erva seca, e a flor cai.


III - BARÍTONO E CORO


Senhor, mostra-me, então, que devo ter um fim, que minha vida tem um objetivo, e que devo cumpri-lo.


VI - BARÍTONO E CORO


Eis, eu vos revelarei um segredo: nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados; e isto de repente, num piscar de olhos, no momento da última trombeta.

28 janeiro 2009

O Pesadelo que Dominou um Mundo

Publicarei na íntegra o que ocorreu com aquele jovem naquele distante planeta desconhecido. A partir deste momento, ficaremos com as próprias palavras do estranho ser alienígena:

“Eu, deitado em meu leito por altas horas da noite, tentava dormir, quando, por acaso, principiei a observar dentro de mim, em minha mente, em minha psique, algo como uma série de vozes desencontradas, como se eu fosse internamente habitado por inúmeros seres que falavam ao mesmo tempo. Eu lutava para me concentrar em um único ponto, porém não conseguia, era-me impossível uma verdadeira concentração, pois não obtinha êxito em manter a mente fixa em um só pensamento nem por míseros três minutos. Vários pensamentos conflitantes surgiam-me simultaneamente: lembranças, desejos, sonhos, temores, ódios, cada um acompanhado de seus sentimentos correspondentes, em absurdas vozes que viviam dentro de mim. E tais pensamentos e emoções em mim se manifestavam não pela minha própria vontade, não era eu que os queria, eles surgiam em meu interior involuntariamente, e não conseguia controlá-los. E percebi que isso era o natural de minha espécie, durante todo nosso cotidiano somos vítimas de pensamentos e emoções que não desejamos e não dominamos e disso não nos damos conta.”

“E ocorreu que em determinado momento senti que aquelas vozes que em mim habitavam principiaram a desprender-se de minha psique, pareciam querer assumir uma existência externa, o que de fato confirmou-se. De súbito, fui cercado por uma infinidade de seres que eram todos partes do meu próprio eu, por entidades psíquicas que personalizavam meus erros, minhas fraquezas, meus desejos, a totalidade de meus defeitos. Formavam-se às dezenas, às centenas, aos milhares, todos com faces monstruosas e diabólicas, mas que tenuemente semelhavam-se à minha própria fisionomia. Olhavam-me de forma lugubremente odiosa, rindo sarcasticamente de meu estado de febril alucinação e pavor. E então verifiquei que aquelas seres, na verdade meus próprios filhos, pois vieram de meu interior, iniciaram a fundir-se em apenas uma representação física que possuía o meu exato aspecto. Todos aqueles demônios se transformaram em um único ente, que era o meu sósia em perfeição absoluta. Em seguida, o sósia deixou o meu quarto.”

“Então, de um abismo aberto sob meus pés, surgiram dois diabos com enormes asas de dragão, os quais vieram até mim, agarraram-me pelos braços e carregaram-me para fora de meu aposento. Fui levado à força para um local fantástico, de elevadíssima altura, de onde podia vislumbrar toda a minha cidade e ainda o interior de qualquer residência, como se possuísse alguma espécie de visão raio-x. Os demônios ordenaram-me para observar com detalhada atenção tudo o que acontecia na cidade. Então vi que nela estava meu sósia, a infame união daqueles seres satânicos, que havia assumido o meu lugar existencial. Sim, absurdamente, eles realizavam todas as ações que eu deveria realizar, no trabalho, na família, em toda a sociedade. Contudo, tudo o que aquele sósia executava era terrivelmente perverso, infinitamente maligno, e quem levava toda a culpa, não obstante, era eu.”

“Não suportava mais tamanha tortura e tentei me libertar dos demônios que me subjugavam, protestando e gritando desesperado que não era eu quem cometia aquelas maldades, que era um impostor, porém foi tudo inútil, somente obtive mais deboches dos diabos. Foi nesse instante que percebi que ao meu redor havia outras pessoas no mesmo estado que eu, isto é, que haviam sido trazidas por outros demônios particulares para aquele local de funesta e vertiginosa altura e obrigados a ali permanecer contemplando a cidade. Eram milhares de habitantes da mesma, muitos, conhecidos meus, e, para meu maior assombro, pude verificar estarrecido que todos eles também possuíam seus sósias, os quais usurparam seus lugares no mundo físico e ali viviam cometendo as mais bestiais atrocidades.”

“Em poucas palavras posso dizer que nós, os autênticos humanos, fomos expulsos de nossa própria existência, cedendo lugar a demônios nascidos de nós mesmos, e que agora ocupavam nossas vidas, realizando os mais horrorosos e degradados atos, estando nós absolutamente impotentes e desesperados diante de um pesadelo além de qualquer descrição verbal.”

“No entanto, creio que posso, em poucas linhas, transmitir uma débil idéia do horror catastrófico que presenciei como um escravo dos meus próprios males. Lá embaixo, ocupando o meu lugar e os lugares de todos os meus conterrâneos, nossos sósias demoníacos vivenciavam nossas existências como se tudo fosse absolutamente normal e corriqueiro, como se a perversidade, a inveja, a cobiça, a inversão de valores, o desprezo pela espiritualidade e pelos profundos sentimentos, pela arte e pelo belo fosse uma abominável regra geral. Todos os sósias, sem exceção, tão-somente buscavam o prazer vazio, sem o mínimo de sentido para a vida, em um consumismo impiedoso, alienado e sem freios, aniquilando rapidamente a totalidade dos recursos naturais.”

“Os dias passavam, os anos passavam, e eu e meus desgraçados companheiros de tortura permanecíamos dominados pelos diabos, contemplando o horror, a desolação que tomava conta de toda cidade. Observávamos dilacerados o crime e a violência imperarem absolutos, a baixeza psíquica e o reinado da aparência sendo guias e mestres de toda uma população. Eu fui a testemunha impotente do assassinato por motivos fúteis, do estupro hediondo, da execrável prostituição infantil, da inaceitável exploração humana em todos os níveis e categorias. Vi o horror desfilar diante de meus olhos e eu fazia parte dele, lá estava o meu sósia imbecilizado e depravado como todos os outros, descendo os degraus da mais baixa degeneração, esquecido de toda vergonha moral e orgânica, escravizado por uma mídia vazia e alienante. Eu gritava em completa desesperança para que aqueles diabos me libertassem e permitissem que eu reassumisse minha própria vida, mas minhas forças sucumbiam, e só me restava chorar em negra fatalidade.

Olhei ao meu redor e vi que todos os meus companheiros do inclemente horror faziam o mesmo, enquanto contemplavam o vício, o egoísmo, a ganância, a destruição, que se alastravam desimpedidos e triunfantes por um cenário de perfeita degradação ambiental. Da feral altura em que me encontrava, eu observava todos os nossos rios serem estupidamente poluídos, nossas matas devastadas, nossos animais massacrados, nossos ares contaminados, enquanto a multidão iníqua e inconsciente dos sósias ria e se fartava em festas imbecis, regadas a imundas músicas degradantes, contentes e satisfeitos com seu estado de infernal degeneração e miséria.”

“E após fui levado para outras regiões, para outras cidades e lá vi mais humanos prisioneiros e, abaixo, os seus sósias corrompidos, imperando vitoriosos. Não mais havia uma só gota do que chamávamos de amor. O mundo inteiro fora dominado pelo mais aterrador dos pesadelos, enquanto eu, berrando que meu sósia não era eu, lutava como um louco para me libertar.”

“Foi então que, desvairado, acordei-me. Tudo havia acabado, para meu lancinante alívio. E eu, ainda profundamente transtornado, refletia sobre o absurdo pesadelo que tivera, pensando comigo que não seria possível que em algum planeta do universo uma população vivesse naquele mesmo estado de minha alucinação. Não, impossível um planeta chegar a tão decadente nível de existência... só mesmo em um pesadelo...”

Até aqui as palavras e o pesadelo daquele distante ser alienígena.

25 janeiro 2009

Sinfonia nº4

pelo outono do inverno de amar
atemporal tempestade
na sede que sedia meu sonho
a tormenta atormenta de sede

vós temporais sede
a sede de minh’alma acabada
a última de Brahms
que brames na última
tempes-tarde demais
não me a(l)mas
como não cometas
do céu caídos
em fim-nados
que vir já há-de
em mar-revolta
revolto
resignado
morrer de sede
na Tempestade

23 janeiro 2009

"E Nunca Vou Por Ali..."

Vocês sentaram em seus tronos de certeza vazia e de sabedoria inútil para tentar ditar-me as regras de como devo viver. Quem disse que vocês as conhecem? Onde estão as leis que garantem que as suas regras estão corretas? Onde estão as verdades que garantem o que é correto? As suas verdades são a Verdade? Vocês estão certos que chegaram até ela para preconizá-la para todo mundo em absoluta e arrogante segurança? A realidade é exatamente o que vocês vêem? Não há outras realidades, só a que vocês determinam como realidade? Mas que mania de querer convencer-me daquilo que vocês julgam que sabem!

