27 junho 2008

Os Urubus Demoníacos - História 2ª

No princípio da terceira década do século XIX, o tropeiro espanhol Esteban Velasquez cruzava os ermos pampas do extremo sul do Brasil à procura de um local agradável para seu repouso, após dias de extenuantes peregrinações solitárias, ou quase solitárias, se considerarmos a fiel companhia de seu cavalo.

Esteban encontrou então numa região absolutamente deserta de seres humanos, semi-oculto por duas imensas coxilhas, um pequeno e aprazível lago cercado por um frondoso capão de mata, um local realmente convidativo ao descanso. O tropeiro acercou-se do lago, desceu do cavalo e sentou-se distraidamente sobre a relva verdejante e macia à beira das águas límpidas e tranqüilas. Ali, ele podia observar, do outro lado do lago, as árvores imensas da pequena mata, onde dezenas de pássaros emitiam um alegre canto naquele princípio morno da tarde ensolarada.

As margens do lago não eram, como em outros casos, cercadas por arbustos e plantas que dificultavam a aproximação até as águas, pelo contrário, tão-somente havia um vasto gramado que se estendia até elas. Tanto que de uma das duas grandes bolsas que Esteban carregava sobre o cavalo, ele retirou um copo e o encheu com a água cristalina do lago e saciou sua sede. Após, dirigiu-se à outra margem, chegando à beira da mata, e ali, sob a sombra aconchegante das árvores, decidiu fazer seu almoço de charque com pão.

Tranquilamente o tropeiro comia e aproximou-se das águas para colher mais um copo d’água. E foi nesse instante que sua tranqüilidade alçou vôo para nunca mais voltar... Ao retirar o copo do lago, o que Esteban viu não foi aquela mesma água pura e transparente, mas um líquido avermelhado de coloração verdadeiramente sanguinolenta. Alarmado, o espanhol jogou fora a água vermelha e observou atentamente o interior do lago no intuito de encontrar algum cadáver, fosse de homem ou animal, de onde pudesse se originar o sangue que contaminava o lago. Porém, o que Esteban divisou foi algo que ultrapassava as barreiras do absurdo. As águas antes límpidas e translúcidas eram agora invadidas por um fluxo inesgotável de um líquido que possuía a cor e o cheiro de sangue.

O tropeiro percebeu que o sangue, se é que realmente o era, provinha do centro do lago e rapidamente contaminava toda a sua extensão, não restando sequer uma gota de água pura. Para ser mais exato, o misterioso sangue, cuja fonte era impensavelmente desconhecida e insondável, não apenas contaminou as águas, parecia mais ter tomado conta totalmente delas, era como se tivessem se transformado em líquido sanguíneo. Esteban, atônito e assustado, não conseguia formular nenhuma explicação para o que ocorria e, quando ainda observava o fluxo viscoso de sangue do interior do lago e sentia o seu cheiro nauseante, percebeu que o dia, antes ensolarado, rápida e ameaçadoramente principiou a escurecer-se. Com um vento quente e enfermiço, invadiram os céus da região pesadas nuvens de um lúgubre tom avermelhado. Em questão de minutos, todo o céu foi encoberto por densos e estranhos nimbos carregados por uma sinistra coloração escarlate e sangrenta.

Trovões cavernosos e relâmpagos obscuramente rubros expandiram-se pelos céus de sangue, e tudo indicava que em breve desabaria uma chuva torrencial. Nesse instante, o numeroso bando de pássaros abrigados na mata, que se calara no momento em que as águas do lago principiaram a tornar-se vermelhas, iniciaram a emitir não mais o canto alegre e harmonioso quando da chegada do tropeiro, mas um lamento lúgubre, arrepiante, um cântico de morte que assombrava e deprimia, algo completamente diverso e inadequado para o canto de uma ave.

Porém, esse canto fúnebre prolongava-se e aumentava de intensidade de forma progressiva, enquanto um desespero nervoso massacrava o espanhol, que já não podia acreditar que tais absurdos não passassem de perturbadas alucinações, tamanha era a impressão de realidade deixada por aqueles horrores.

Enquanto os hediondos lamentos das aves prosseguiam, e o lago já transbordava de sangue, as primeiras gotas de chuva caíram grossas e pesadas sobre o campo, sobre a mata e sobre Esteban. Contudo, não eram gotas de água, eram gotas de sangue. Sangue que escorreu pela face do tropeiro, e ele percebeu que era um sangue morno e pôde sentir seu gosto de ferro adocicado, enquanto a chuva sangrenta se derramava em sua boca. E aquele sangue, ao cair sobre o campo, queimava a grama e, ao cair sobre a mata, murchava as folhas das árvores. Ainda assim, os pássaros mantinham seu canto de desespero e profundo mau-agouro.