Então quer dizer que vocês chegaram à verdade e eu não? Os caminhos de vocês são os corretos e os meus não? Quer dizer que eu preciso de intermediários para chegar à verdade, e os intermediários são vocês? Então eu devo entre dezenas, centenas de gênios que mortificaram suas vidas em busca do conhecimento escolher dentre eles uns 2 ou 3 como corretos e desprezar todos os outros? E, coincidentemente, esses 2 ou 3 gênios que devo escolher para seguir são os mesmos que vocês escolheram?

Então vocês intentaram com sua sabedoria resolver o mundo, salvar a humanidade, não fizeram nada disso, mas querem que eu acredite que vocês estão certos? Intentaram, com a limitação de seus conhecimentos, limitar o que é infinito, enquadrar tudo o que é misterioso dentro de seus miseráveis conceitos, emparedar o eterno dentro de suas diretrizes egoístas, intentaram podar todos os sonhos, massacrar todas as esperanças, reduzir a vida a um punhado de teorias mecânicas, e agora vêm com esses sorrisos estúpidos e hipócritas me dizer que eu devo segui-los?

O que foi que vocês fizeram com suas sabedorias? O que foi que construíram? Um mundo desesperado? Uma vida sem nenhum sentido? O conhecimento de vocês só serviu para deixar claro que todo o sentido da vida é o dinheiro ou tudo o que ele pode adquirir, isto é, tudo o que é material? Como vocês querem uma humanidade justa, equilibrada, harmoniosa, se vocês pregam que não há justiça, nem equilíbrio, nem harmonia nas existências universais?

Os frutos da sua sabedoria é esse mundo que aí está? Então o mais alto conhecimento é aquele que destrói o planeta? É aquele que aniquila as almas? É aquele que por pregar que a alma é uma ilusão julgou que poderia explorar até o esgotamento toda a vida natural? Combateram crenças fanáticas com outras crenças fanáticas? Tentaram destronar os que ditavam leis para sentar no trono deles e ditar as suas leis? Tentaram sair da escuridão com uma ciência que mergulhou o mundo em treva? A treva do Fim! Fizeram crer que as verdades dos gênios das artes não passam de ilusão e depois ainda vêm falar-me de arte? Querem que eu acredite que a arte é inútil? E a sua ciência materialista a salvação?

Vocês sentem o que eu sinto, vêem o que eu vejo, percebem o que eu percebo? Não? Então por que querem que eu sinta, veja e perceba como vocês? Quer dizer então que se eu tenho asas devo cortá-las porque vocês não as têm? Quer dizer que o que vocês não sabem mais ninguém pode saber? Que se vocês acreditarem que algo não existe, definitivamente esse algo não pode existir?

Na lógica de vocês, muito mais valeria a pena viver para satisfazer prazeres, um absoluto hedonismo, cujos únicos valores seriam o do dinheiro. É assim que vive a humanidade. Sim, para que fazer mais do que isso se tudo irá se perder no dia da morte? Não viver dessa forma seria uma incoerência na sua lógica. E depois ainda vêm me falar de contradições? Na lógica de vocês, a sabedoria não pode valer a pena. Se tudo é injusto, se a lei de ação e reação não age em nossas vidas, se tudo é por acaso, se nada tem um sentido, se a felicidade de uma pessoa é medida pelos bens físicos que adquiriu, pela saúde que teve, pela sua beleza física, pelos prazeres que viveu, para que sabedoria? Para depois de se abarrotar com ela, morrer e jogá-la fora, deixar que ela apodreça com nosso corpo?

Se é assim, não vale a pena buscá-la, e a pessoa de vida mais correta seria alguém como a Gisele Bündchen, ou como o Ronaldinho, ou como qualquer gângster por aí. Sim. Se nada tem sentido, a sabedoria teria muito menos. Sabedoria deve servir para se ensinar a amar. Se no universo não há leis, leis que valem para todas as vidas, se não há justiça, se não há equilíbrio, se não há sentido para as coisas, se tudo veio por acidente, então também não há amor. Se não há amor no universo, então para que amarmos entre nós? E se não se é possível amar, então não há motivos para a sabedoria.
Então, não me venham com as suas sabedorias. A sabedoria que busco é outra. É como disse José Régio:

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...”

22 janeiro 2009

Meu Canto

virgem em água
que leoa dos abismos
em sol e lua te sinala
o ocultamento catastrófico do verde:
eu canto o que se perde

noiva e sangue
que me insânia pelas ânsias
e te desvaira dos funestos
e o corvo roxo sempre em pânico se esvai:
eu canto o que se vai

verso inlido
devastado na não-alma
o Cristo adeuses pelas 6
e o grito em sonho em grave lepra que te corre
eu canto o que já morre

beijo ou morte
em desespero olho em noite
cheira a lábios de coruja
e o amor medonho em 5º anjo sai do inferno
eu canto o que é Eterno

20 janeiro 2009

e o Medo...

sempre haverá uma dúvida
em tudo aquilo que duvidas
nunca não-haverá uma dúvida
nas coisas todas que tens certeza
jamais terás a certeza certa
que sempre restará um resto
um resto de astro do sonho
uma nota de alma do som
uma brisa de dor pelo beijo
um sopro de céus nos teus lábios

achas que bebeste
toda a gota do vinho?
e que não há vinho de sol nos teus olhos?
que não há olhos pra onde tu enxergas?
que não há luz nos cantos que sim?
e que há um sim pra todos os nãos?

olha bem pra onde está mal
vê de tudo que nunca foi dito
que ali do fundo que pensas
da taça sobrou uma gota
de sangue no canto da boca
e esta gota é que bebo
que nela que está a verdade
e o Medo...

19 janeiro 2009

200 Anos de Poe


Em 19 de janeiro de 1809, no nº33 da Rua Hollis, em Boston, Massachusetts, EUA, nascia um dos maiores gênios artístiscos de todos os tempos, cuja influência foi e continua sendo definitiva em todos os terrenos da arte: Edgar Allan Poe. Deixo aqui minha humilde e pequena homenagem ao meu maior Mestre literário. Abaixo estão algumas frases encontradas nas geniais obras de Poe. Em seguida, um de seus extraordinários poemas.

Algumas frases de Poe:

"Os homens chamaram-me louco. Mas, talvez, a loucura seja a suprema inteligência, pois muito do que é glorioso, do que é profundo, provém de modos de espírito exaltados e não do intelecto geral."

"Os que sonham acordados enxergam muitas coisas que escapam aos que não conseguem sonhar, a não ser dormindo."

"A lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que poderiam ter existido."

"Não somente acho paradoxal atribuir a um homem de gênio um caráter mau, como afirmo que o mais elevado gênio é apenas a nobreza moral mais alta."

"Houve sábios que se atreveram a duvidar da propriedade do termo 'progresso' para se referir ao avanço da civilização. Consideravam cada avanço da ciência prática como um retrocesso do espírito."

"Todas as coisas criadas são apenas os pensamentos de Deus."

"O de que estou mais certo do que tudo é de que a narração, mesmo parcial, de tais impressões faria estremecer a inteligência universal da humanidade com a suprema novidade dos elementos postos em ação e das sugestões que deles decorreriam."

"Há seguramente outros mundos além deste... Outros pensamentos além dos pensamentos da multidão."

"Pertenço a uma estirpe notável pelo vigor da imaginação e pelo ardor da paixão."

UM SONHO NUM SONHO

Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.

Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grãos de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas fogem-me pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?

Edgar Allan Poe

17 janeiro 2009

O Desaforo de Yeda

O célebre poeta romano Ovídio estava prestes a se tornar um senador de Roma, quando renunciou ao cargo. Motivo? Declarou que sentia repulsa pela política e que havia nascido para ser poeta. Não sacrificaria sua arte em nome de algo tão baixo.

Desde os tempos de Roma, e até antes deles, obviamente, a política vem causando repugnâncias nos homens de sensibilidade. O nojo mais recente que senti proveniente das imundícias da política foi da louvável decisão da governadora paulista do Rio Grande do Sul: comprar um jato de 26 milhões de dólares para suas viagens. Com o dinheiro do povo, é claro.

O colunista do Correio do Povo, Juremir Machado da Silva, ontem, abordou perfeitamente o assunto, com uma incisiva ironia. Mas sempre vale a pena bater mais nessa fétida tecla, ainda que seja com este humilde blog. O que tenho a dizer sobre o fato? Que cada vez tenho mais nojo da política. É no mínimo um DESAFORO que a nossa governadora, alegando que nosso Estado está quebrado e afundado em crise, gaste a bagatela de 26 milhões de dólares para comprar um jatinho para seu uso. E irão permitir isso os nossos deputados? E ninguém fará nada para impedi-la? Não, por favor, não façam nada.

Pois agora está justificado o porquê do governo não querer cumprir a lei e pagar o piso de 950 reais para os professores gaúchos. Está certíssima a governadora. Se pagar, não dá para comprar o jatinho. Façam as contas, quanto pisos de 950 reais são necessários juntar para comprar algo de vital importância ao desenvolvimento do Estado como é o jato da governadora? Tem gente reclamando que o dinheiro para comprar o jato é de um montante superior ao destinado para a segurança no RS. E daí? Que seja. Quem precisa de educação e segurança? Precisa-se de um jatinho.

Antes de mais nada, professor só presta para tentar educar crianças que os pais não se prestam para educar em casa. Não, professor presta também para tentar tirar marginal da marginalidade, como se isso fosse possível. Enfim, professor só presta pra tentar transformar o Brasil num país sério. O Brasil, um país sério? Hehehe!