Porém, outras aves foram atraídas pelo cheiro nauseabundo do sangue... Um gigantesco bando de urubus assomou como uma mancha negra nos horizontes enfebricidos e numa velocidade diabólica atingiu a mata grunhindo e chilreando em um alarido insano e demoníaco. As aves pousaram próximo a Esteban, encharcadas de sangue e adejando triunfantes suas asas enormes na chuva infernal.

Aquele inexplicável espetáculo dantesco parecia não ter fim: a chuva continuava implacável caindo das sobrecarregadas nuvens vermelhas e emurchecendo a vegetação; o lago prosseguia transbordando seu sangue espesso, enquanto nos céus os odiosos trovões e relâmpagos atordoavam sem misericórdia a alma estarrecida de Esteban. Porém, o que mais aniquilava o espírito do tropeiro era a tortura ominosa do canto maligno dos pássaros, que agora parecia ser guiado pela não menos aniquilante gritaria satânica e debochada dos urubus. Foi só então que Esteban percebeu que seu cavalo não estava mais por ali, certamente fugira de tantos horrores.

O espanhol fitava os horizontes assustadoramente rubros e não distinguia nenhum sinal da tempestade de sangue acalmar-se. Não sabia o que fazer ou para onde ir. Decidiu entrar no capão de mata para abrigar-se ao menos parcialmente. Desvairado, rapidamente penetrou na mata, sempre atormentado pela histeria absurda dos urubus. Avançou aos tropeções, até que estacou perplexo ao encontrar enrodilhada à sua frente uma imensa serpente de um vermelho angustiantemente vivo e sanguinolento.

Sem que Esteban pudesse evitar, a serpente cravou as presas na sua perna, perfurando suas calças e inoculando um veneno provavelmente fatal. O tropeiro caiu e sentiu-se desfalecer, sabendo que a morte já o fitava, enquanto o ferimento da picada vertia sangue em infrene profusão. Minutos depois, Esteban jazia inconsciente no meio da mata, que mais parecia um banhado de sangue.

No entanto, passados alguns minutos, o tropeiro acordou. Não, não estava morto. Ele observou o local onde se encontrava, e não havia nenhum vestígio de sangue. Olhou para o ferimento de sua perna, mas não havia ferimento, não havia picada. Também não havia nenhuma serpente. O dia estava ensolarado como no princípio, nenhum sinal de chuva de sangue, nenhuma nuvem maculava o céu azul. Esteban, já à beira da insânia, saiu da mata e dirigiu-se ao lago. Encontrou suas águas puras e cristalinas como quando as viu pela primeira vez. Os pássaros ali permaneciam, porém entoavam seus cantos felizes e harmoniosos em honra a luz do sol. E Esteban não avistou nenhum urubu demoníaco por ali. Mas avistou seu cavalo no mesmo lugar em que o deixara.

Absolutamente confuso e caótico, porém acreditando agora que tudo não passou de uma funesta alucinação, ainda perturbado, Esteban montou em seu cavalo e partiu daquela região bela, mas de uma beleza maldita...

Não se sabe o que realmente ocorreu naquele local do pampa gaúcho, e o tropeiro Esteban Velasquez, buscando o esquecimento, como se isso fosse possível para sua alma profundamente traumatizada, jamais procurou saber. No entanto, o que se sabe é que cinco anos após o terrível acontecimento, teve início no RS a Revolução Farroupilha, responsável por um dos maiores derramamentos de sangue da história brasileira.

E o que também não se sabe é que no ano de 1890, o peão de fazenda Luiz Juvenal Soares relatou a amigos e familiares um canhestro caso assombrosamente semelhante ao ocorrido com o espanhol Esteban. Segundo as palavras do próprio Luiz Soares, o que ele viu consistia em “sangue, eu só via sangue pra tudo quanto é lado, e um bando de corvo pingando sangue que gritavam como uns diabo, parecia até que davam umas risada.” Naturalmente, ninguém deu atenção aos desvarios absurdos do rústico e simplório peão, até porque ele já estava apresentando alguns sinais de perturbação mental e dizia que sonhava com urubus enormes com espantosa freqüência. E ninguém relacionou as visões de Luiz Soares com o fato de, três anos mais tarde, em 1893, os vastos campos rio-grandenses terem sido palco de mais um brutal festim sangrento com a Revolução Federalista.