Quanto à segurança, qual a utilidade dela? Imaginem que vida tediosa teríamos vivendo com segurança... Sair nas ruas sem a tensão de poder ser assaltado ou morto não tem graça nenhuma. Por isso que eu digo: um jatinho vale muito mais a pena, pois reis, rainhas, imperadores e a nobreza em geral, têm todo o direito de ter um povo que trabalhe e se sacrifique para que eles vivam no luxo. Não é assim desde sempre? Quem disse que o mundo mudou? Ouvir essa expressão “o mundo mudou” me causa ânsias de vômito.

Então, deixem a governadora. Ela é política. Precisa voar um pouco para ver se tira do nariz o mau-cheiro das fezes da política em que vive afundada. Ainda bem, Ovídio, que tu não foste senador.

Agradecimento a Márcio Brasil

Agradeço ao meu amigo Márcio Brasil pela publicação de dois poemas meus em seu novo espaço no jornal Expresso Ilustrado. Sim, o espaço é dele, mas o Márcio decidiu abri-lo para que outros jovens escritores santiaguenses divulguem suas obras. Isso só prova a nobreza e a generosidade que sempre fizeram parte do caráter do Márcio. Os poemas publicados foram escolhidos por ele mesmo, retirados aqui de meu blog. Parabéns, Márcio, pela tua louvável atitude. Valeu, amigo!

15 janeiro 2009

Há um Espírito que Paira sobre Aquele Campo

Quando principiou a baixar o sol, parti de minha casa. Logo, cairia um melancólico crepúsculo romântico! Um dia de outono suavemente frio em que algumas poucas nuvens rubro-arroxeadas lamentavam-se em sonhos pelos horizontes iminentes. Enigmáticos rumores pelo ar... Profundo e terrível enigma pelas atmosferas densas...

Iniciei minha caminhada calma e decididamente, deveria atingir aquele campo misterioso no instante imediatamente anterior ao anoitecer, o exato momento que precede a chegada da noite.

Eu vi aquele campo largo e profundo somente uma vez. E nunca mais o esqueci. Havia um mistério sobre ele... À primeira vista, compreendi que algum ser pairava acima de sua antiga imensidão verde-escura. O campo situava-se em uma alta e vasta colina cercada de frondosas e dramáticas matas. Algo vivia oculto naquelas matas estranhas, fantásticas, algo...digamos...arcânico. Há sempre algo mais por trás de tudo. E chegara o dia.

E o dia era nebulosamente tranqüilo. Um clima de flutuante magia dominava os ares. Ao deixar minha casa, enquanto o sol descia solene em sua solidão, algumas borboletas adejavam suas asas celestialmente azuis no caminho sem calçamento por onde deveria seguir. Nenhuma pessoa nas ruas. O local onde eu morava, já quase fora da região urbana, parecia completamente abandonado, só eu perambulava pela estreita rua cercada de altas árvores frutíferas. Ensolarada. Ao longe, até onde alcançava a vista, vastas e límpidas coxilhas alastravam-se supremas.

Em uma delas é que eu buscava chegar. Em uma delas, em certo dia chuvoso, eu senti comovido que havia algo mais ali. Era quase noite, e a chuva caía macia e murmurante, como um afago sobrenatural. Olhei ao alto da coxilha cercada de bosques, exclamei comigo mesmo: “não posso ver, mas sinto que há algo aqui”. E hoje retorno para comprovar...

Que tarde carregada de magia! O sol morria sentencioso e eu avançava. A serenidade outonal era perfeita. Somente ouvia sonatas de pássaros. O canto do gado, dos cavalos, das ovelhas. Mas em mim vibrava uma terrível febre. Sereno, mas interiormente alarmava-me. Queimava muita alma dentro de meu espírito. Inflamavam-se minhas emoções flamejantes. Pensava nela. Ainda mais que o caminho era cercado de laranjeiras e limoeiros. Não estavam floridos, porém o perfume de incenso exalado pelas árvores era sublime. O aroma das laranjeiras convidava ao amor, e pensava nela. E a febre se intensificava, e o sol morria, e eu avançava rumo àquele campo.

Logo após aquele roseiral vivamente rubro, percebi de forma definitiva que chegara um agradável frio crepúsculo. Era outono, e o sol deixava adeuses em paz. A chuva invisível e cristalina da lua e das estrelas principiava a cair, e após o roseiral estaria quase lá. Um vento frio do sul começou a soprar insolitamente, Havia algo mais naquele vento, havia saudade, havia rumores, havia paixão. O céu agora era um manto azul-violáceo, com tonalidades rosa nos horizontes, e o negro da noite iniciava a derramar nos espaços sua ária triste e apaixonada. Sonhava...
Agora me encontrava totalmente no pampa. Nenhum sinal de civilização. Ao longe, avistava o campo misterioso. Em minha mente ruflavam suas pétalas as rosas daquele roseiral, pelo qual passara. Por que ainda pensava naquelas rosas vermelhas? Vermelhas de sangue? Logo a noite seria definitiva, e eu acercava-me a um passo da noite. Mas pairava algo no ar... Aproximava-me do campo indecifrável. E atingi meu destino. Extático, quedei-me emocionado aos pés da coxilha. E a noite caiu. Ali, diante de mim, minha intuição me afirmava, pairava um denso mistério, embora ainda não pudesse contemplá-lo ou compreendê-lo.

Um pouco mais adiante, conforme o campo perdia elevação, uma venerável mata se alastrava. Fluidos e essências artísticas gotejavam dos frios céus estrelados e iluminados por uma delirante lua pálida, um convite aos fantasmas que se amam.

Sentei-me sobre aquele campo verdejante e orvalhado à espera do que viria a ocorrer, enquanto os seres noturnos entoavam suas lôbregas e oníricas canções. Havia uma intensa e palpitante poesia pelos ares puros, límpidos, vibravam divinas inspirações que me invadiam, enquanto dirigia meu sonho àquela que me esperava... Nisso, algum estranho rumor principiou a nascer da mata, um som inclassificável, como se fossem vários uivos simultâneos e desconhecidos. O som intensificou-se e pareceu movimentar-se da mata para sobre o campo, fixando-se acima da verde coxilha. De modo que, gradativamente, os uivos foram se extinguindo para dar lugar a uma tênue e multicor nuvem luminosa que constantemente modificava as tonalidades, passando do branco para o verde, para o amarelo, o vermelho, o azul e o roxo. Levantei-me e, com certo receio, dirigi-me exatamente para baixo do centro da nebulosa da luz fantasmagórica que se originou dos uivos. Então, uma densa e rosácea luminosidade, de uma espécie diversa da anterior, desceu da nuvem luminosa e envolveu-me completamente.

Seus abraços calorosos e sublimes enlevavam-me de ternuras femininas, tranqüilizando profundamente meu coração. Foi quando percebi que eu estava ascendendo, que a luz feminina erguia-me em seus braços etéreos e levava-me para o interior da nuvem luminosa. Após ter meus olhos ofuscados e tendo que os fechar por alguns instantes, pude abri-los novamente. Encontrei-me em outra região de completo enigma: era o interior da nebulosa nuvem de luz.

Contemplei então o mesmo campo onde me encontrava a poucos minutos, com sua bela coxilha e sua matas exuberantes. Porém, além do campo em seu aspecto físico, ali existia algo mais... Eu fitava uma infinidade de rostos espectrais, fantasmagóricos, formados unicamente por insólitas luminosidades cintilantes e esbranquiçadas, que se movimentam, oscilando constantemente sua aparência, como se fossem chamas sem fogo. Os rostos olhavam-me fixamente e eu sentia-me ansioso por conhecê-los. Até que pude inferir que aquele número infinito de faces fantásticas consistia em algo próximo aos espíritos, às almas dos seres animais e vegetais que naquela região viviam. O local que agora me encontrava seria uma outra dimensão interligada, correspondente espiritual do misterioso campo que sempre atraíra minha imaginação...

Permaneci por um tempo indeterminado, aparentemente longo, flutuando pela onírica região, observando estarrecido todas aquelas faces volúveis, fulgurantes, evanescentes, com esquisitos olhos fugidios que não deixavam de me acompanhar, até que fui desperto de meu estado de quase hipnose pelo som retumbante de um tropel de cavalos.
Olhei ao fundo da paisagem e percebi a rápida aproximação de uma gigantesca cavalaria de guerreiros indetermináveis, tão espectrais, fantasmagóricos e voluvelmente luminosos como as faces espirituais dos seres da natureza. Porém, aquela cavalaria transmitia um horror insano, um medo paralisante. Nesse instante senti que a luz rosácea que me envolvia descia comigo para devolver-me ao mundo físico. Logo, encontrava-me novamente sobre a coxilha orvalhada, em plena noite profunda. O ambiente permanecia inalterado, absolutamente tranqüilo. Passados alguns instantes, deduzi que mais nada ocorreria ali e decidi retornar à minha casa. Despedi-me do mirífico lugar e tomei o caminho de volta.

Enquanto caminhava pela madrugada que me observava, refleti sobre o que havia vivenciado. Seria real, eu teria adormecido sem perceber? Não sei com certeza, mas posso afirmar que nesse momento uma voz inaudível fisicamente soprou nos meus ouvidos como uma inspiração advinda do desconhecido, não sei se exterior ou interior, ou ambos: era mais ou menos o seguinte o que ela me soprava: no mundo físico, tudo pode ainda aparentar tranqüilidade, aquele clima canhestramente tranqüilo que precede a tempestade, mas em outras esferas, em outras dimensões que se interpenetram, como a água penetra a terra, acontecimentos inimagináveis se concretizam, para, em breve, refletirem-se no mundo natural, assim como a chuva, que antes toca o céu para depois tocar a terra, como a tempestade que vem chegando, que ao longe vem soprando e formando sua nuvens carregadas e seus raios tenebrosos, mas que nós ainda não podemos vê-las. E talvez nem a esperemos...

14 janeiro 2009

Mergulho

sussurro líquido de água em cristal
em correntezas de sangue
ao sol dos desejos...

eu mergulho...

canto doce-oculto de ave em mistério
flutuando em distâncias
de nuvens de sonhos...

eu mergulho...

violino psíquico em magia férvida
em sonatas de alma
por luares de beijos...

eu mergulho...

mar de música refletindo sinos
em laringes de arcanjos
pelos teus braços
a sós...

eu mergulho
na tua voz...

Essas e Outras

As partituras das obras de Bach
eram usadas pra enrolar peixes
nas feiras.
Um crítico disse
que a 3ª Sinfonia de Beethoven
era barulhenta e sem futuro.
Diziam os críticos
que as sinfonias de Bruckner
eram de muito mau-gosto
e precisavam ser revisadas.
E Brahms foi julgado retrógrado.

As pinturas de Hieronymus Bosch
eram praticamente desconhecidas
enquanto ele vivia.
As exposições de William Blake
foram completamente ignoradas.
Se Cézanne não morresse
com quase 70 anos
não veria seu reconhecimento.
E ninguém queria comprar
os quadros de Van Gogh.

Baudelaire só conseguiu vender livros
depois de morto.
Lovecraft jamais
conseguiu publicar um livro.
As editoras não tinham o menor interesse
pelos poemas de Fernando Pessoa.
E Poe era ignorado
pelos seus compatriotas.

É por essas e outras
que vou morrer escrevendo.

11 janeiro 2009

Carta

a Arte é a expressão em oculto
de tudo o que não é expresso
o que ela fala
jamais se diz
o que ela sabe
nem quem a fez o sabe
que quem a fez não a fez
ela apenas passou por si

a Arte vem de onde não se acha
vive acima de quem a vive
sabe mesmo não sabendo
que há um mais-além que a vida
prova mesmo que não prove
que jamais há um fim pra alma
a Arte condena e salva

a Arte não tem donos ou criadores
tem mensageiros
decodificadores
que às vezes nem sabem o que transmitem
e transmitindo não sabem por que fazem
e fazendo mal sabem o que fizeram

a Arte é a alma universal
e o artista seu carteiro cósmico:
pouco importa a Ela
no que o carteiro está acreditando:
geralmente os carteiros
não sabem o que há na carta
e desconhecem o que estão levando

10 janeiro 2009

Sobre "Vinhos"

Abaixo, está o poema de minha autoria a ser publicado no Caderno Literário Pragmatha sobre a temática "vinhos":

Crepúsculo

cipreste no escuro aos gritos
sopro na noite de gelo
dente de lobo na cruz
beijo de roxo no céu

sangue de lobo no escuro
roxo de gelo no dente
beijo nos gritos do céu
sangue de cruz no cipreste

sangue nos gritos do lobo
beijo de noite de sangue
sopro de sangue já roxo
sangue no escuro do céu

sangue da noite ao cipreste
grito de sangue no dente
sangue no beijo de sangue
sangue e mais sangue e
mais vinho...

José Régio

A pedidos de alguns leitores, deixo aqui uma pequena biografia sobre este grande poeta português.

José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo e ensaísta foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

09 janeiro 2009

E-mail enviado a Júlio Prates

Júlio:

Somente hoje li tua polêmica postagem sobre a poesia em Santiago. Tu tens razão, poeta é tudo, ou quase tudo, o que disseste. Mas ainda não disseste tudo, alías, faltou as principais características, um poeta é muito mais. Por exemplo: um poeta detesta política e políticos. Às vezes se mete nela, mas é de tanto nojo que tem. Então se mete pra ver se detona tudo logo. Eu sempre fui contra o título de Santiago, Terra dos Poetas. Mas eu não estou nem aí, por mim que esses políticos deem o nome que quiserem a Santiago. Por que eu vou estar me preocupando com isso? Tenho coisas bem mais importantes pra fazer. Quer ser Terra do Poetas, que seja, pra mim tanto faz. Eu quero ficar no meu canto e falar daquilo que ninguém fala: do Fim. Se os outros me consideram poeta ou não, não faz diferença, eu sei o que eu sou.

Só uma coisa não ficou claro no teu texto. Disseste que poeta é vagabundo. Em que sentido? Se for no sentido de ter um emprego, eu concordo plenamente (tanto que eu não tenho), mas isso não significa que um poeta não trabalhe, fazer poesia dá muito trabalho.

A propósito, tua postagem é do dia 7/01. No dia 6/01 eu postei um poema no meu blog chamado Poema Nulo(abaixo). Percebas a coincidência da temática. Será que eu captei o que tu irias dizer? Isso é mais uma das coisas que faltou na tua definição de poeta: um poeta está em outro tempo e espaço. Ah, e o principal, que deverias ter dito: um poeta é sempre uma nulidade.

Abraços!

Obs.: ao final do corpo do e-mail, enviei o "Poema Nulo", o qual está postado abaixo.
Obs.2: o e-mail está aqui fielmente reproduzido, inclusive com seus eventuais erros de português e/ou digitação.

08 janeiro 2009

Morte Lenta

Ao coaxar de sapos exaustos uma canção estranhamente triste foi alçando seu voo esgotado. Ninguém a ouvia... Subia como um incenso pesado, denso, nervoso. Um incenso de odor carregado e pálido. Talvez não um incenso, talvez uma fumaça tensa, um fumo de um cigarro cósmico lentamente consumido e golfejado pela garganta. Será que só eu estava ali?

A nuvem cinza que surgiu por sobre o cinamomo amarelado não era simpática. Havia algo de alerta nela. O sol era mortiço, adoentado, insalubre. Causava-me uma febre desanimante, mas a nuvem não ousava cobrir aquele sol enfermiço. Ainda. E como era longa aquela nuvem. Por mais que eu tentasse, eu não conseguia avistar o seu fim. E como ela pairava em uma extrema e angustiante lentidão... Deitei-me no chão e comecei a me arrastar, erguendo pesada e dificultosamente os braços. Como tudo era difícil pra mim. Eu não queria ouvir aqueles lamentos, mas eles queriam que eu os ouvisse. Como eu não sou ninguém, necessitei ouvi-los. E cada vez mais cinza era a nuvem. Aquela canção incessante de uma insuportável tristeza de Poe aliou-se aos nimbos sem sorte. Talvez fosse ela própria. E nos horizontes anômalos soou uma marcha cansada...

Vermelhos. Eram agora escarlates os horizontes. Lembrei-me da febre escarlatina e das feridas da peste bubônica. Era de lá que partiam agourentas as notas da marcha cansada. Compasso quatro por quatro, e o exército de pesadelos caminhava junto. Extenuado. Eu arrastava-me, cantando canções de compositores já mortos. Não sei por que, voava nas asas dos urubus a solene tranquilidade escura que precede as tempestades. E os passos cresciam em intensidade. Pesados. Noturnos. Tambores.

“Réquiem do Sol”! gritou-me Cruz e Sousa. Quem é que acordava comigo? O bafo de um lobo negro gelou-me o sangue. Fixei minha mente nos seus olhos. Só tristeza eu encontrei por lá. Tristeza e cansaço. Cansaço e crepúsculo. O lobo suicidou-se no galho seco do cinamomo. Sol febrento, que dá ânsias de vômito. Senti náuseas. Não me sinto bem. Do lado do cinamomo nasce um cipreste. Cinza. Quase negro como a nuvem, agora quase negra. A paz pressaga que precede as tormentas. Os raios longínquos, distantes como o teu amor. A Marcha! Os trovões como os sussurros das promessas que não foram. Tua alma olhando doce pela porta noturna da “mão fatal que escreveu na minha vida...” Árvores... de Azevedo onde azedam meus sonhos.

Trovões distantes. Sonatas de corvos. Cios de gatos sem gatas. Terra vermelha dos cemitérios da campanha. Uma cruz caiu e ninguém juntou. Será que só eu estou aqui? Quem canta seus males espanta, quem canta seus males espanta, quem canta seus males espanta... Fúnebre. Lúgubre. Marcha. Tímpanos soando como caveiras que batem em tambores. Quem é que vem? Está longe ou já vem perto? Perto? Um deserto! se estendeu por sobre o sangue. Nem agora vais sangrar na minha boca? Deus! Começou a soprar aquele vento! Brisa leve e fria, brisa leva e ria, brisa calma que precede os temporais. Não mais... Nunca mais.