Conta-se ainda que poucos anos antes da Revolução de 1930, um colono italiano teria tido “visões inenarráveis de derramamentos sangrentos em uma região selvagem do interior gaúcho, o que o levou, horas depois de relatar o fato a sua esposa, a cometer suicídio”, segundo noticiado no rodapé de um jornal da época. Deixara uma breve carta de despedida, onde se lia o seguinte trecho: “não agüento mais sentir as asas desses corvos batendo na minha cabeça e essas risadas de demônios...”

Porém, o que não se sabe é que em novembro de 2007, alguém, que é melhor não identificar, relatou-me algo com ele ocorrido inquietantemente similar ao antigo caso de Esteban Velasquez. Porém, com uma sinistra variação: em lugar de sangue, o que esse alguém vislumbrou foi um repulsivo líquido negro, e o número de urubus demoníacos era maior, absurdamente maior, e seus deboches malignos e estridentes eram piores, bem, bem piores...

23 junho 2008

Sentença

aquele Olho que me olha
nunca deixa de me olhar
um olho negro como um erro
um olho firme como um crime
um olho forte como a morte
como é fundo aquele olhar...
é tão fundo como o nada
é tão sério como o fado
é tão duro quanto a sina...
a que mistérios
me destina?

nunca sorri aquele olho
nunca pisca aquele olho
nunca muda aquele olho
aquele Olho
que me olha
nunca deixa de me olhar
aquele Olho
que me olha
nunca deixa de me olhar
nunca deixa
meu olhar

12 junho 2008

Tristeza, tão-somente

Tristeza
pura e simplesmente
sim, aquela de Cruz e Sousa
velha tristeza nada original
tristeza há muito tempo triste
longa, roxa e fantasmal

tristeza de tudo
tristeza por nada
de tudo que é sublime
por nada desolada
tristeza em quintessências
que flui aos olhos dos séculos
lá dos milênios e eras
até a tristeza do agora
tristeza do Início
e que jamais vai embora

tristeza do ontem e do hoje
e que vai até o Fim
de tudo que se perde e chora
e que sai dos teus olhos
e se expressa por mim
tristeza dos grandes finais
cada vez mais perto de nós
tristeza que cresce e assombra
com sombrios adeuses na voz

tristeza-sentença
do que é e de tudo que virá
de tudo que foi e que morre
tristeza que ao futuro corre
tristeza que não basta
e nunca bastará

05 junho 2008

Vão Vocês...

crer no possível mundo melhor
e ir pelo mundo em celestes sorrisos
e pregar que o mundo melhor é possível
em possíveis ciências celestiais...
os senhores podem ir, mas eu...
eu não agüento mais.

bater pelas portas com mãos de esperança
com faces de luz em vivas canções
e nas ruas erguer as bandeiras
à esperança-portas em que vós entrais
as senhoras podem ir, mas eu...
eu não agüento mais.

e olhar nos olhos com olhos de amor
em rostos felizes de felizes amores
levar a alegria em lindos olhares
olhares de amor a que vós alegrais...
vós todos podeis ir, mas eu...
eu não agüento mais.

ah os vossos sonhos
os sonhos vossos
já sonhei todos
os vossos sonhos
antes de serem vossos
e os sonhos meus
sonham sempre comigo...
mas usar os sonhos
pra sonhar nas ruas
em humanos ideais?
não não...
vão vocês!
que eu não agüento mais.

01 junho 2008

Segredo

nas asas do Fim de tudo que foge
nas vozes tormenta longa distante
nas nuvens que crescem aos gritos de corvos
em tudo que parte em fúria do vento
em tudo que voa em força desastre
em tudo que canta sentenças ao longe
meus velhos olhos que explodem em ciclones
meus olhos doenças com asas pesares
meus corvos olhos no cosmos malditos
lá onde as mortes arrancam com foices
lá onde os carmas orquestram ocultos
lá onde os deuses tempestam universos
é lá onde estou com meu luto segredo

22 maio 2008

Um Beijo e Uma Frase...

Naquela noite fria e longa, tu chegaste. Uma tempestade se formava lá fora. E para aquecer-me com tua lembrança, eu ouvia as paixões terríveis de Brahms. Há muito que eu te esperava. A tempestade apagara a luz, só uma vela iluminava tua face. Como era belo o segredo da tua visita! Vi e senti a luz dos teus olhos cintilando ao entrares no meu quarto. Não sei que espécie de magia estranha envolvia os teus olhares, tão escuros que brilhavam como lagos, tão intensos que falavam-me mistérios. De onde foi que tu vieste?

Tu vestias o negro puro das noites profundas, e junto contigo invadiu o meu quarto o perfume escarlate das rosas invisíveis que enfeitam teu corpo. Senti-me nos paraísos edênicos aos aspirar o teu aroma nos ares repletos da tua presença. A tempestade relampejava lá fora. E à luz de raios eras ainda mais bela. Lentamente, foste te aproximando de mim em tua doce elegância de fêmea. Tu parecias que flutuavas... E eu te fitava como num sonho...