Os vossos risos calaram-se como cala a madame confiante que é assaltada na noite. Vento mais forte, que cresce e ressurge como os passos, como o som de botas velhas e sujas, como um sorro que foge em desespero pelo campo seco mergulhado em ocaso. O sol enfermiço sumiu. E o vento cresce como o cipreste negro. Quem é que olhou para trás? Mais frio. Que olho estranho, soturno em pânico, inquietante, absurdo, profundo como tudo o que não foi! Saudades... Meu Deus, quem foi que olhou, quem foi? Que angústia infinita e exausta nunca para de chorar? Uma gota de chuva nos meus lábios. Até quando? De quem era aquele olho? Por que eu sozinho aqui? O que foi que eu fiz? O sangue gradativamente coagula-se, e só eu escuto o coaxar dos sapos. Assombra como cresceram os ventos. Furacão! A Sombra... Alguma coisa voou...

Na noite eclipsada pairou um anjo. Não consigo ver se suas asas são de coruja ou de morcego. Não era um anjo, mas um arcanjo. Som de patas. Cavalos. Lentos. Espadas desembainhando-se. O arcanjo pousou sobre o cipreste. Ele bem que me disse que pousaria... Relinchar de cavalos... Marcha... Do relógio berraram meia-noite. Subiu o vapor negro de um rio...

Segundo movimento da 3ª Sinfonia de Beethoven. Tu não quiseste ouvir comigo. Medo... Marcha extremamente lenta. Mas Marcha... Mas Morte. Ouço passos pesados no tempo... É assim que caminha a humanidade...

07 janeiro 2009

Pragmatha

O Caderno Literário Pragmatha em breve estará em sua 12ª edição, com o tema "vinhos". O Pragmatha é um caderno virtual de divulgação poética oriundo de Porto Alegre que já conta com milhares de assinantes e é divulgado entre diversas entidades, escolas, agremiações literárias de todo o Brasil. É aberto a qualquer poeta de qualquer região do país, muito embora exista uma seleção para a publicação dos poemas enviados. A temática é sugerida, não obrigatória. Maiores informações pelo e-mail: sandra.veroneze@pragmatha.com.br

06 janeiro 2009

Poema Nulo

como todos os outros
todos os outros meus
talvez todos mais que os meus
talvez ser nulo é ser poema
um ser nulo é um ser poeta
que o que sinto penso e digo
nunca será contigo
que o que sinto penso e escrevo
jamais será o que devo
e se um dia meu martelo
poder bater em tua porta
será claro: estará morta

adoeci-me sentindo
sentindo sem sentido
pra não curar ninguém
que curar ninguém queria
nem eu queria também
e tudo aquilo que não disse
talvez fosse o meu dever
falei por mim e fiz por nada
suicidei-me sem morrer
senti na pele não ser Deus
velando a dor de todo um mundo
e ouvi ao fim de umas senhoras:
“quem faz verso é vagabundo...”

mas sempre dará muitas voltas
as curvas do Espaço-Tempo
em suas não-curvadas
revoltas

05 janeiro 2009

Dos Melhores Poemas

O poema abaixo, escrito pelo poeta português José Régio e publicado em seu livro Poemas de Deus e do Diabo é, para mim, um dos melhores poemas criados no século XX. Sem hesitações, eu elegeria esta obra como um dos lemas de minha vida.

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.

José Régio

03 janeiro 2009

Richard Wagner - Apocalipse Musical


O compositor alemão Richard Wagner (1813 – 1883) foi o criador de uma das mais intensas e poderosas obras musicais de todos os tempos, encarnou de forma perfeita e transcendente todo o terrível romantismo germânico e tornou-se um dos mais expressivos gênios artísticos da história.

Wagner foi um revolucionário da arte, um homem dotado de elevados ideais que procurou concretizá-los através da expressão da Arte Total. Esta uniria a música, a literatura e o teatro de forma perfeitamente integrada, indissociável e harmônica, criando então o majestoso “Drama Wagneriano”, com o qual Wagner forçou e derrubou as barreiras musicais, transcendendo a música tonal para atingir o delírio fantástico da atonalidade, onde a melodia se dilui em um universo imaterial, na denominada “Melodia Infinita”. Nela, a sensação de que nunca vai acabar hipnotiza nossos ouvidos em uma sublime magia devastadora.

O Drama Wagneriano consiste em um novo tipo de ópera, muito mais potente, violenta, profunda e envolvente que as óperas italianas, as quais antes de Wagner dominavam o mundo operístico. Wagner tornou a ópera uma obra de arte completa, uma vez que, também sendo poeta, o músico alemão escrevia suas próprias letras (o que dificilmente ocorre nas óperas), baseando a grandiosidade de seus textos nas mitologias nórdica e celta e em vastos conhecimentos de literatura, ocultismo e filosofia.

A força avassaladora de sua música, a ensurdecedora potência de suas gigantescas massas orquestrais e de seus coros, a magia e dramaticidade enlouquecedoras de seus cantores jamais foram igualados no mundo musical, raras composições são capazes de despertar tanta força interior no ouvinte. Não foi em vão que Hitler regava seus exércitos com as óperas wagnerianas, para embriagá-los de força e poder antes das batalhas. Um uso equivocado da capacidade da música do gênio. Ainda que Wagner fosse declaradamente anti-semita (algo muito comum no século XIX), sua discordância contra os judeus era unicamente no campo ideológico, discordava de seus interesses materiais e financeiros, jamais pregou a violência contra os mesmos, possuindo amigos judeus, inclusive.

Wagner também foi um grande amigo do filósofo Nietzsche. Este chegou a declarar-se um seguidor de Wagner, um discípulo dele, até que romperam por questões ideológicas. A verdade é que Wagner sempre esteve um degrau à frente de Nietzsche. Enquanto o filósofo, que preconizava a possibilidade do “super-homem”, algo já inerente ao drama wagneriano, morreu na miséria, doente e louco, cedendo ao seu destino “demasiado humano”, Wagner triunfou sobre todos seus obstáculos pessoais e profissionais, impondo sua obra ao mundo, nesse ponto, aproximando-se realmente do “super-homem”.

Entre as principais obras de Wagner está a ópera “Tristan und Isolde”, baseada na lenda céltica. Um hino absurdamente intenso à loucura do amor trágico, uma música sombria, tempestuosa, demente, inflamada, carregada de uma dilacerante magia que rompe as barreiras físicas e espirituais da música, levando-nos a um outro universo de sublimidade e horror.

Mas sua obra mais ambiciosa é a tetralogia de “O Anel do Nibelungos”, baseada na grandiosa e trágica mitologia nórdica. Trata-se da mais colossal obra musical já criada, totalizando mais de 15 horas de duração, dividida em 4 óperas de um força sobrenatural e feérica, um poder insano e devastador, de uma dramaticidade jamais vista. A saga do “Anel” influenciou Tolkien em “O Senhor dos Anéis”, e o trecho da tetralogia wagneriana, “A Cavalgada das Walkirias” serviu de trilha sonora para o filme “Apocalipse Now”. Nada mais adequado, afinal, o Drama Wagneriano, se resumido em uma só palavra, seria certamente: “Apocalíptico!”

01 janeiro 2009

Ah... A Luz do Infinito

a luz do infinito me bate na porta
ah a luz do infinito me bate com a porta
a luz que não tenho daria meu livro
vou ver se te vivo

a luz do infinito me mata minha morte
ah a luz do infinito me mata com a morte
a luz que não tenho é tudo que devo
vou ver se me escrevo

a luz do infinito já toca minha graça
ah a luz do infinito não toca com graça
a luz que não tenho me toca um noturno
vou ver se me durmo

a luz do infinito tem asas que sorvo
ah a luz do infinito tem asas de corvo
a luz que não tenho é um poço sem mastro
vou ver se te astro

a luz dos teus olhos é toda minha vida
a luz dos meus olhos é toda sem vida
a luz que não tenho me foge se corro
vou ver se me morro

28 dezembro 2008

Mas...

“Ah, mas então tudo será baldado?
Tudo desfeito e tudo consumido?”

Cruz e Sousa

mas então
restará só uma promessa
pairando impassível
sobre o branco impossível do nada?

sentidos de alma
pedaços de estrela
tormentas de olhos
distâncias de amor
voando em vazio?

tuas asas não batem?
tua estrada não leva?
tuas flores não cheiram?
teu canto não canta?

e os altos de campos de sóis pelos cosmos?
e os lagos de olhares que um dia subi-me?
e os beijos nos ares que em sonho encontrei-te?
e as luzes eternas do Réquiem em que vivo?

mas então...
não?

25 dezembro 2008

Junqueira Freire (1832 - 1855)

Junqueira Freire é um dos poetas brasileiros incluídos em nosso Ultra-romantismo. É bem pouco conhecido, até mesmo pelos fãs da literatura sombria. No entanto, sua pequena produção poética, justificada em parte pela sua morte precoce (23 anos), se não é das mais originais e maduras, revela uma intensidade de vivência emocional e um profundo conhecimento dos conflitos que massacram a alma humana. O poema abaixo reflete de forma radical e definitiva uma visão inconsolável da desesperança do homem perdido dentro de um mundo aniquilador dos altos sentimentos.

DESEJO
(Hora do Delírio)

Se além dos mundos esse inferno existe,
Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;

Se ali se sente o que jamais na vida
O desespero inspira:
Se o suplício maior, que a mente finge,
A mente ali respira;

Se é de compacta, de infinita brasa
O solo que se pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;

Se ali se goza um gênero inaudito
De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;

Se é verdade esse quadro que imaginam
As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são uns erros vãos

Eu - que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afeição mais terna
Às penas mais incríveis;

Eu - que tenho pisado o colo altivo
De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
Surgido vencedor;

Eu - que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno;
Eu quero de uma vez morrer para sempre,
Entrar por fim no inferno!

Eu quero ver se encontro ali no abismo
Um tormento incrível:
- Desses que achá-los nas existência toda
Jamais será possível!

Eu quero ver se encontro alguns suplícios,
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
- "Chora por fim, - que és homem!"

Que, de arrostar as dores desta vida,
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo,
Quero vencer o inferno!

Junqueira Freire

23 dezembro 2008

13 Versos

Trago nos olhos uma marcha fúnebre
à humanidade que caminha pútrida,
e a mão que acena de caveira esquálida
a um hino roxo de um final que é trágico.
A tua desgraça, ó mundo humano, é júbilo
pra quem de horror já traz em lava o espírito
e viu à morte os altos gênios - mártires!
que pra te erguer verteram sangue e lágrimas.
Homem acabado, sinto miasma e túmulo
pra te enterrar em teu dantesco báratro
e erguer a flâmula em teu lixo cósmico.

A ti eu deixo o meu adeus de Hercólubus
e parto só pra contemplar o Término.

18 dezembro 2008

No Zero Hora


Foi uma honra para mim hoje ver um de meus poemas publicados no Almanaque Gaúcho do jornal Zero Hora, e ao lado uma foto e um comentário sobre Luiz de Miranda, um dos maiores poetas gaúchos da atualidade, poeta de intensa inspiração, como bem provam suas temáticas fortes e seu estilo contundente. E ainda fiquei sabendo que ele é o poeta que mais publicou poemas no mundo! Incrível! Ao lado, a página do jornal com meu poema e com o comentário sobre Luiz de Miranda. Agradeço ao Zero Hora e ao Almanaque Gaúcho pela publicação.

O quê?

não entenda nada do que digo
não digo nada para ser entendido
o nada é o que tenho a dizer
que eu nada tenho de nada
e meu nada tem só dúvida
eu todo sou nada e dúvida
pergunta de nada no cosmos...

veia de sonhos rebentou-me nos olhos
desejo último em cadeira elétrica
beijo de lâmina ao lábio enforcado
teu olho brilhou-me em aviso de raios
onde caiu tudo o que eu soube?
clarão de ocaso antes da noite
canto de cisne antes da chuva
vela de rosas acesa em tormenta
por onde é que voa tudo que eu verso?
um sopro de urgência tua alma me traz
mas em cuspes de deuses jamais te confessas
onde é afinal que tu estás?
dá-me tua mão ou as tuas promessas...

15 dezembro 2008

O Enterro de Atala, de Girodet


As Almas do Fantástico na História do RS - História 4ª: A Picada

Aproximava-se das 4h da tarde quando atingi a beira da sanga que corta os campos de meu avô. Desde o amanhecer havia algo de anormal naquele dia. O sol e o calor eram intensos demais, mesmo para o mês de março. Não havia o mínimo vento, a mínima brisa. Mas não era o clima físico que causava a anormalidade, porém o clima psicológico. Não que ele fosse negativo, ominoso, agourento, nada disso. Era simplesmente estranho, esquisito, anormal, anômalo, inexplicável, carregado de indefiníveis sensações perturbadoras. Existem sensações que não se consegue, que não se pode, que não se deve explicar. Tão-somente sentir. E eu as sentia de forma contundente em minha alma intuitiva e atormentada.

E sentia-me bem à beira daquela sanga de águas puras e límpidas, sob a sombra densa e benfazeja das árvores frondosas, entrecortadas pelos raios do sol impiedoso. Do local onde me encontrava havia uma forte, mas rasa, correnteza sobre uma grande quantidade de pedras e lajes de variados tamanhos. Ali, o número de aves era incomum, eu ouvia uma imensa diversidade de cantos, alguns bastante diferentes, os quais contribuíam para tornar ainda mais inquietante o clima de estranheza que pairava por aquelas atmosferas abafadas...

Sentei-me em uma das grandes pedras e respirei fundo, deixando-me levar pelo furacão de sensações que sempre se debate em minha alma. Percebi que estava com febre. Um torpor delicioso e violento inflamou-me a psique. Encontrava-me nesse misto de tormento e prazer que mal consigo definir. E que muito menos consigo adivinhar suas causas, suas origens. Apenas sei que as sentia e que meus sentimentos tomavam todo meu ser... E isso me basta. Caía a influência daquele dia estranho sobre a minha estranha psique. E eu voando afundava-me em pensamentos e emoções insensatas e absurdas.

Nesse instante soprou-me a única brisa do dia. Uma brisa quente, férvida, inflamada... Havia auras anômalas naquele sopro incendiado. Ouvi passos na mata. Desci-me de meu vôo e alertei-me. Uma jovem aproximava-se da sanga carregando uma sacola repleta de roupas. Minha febre talvez tenha aumentado. Seus longos cabelos castanhos e lisos caiam sobre um vestido claro um tanto simples, bastante adequado à sua beleza deslumbrante de naturalidade. Ao ver-me, a moça não se surpreendeu, como se já esperasse que eu estivesse ali. Chegou ao local onde eu me encontrava, saudou-me com uma familiaridade incompreensível para alguém desconhecido. Eu jamais a havia visto. Perguntei seu nome. Ela largou a sacola, sentou-se em uma pedra bastante próxima a mim e principiou a lavar as roupas nas intensas águas da correnteza.

- Isabela. Tu não lembras de mim?
- Não. Desculpa, mas sinceramente não. Nós nos conhecemos?
- Sim. Já há um bom tempo... Mas deixa pra lá, se não lembras, tudo bem, eu entendo. Outra hora tu irás lembrar. Vamos falar de outras coisas. Gostas deste lugar?
Iniciamos então uma conversa absurdamente delirante. É desnecessário mencionar o que falamos. Porém é necessário dizer que tratamos de assuntos e palavras de uma forma tão natural e com uma intimidade tão completa que me arrebatou de um assombro quase sobrenatural. Seus olhares profundos e hipnotizantes fizeram com que eu perdesse a noção de tempo e espaço. Sua voz doce e melodiosa parecia provir de regiões desconhecidas do cosmos e enlevava-me como uma música estranha e carregada de uma indecifrável magia. Pensei em coisas e existências que não sei nomear. Conforme avançávamos em nossa conversa, essas palavras penetravam como a embriaguez do vinho em minha mente e coração. Eu me sentia flutuar pelas águas cristalinas daquela sanga, ou então me via levado pelas brisas mornas do verão do pampa, ou mergulhava no verde infinito de matas simultaneamente reais e imaginárias... Em alguns momentos o som da voz de Isabela confundia-se com o canto dos pássaros, e eu já não sabia distinguir um do outro. Lembro-me de ter dito um rio de palavras para a bela moça, porém, não lembro de absolutamente nenhuma delas com precisão, muito embora os temas fantásticos das mesmas ainda ecoem romântica e fatalmente em minha alma... Por entre as frases nebulosas que de Isabela ouvia, sentia lâminas de desejo cortarem meu coração; minha febre se intensificava e um delírio sublime jogava-me sonhando por aquelas atmosferas quentes, estranhas e intuitivas.

Após lavar todas as roupas, Isabela recolocou-as na sacola e partiu calmamente por entre a mata, enquanto eu aos poucos deixava meu estado de entorpecimento psíquico.

Encontramo-nos no mesmo local cerca de um mês depois. Dessa vez ela não levava roupas para lavar. Trajava um vestido que se assemelhava bastante a um de prenda, intensamente vermelho. Era como se houvéssemos marcado um encontro, porém não havíamos marcado. Não sei o que aconteceu durante as várias horas que estive na presença da moça. Digo que realmente não sei. Tão-somente lembro de que ali se encontrava um urutau pousado em um galho, e que a ave cantava em inusitado desvario. Creio que um sorro também gritou em algum canto. Fora isso, era como se nada mais houvesse ocorrido, apenas um sonho insano e absurdo sem lembranças específicas, apenas vagos rumores enevoados. Até que viera o beijo...

Sim, de sua boca plena de sons indefiníveis, senti um beijo em forma de ciclone. Estou certo que sua boca permaneceu colada à minha por horas, não obstante eu não possuísse a mínima noção de tempo ou espaço. Eu não estava ali, eu não existia, eu apenas estava com ela. Naqueles instantes ocultos de um beijo absurdo, minha mente navegava pela imensidão do pampa gaúcho, eu mergulhava na alma das coxilhas cheirando a flores, viajava em colossais cavalos por campos intermináveis, por entre matas orvalhadas, comunicava-me com animais que não mais existiam. Sob um céu azul e frio pairavam corvos com anjos sombrios, enquanto sangas, córregos e rios pareciam fervilhar em minhas veias. E tudo fluía de seus lábios, de sua boca, de seu beijo. Não sei por que, eu captei rumores celestes e infernais, e uma tempestade de sonhos enlouquecia-me no alto de um cerro vertiginoso. Então, olhando-me doce e espiritualmente, Isabela, em estranha suavidade, retirou lentamente seus lábios dos meus. Levantou-se e partiu, sem dizer palavra e em perturbadora serenidade, pela escuridão da mata. Já era noite.

(...)

Sim, meu avô, agora eu entendo o que me disseste. Deixei-lhe este relato porque vou partir com ela. Quando naquele fim de verão eu percorria os seus vastos campos, meu querido avô, eu senti que algo de anômalo pairava nas inquietantes atmosferas. Hoje, completam-se seis meses desde que recebi o absurdo e delirante beijo de Isabela. Desde então, vi-a por mais três vezes, e minha decisão está tomada. Eu sei, o senhor vai dizer que enlouqueci, que ela conseguiu seus objetivos, que me hipnotizou inexoravelmente com seu funesto poder, que pagarei com a morte a minha insanidade... Isso o senhor dirá, meu avô, mas eu não me preocupo. Provavelmente, isso tudo é verdade, talvez eu morra sob a influência da estranha mulher... Porém, morte ainda pior seria continuar vivendo entre os humanos sem ela.

É claro, como o senhor havia me alertado, talvez ela não seja uma mulher. Talvez ela seja um daqueles espíritos femininos que há milênios habitam as regiões isoladas do pampa, uma oculta alma da natureza, um daqueles elementais fantasmagóricos que em alguns momentos de suas misteriosas existências decidem encontrar uma vítima para levar para seu mundo inaceitável. E talvez tenha sido eu uma dessas vítimas. Desconheço por que eu seria um dos raros escolhidos... Talvez pela minha tendência doentia para a fantasia e para a mórbida imaginação... No entanto, provavelmente deverei morrer para acompanhá-la por regiões desconhecidas, e depois... Bem, depois nem mesmo o senhor soube me dizer o que aconteceria comigo...

Mas se assim for, tudo ocorrerá da maneira mais natural possível. O senhor encontrará meu corpo caído na beira da sanga. Eu terei morrido envenenado. Haverá um ferimento em minha perna, as marcas dos dentes de uma serpente. E o mundo não saberá de nada, apenas que eu morri pela picada de uma cobra...

28 de novembro de 1959.

Assina: Miguel Francisco Paiva

11 dezembro 2008

Não - Soneto

nas longas águas que enloucaram um vale
perdi estas cruzes todas elas vivas
me viram corvos perpassar nas línguas
eu tudo aquilo que não fui me lembro

caía um mundo sobre meus crepúsculos
ouvi de um selo que beijou-me em fronte
só eu sozinho sim vi de em fim a arte
mas um martelo mais letal me acerta

perdi perdões que não te arrependi-me
eu sou aquilo que não tive e mato
e os teus desejos que pedi sonhei-me

um cristo leu-me pra acenar caveira
e fui beijar-te em alto horror sublime:
te sinto em versos sem nenhum sentido...

10 dezembro 2008

O Enigmático Sofrimento do Olhar de Van Gogh


Van Gogh
Auto-retrato

Um Poema do Mestre

A esperança, como um fósforo inda aceso

A esperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.


Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança ...
Mas viver é esperar e se cansar.


O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança é gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.


Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.


Fernando Pessoa

08 dezembro 2008

Menstruada

má...agoada
des/manchada em derr/amamentos
tu te purificas
ex/pulsando
trágica e catártica
lágrimas de útero
em alertas de término

tu te santi/ficas
em choros sanguino
lentos
lentos
pela tua pele
pelas tuas pernas
em rubras pétalas
das cho/rosas murchas
do jardim quente
do teu ventre
em chuvas...
eu absorvo
as tuas dores
melan
cólicas

05 dezembro 2008

Além...

queria expressar
além de toda expressão
dizer o que não é
escrever o que não posso
fazer arte do absurdo
que o limite do que existe
não me é e não me basta
não me é tal alto o céu
não me é tão fundo o inferno
não é tão negro o negro
nem tão belo o belo

queria fixar palavras
que passassem ao outro lado
do infinito
que ficassem mais além
da eternidade
palavras
que não fossem palavras
que fossem o universo
em essência de verbo
queria dizer tudo
não dizendo nada...

enfim eu não queria
que as minhas palavras
falassem do teu beijo
queria que elas...
fossem a tua boca

04 dezembro 2008

INTER - Campeão de Tudo

Não sou um fanático por futebol, mas aprecio bastante esse esporte. E o meu time é o Internacional. Assim, venho aqui deixar minha homenagem a mais uma façanha do Colorado: a conquista da Copa Sul-Americana, sendo o 1º clube brasileiro a vencê-la. Além do mais, segundo as palavras da própria Conmebol, o Inter passa a ser o mais INTERNACIONAL dos clubes brasileiros, sendo o único a conquistar todos os títulos disponíveis a um time do Brasil: Libertadores da América, Mundial Fifa, Recopa e Sul-Americana. Somente o Boca Júniors, da Argentina, também conquistou esses 4 títulos. Isso sem contar os títulos internacionais não oficiais que o Inter venceu, como o Torneio de Dubai. São façanhas que não podem passar ignoradas por um gaúcho. Em pouco mais de 2 anos o Inter vergou 5 dos maiores times mundiais (Barcelona, Boca, Stuttgart, Internacional de Milão, São Paulo) e quebrou vários tabus, como vencer o Boca no La Bombonera depois de 5 anos de invencibilidade do time argentino em torneios internacionais. O Inter é Mortal. Mata todos! Parabéns, "Glória do desporto nacional, Ó Internacional..."

03 dezembro 2008

Uma Tragédia Sem Importância...

Naquele ensolarado final de tarde primaveril, saí às ruas para mais uma de minhas costumeiras caminhadas. É sempre inspirador caminhar sentindo a brisa prazerosa tocar nossa face sob um límpido céu azul, ao paradisíaco aroma das flores e ouvindo o canto celestial das aves.

E quando já estava ao fim de meu passeio, encontrei sentada sobre uma calçada uma linda menina de cabelos brilhantes e olhos dourados, aparentando não mais que 13 anos de idade e vestindo uma roupa de cor verde bastante simples mas que muito se adequava à sua inocente beleza. Aproximei-me da menina e percebi que ela chorava copiosamente. Sentei-me ao seu lado e perguntei por que ela chorava tanto, ao que ela respondeu-me:

“Meus pais foram mortos há alguns dias, foram assassinados. Meu pai levou um tiro no peito, seu sangue respingou sobre mim. Minha mãe também foi ferida com um tiro, caiu no chão e teve sua cabeça esmagada sem piedade por aqueles homens cruéis. Meus irmãos mais jovens foram raptados pelos assassinos, eles os levaram. Eles gritavam e choravam desesperados, mas não podiam fugir. Só eu consegui escapar.

Eu fugi, e sem meus pais não sabia o que fazer. Nós vivíamos no interior de uma floresta, tínhamos a nossa casinha onde éramos tão felizes, mas ela foi destruída, e aqueles homens maus devastaram toda a floresta. E lá plantaram uns arbustinhos que chamavam de soja. Eu fiquei por um tempo escondida em um pequeno bosque, o único pedaço de mata que restou. Alimentava-me de algumas frutinhas que encontrava por ali.

Um dia os homens maus vieram carregando algumas coisas que não sei dizer o que eram e começaram a fazer sair uma nuvem branca sobre a soja. Acho que aquela nuvem era venenosa, porque ela veio até mim, e eu a respirei, e seu cheiro era horrível. Comecei a me sentir mal, fiquei tonta e saí da mata em direção ao rio.

Quando lá cheguei, bebi um pouco d’água para me sentir melhor, mas a água estava com um gosto muito ruim, e senti-me ainda pior. Havia coisas estranhas no rio, sujeiras, lixos, e as águas que antes eram tão limpinhas, tão bonitas, onde eu e meus irmãos brincávamos e pegávamos bichinhos da água, estavam marrom, mau-cheirosas e sem nenhum peixe. Também não havia mais na beira do rio as grandes árvores verdejantes onde nós tanto gostávamos de brincar.

Então saí do rio sentindo-me muito mal. Voltei para a mata, a nuvem branca já tinha passado. Foi então que ouvi tiros que se aproximavam de mim. Seriam aqueles assassinos? pensei. Eu devia fugir dali, ainda que mal tivesse forças para isso. Então saí da mata no mesmo momento em que vi aqueles homens matando a tiros uma família de cachorros-do-mato. Mataram todos os cachorros, pai, mãe e os três filhinhos, mataram por matar, para se divertir, porque nem levaram seus corpos, deixaram lá para apodrecer e saíram rindo muito satisfeitos.

Mesmo quase sem forças, eu consegui escapar. E assim, lentamente fui me dirigindo para a cidade. Então, com muita dificuldade, cheguei até aqui onde estou. Eu estava escondida naquela árvore, mas perdi todas as minhas forças, mal conseguia respirar, e caí sobre a calçada. Ainda consegui erguer-me, mas sentia que aquela nuvem venenosa que respirei no campo estava me matando, ela me asfixiava. Mas ainda vivia e lutava pela vida. Tentei caminhar pela rua, era tudo que podia fazer, na esperança de que alguém me ajudasse. Vi que vinham crianças, e pensei que elas não seriam más e então me ajudariam.

Mas eu muito me enganei. Aquelas crianças, ao verem que eu ali estava caminhando com dificuldade, juntaram muitas pedras para atirar em mim, acertando algumas com muita força. A dor que elas me causavam era insuportável. Eu sentia as pedras machucando e cortando minha carne, fraturando meus ossos, via meu sangue escorrer, e não podia fazer nada. Uma das pedras quebrou minha perna direita, e não pude mais caminhar. Eu já não agüentava mais, até que uma pedra enorme foi jogada sobre minha cabeça. Ainda ouvi e senti meu crânio ser esmagado, e logo a morte veio para aliviar minha dor. Ali está o que restou do meu corpo.”

Olhei à minha esquerda e percebi o cadáver de um pequeno pássaro de plumagem verde, amarela e azul esmagado por dezenas de pedras. Perplexo, voltei meu rosto para a menina e nem precisei perguntar, pois ela se adiantou:

“Sim, eu sou o espírito daquela avezinha, sou sua alma. Os homens acabaram com a minha vida, com minha família, com meu canto, com minha felicidade. E quem teria piedade de um pobre pássaro, quem daria atenção para mim? Ninguém, ninguém dá atenção para essas coisas... Esses são os humanos... O que vocês estão fazendo com a vida deste planeta? E quando toda essa vida morrer, o que será de vocês?”

Nesse instante, acordei de meu sonho. Sim, tudo não passou de um sonho. Ou pesadelo. Levantei-me, profundamente abalado. Horas depois saí para caminhar nas ruas. E qual não foi meu espanto ao encontrar em um local arborizado um pássaro verde, amarelo e azul esmagado por dezenas de pedras. Agora, era a realidade...

01 dezembro 2008

O Poema mais Trágico

Qual o poema mais trágico da literatura brasileira? O amigo leitor já pensou a respeito? Certamente, é uma decisão dificílima, ainda que a literatura brasileira não seja lá tão trágica, se compararmos com a alemã, com a inglesa, com a francesa... Nas américas, eu escolheria "O Corvo", de Poe, como o mais trágico poema. Mas ficando apenas no Brasil, qual escolher? Pensei bastante a respeito, e entre os poetas que conheço oscilei entre obras de Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Fagundes Varela, Alphonsus de Guimaraens, Emiliano Perneta, entre alguns trágicos poemas de nosso Modernismo e Pós-modernismo, entre obras de alguns autores bem pouco conhecidos, enfim, analisei um quantidade razoável de poemas dentro de minhas possibilidades, mas acabei me decidindo pela poesia do talvez mais famoso de nossos poetas sombrios: Álvares de Azevedo. De fato, ele compôs um poema que é insuperável no quesito "tragicidade"(na minha opinião, que isso fique bem claro, afinal sempre haverá divergências naturais e compreensíveis, até porque eu não posso conhecer todos os poemas escritos no Brasil). E mesmo que o poema abaixo não seja o mais trágico entre os brasileiros, pois trata-se de uma análise obviamente subjetiva, como não pode deixar de ser em artes, é fato incontestável que muito dificilmente alguma obra em verso superará o profundo e radical desespero e melancolia deste escrito azevediano, o clima desolador de perda e de fim, a densidade perturbadoramente sombria de um universo emocional carregado de devastadores desejos e inquietações sem resposta e que se chocam fatalmente contra um mundo sem sentido. A seguir, o poema que, na minha humilde decisão, é o mais trágico da literatura brasileira. Se alguém quiser deixar sua contribuição, citando algum outro poema brasileiro que seja mais trágico do que este, sinta-se à vontade, será muito bem-vindo.

Lágrimas de Sangue

Ao pé das aras no clarão dos círios
Eu te devera consagrar meus dias;
Perdão, meu Deus! perdão
Se neguei meu Senhor nos meus delírios
E um canto de enganosas melodias
Levou meu coração!

Só tu, só tu podias o meu peito
Fartar de imenso amor e luz infinda
E uma Saudade calma;
Ao sol de tua fé doirar meu leito
E de fulgores inundar ainda
A aurora na minh'alma.

Pela treva do espírito lancei-me,
Das esperanças suicidei-me rindo...
Sufoquei-as sem dó.
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.

Indolente Vestal, deixei no templo
A pira se apagar — na noite escura
O meu gênio descreu.
Voltei-me para a vida... só contemplo
A cinza da ilusão que ali murmura:
Morre! — tudo morreu!

Cinzas, cinzas... Meu Deus! só tu podias
À alma que se perdeu bradar de novo:
Ressurge-te ao amor!
Malicento, da minhas agonias
Eu deixaria as multidões do povo
Para amar o Senhor!

Do leito aonde o vício acalentou-me
O meu primeiro amor fugiu chorando.
Pobre virgem de Deus!
Um vendaval sem norte arrebatou-me,
Acordei-me na treva... profanando
Os puros sonhos meus!

Oh! se eu pudesse amar!... — É impossível!
Mão fatal escreveu na minha vida;
A dor me envelheceu.
O desespero pálido, impassível
Agoirou minha aurora entristecida,
De meu astro descreu.

Oh! se eu pudesse amar! Mas não:
agora que a dor emurcheceu meus breves dias,
Quero na cruz sangrenta
Derramá-los na lágrima que implora,
Que mendiga perdão pela agonia
Da noite lutulenta!

Quero na solidão — nas ermas grutas
A tua sombra procurar chorando
Com meu olhar incerto:
As pálpebras doridas nunca enxutas
Queimarei... teus fantasmas invocando
No vento do deserto.

De meus dias a lâmpada se apaga:
Roeram meu viver mortais venenos;
Curvo-me ao vento forte.
Teu fúnebre clarão que a noite alaga,
Como a estrela oriental me guie ao menos
Té o vale da morte!

No mar dos vivos o cadáver bóia
— A lua é descorada como um crânio,
Este sol não reluz:
Quando na morte a pálpebra se engóia,
O anjo se acorda em nós — e subitâneo
Voa ao mundo da luz!

Do val de Josafá pelas gargantas
Uiva na treva o temporal sem norte
E os fantasmas murmuram...
Irei deitar-me nessas trevas santas,
Banhar-me na friez lustral da morte
Onde as almas se apuram!

Mordendo as clinas do corcel da sombra,
Sufocado, arquejante passarei
Na noite do infinito.
Ouvirei essa voz que a treva assombra,
Dos lábios de minh'alma entornarei
O meu cântico aflito!

Flores cheias de aroma e de alegria,
Por que na primavera abrir cheirosas
E orvalhar-vos abrindo?
As torrentes da morte vêm sombrias,
Hão de amanhã nas águas tenebrosas
Vos rebentar bramindo.

Morrer! morrer! É voz das sepulturas!
Como a lua nas salas festivais
A morte em nós se estampa!
E os pobres sonhadores de venturas
Roxeiam amanhã nos funerais
E vão rolar na campa!

Que vale a glória, a saudação que enleva
Dos hinos triunfais na ardente nota,
E as turbas devaneia?
Tudo isso é vão, e cala-se na treva
— Tudo é vão, como em lábios de idiota
Cantiga sem idéia.

Que importa? quando a morte se descarna,
A esperança do céu flutua e brilha
Do túmulo no leito:
O sepulcro é o ventre onde se encarna
Um verbo divinal que Deus perfilha
E abisma no seu peito!

Não chorem! que essa lágrima profunda
Ao cadáver sem luz não dá conforto...
Não o acorda um momento!
Quando a treva medonha o peito inunda,
Derrama-se nas pálpebras do morto
Luar de esquecimento!

Caminha no deserto a caravana,
Numa noite sem lua arqueja e chora...
O termo... é um sigilo!
O meu peito cansou da vida insana;
Da cruz à sombra, junto aos meus, agora
Eu dormirei tranqüilo!

Dorme ali muito amor... muitas amantes,
Donzelas puras que eu sonhei chorando
E vi adormecer.
Ouço da terra cânticos errantes,
E as almas saudosas suspirando,
Que falam em morrer...

Aqui dormem sagradas esperanças,
Almas sublimes que o amor erguia...
E gelaram tão cedo!
Meu pobre sonhador! aí descansas,
Coração que a existência consumia
E roeu um segredo! ...

Quando o trovão romper as sepulturas,
Os crânios confundidos acordando
No lodo tremerão.
No lodo pelas tênebras impuras
Os ossos estalados tiritando
Dos vales surgirão!

Como rugindo a chama encarcerada
Dos negros flancos do vulcão rebenta
Golfejando nos céus,
Entre nuvem ardente e trovejada
Minh'alma se erguerá, fria, sangrenta,
Ao trono de meu Deus...

Perdoa, meu Senhor! O errante crente
Nos desesperos em que a mente abrasas
Não o arrojes p'lo crime!
Se eu fui um anjo que descreu demente
E no oceano do mal rompeu as asas,
Perdão! arrependi-me!

Álvares de Azevedo