Sentaste ao meu lado na cama, e eu repousei meu olhar no teu rosto. Aqueceu minha alma o calor que teu corpo irradiava, tão junto do meu. Quando teus dedos tocaram em febre minha mão, senti que o sangue correu mais rápido nas veias, aos pulsos de vida de meu coração inflamado. Sorrimos, e desse sorriso nasceu nosso beijo. A tempestade enlouquecia lá fora. E que loucura era teus lábios tocarem os meus. Como o sonho toca os lábios da noite. Os vapores quentes de tua respiração eram um delírio que me entorpecia. Quanto desejo cantava em nossas línguas! Como bebi sedento os vinhos que destilava a tua boca. Embriaguei-me de teus licores doces e férvidos como um alucinógeno. Consumi-me nos teus lábios, na tua língua, nos teus dentes.

E que música sublime ouvi de ti quando beijei o perfume de teu pescoço: foram os teus suspiros, que me estremeceram. Mergulhei em teus suspiros, eram sons de violinos. Teus violinos murmuravam em meus ouvidos. E eu sussurrei no teu espírito. Teus dedos deslizavam por meu rosto. Deixamos nossos átomos um para o outro.

Em um abraço denso e forte como a morte, deitamo-nos na cama. Lá fora, abraçava o mundo a tempestade. Eu te disse coisas que não digo. E tu falaste coisas que não falo. Mas tua voz me elevava como as aves, percorria a minha pele como um rio de água morna e cristalina. E meus dedos percorriam a tua pele como se fossem brisas quentes de verão.

Enquanto nossos cabelos se misturavam, nossas bocas transmitiam o segredo dos nossos corpos. E a tempestade desabava. Lá fora o mundo se findava e o nosso beijo era infinito. Lá fora o mundo de consumia, e nós nos consumíamos num beijo. Como amei tua alma naquele curto instante eterno! Como amei teu corpo naquele eterno instante curto! Eu absorvia os desejos de amor da tua alma e do teu corpo. E os sentia em tempestade! E a tua alma me aquecia... E o teu corpo me incendiava! Tanto, tanto, mas tanto... que... eu me acordei.

Acordei, e tu não estavas no meu quarto. E a tempestade consumia-me lá fora... Consumia-me aqui dentro. Mas astralmente tu ainda pairavas do meu lado. Sentia tuas auras quando respirava aquele ar...

Um Beijo... e uma Frase. Que frase? Esta, de Fernando Pessoa: “E, por fim, tenho sono, porque, não sei por que, acho que o sentido é dormir.” E eu voltei a dormir...

18 maio 2008

Descanso

lentidões roxas
de exaustas marchas fúnebres
luas cheias exauridas
decadentes
irreais
em sono morno de felinos negros
em frio de sóis sobre campos longos
cantos langues
sombriamente celestiais
fundos lagos
de sonhos parados
coaxam sapos
versos em sinais
todos lentos e cansados
como sangues de lábio em asas
como aves e névoa em taças
e venenos infernais
vinhos verdes
rosas fadas
se derramam das estrelas
choram morrem
olhos-noites de tristezas
em réquiens musicais
de amor negro e devastado
de um mundo já esgotado
em verbo e horas lentas
e finais...

30 abril 2008

A Cidade Fétida e a Estranha Doença do Senhor Noite

Sou conhecido como o senhor Louis Noite. Claro que meu sobrenome não é esse, mas assim tornei-me conhecido devido ao estranho caráter dos impiedosos sintomas de minha enfermidade, os quais me impedem de sair às ruas durante o dia. Não que os raios solares sejam a mim nocivos, o que ocorre é que o sofrimento causado pela desconhecida patologia torna-se inexplicavelmente insuportável durante o dia, amenizando-se pelas horas noturnas.

Outras características e sintomas de minha doença são ainda mais absurdos, frutos de uma inquietante alteração de consciência, que muito se assemelha a uma esquizofrenia, com a diferença essencial de que sempre mantenho-me consciente de tudo o que comigo ocorre. Para exemplificar claramente o comportamento de minha enfermidade, relatarei os acontecimentos daquela terrível noite, da qual julgo desnecessário mencionar sua data.

Realizava eu uma de minhas longas caminhadas noturnas, que é quando intento buscar momentâneo alívio à dor física e psicológica ocasionadas pela doença, e, costumeiramente, meu lobo negro juntou-se a mim. Sim, em minhas caminhadas, sempre tenho a companhia de um imenso lobo de espessa pelagem negra, que comigo dialoga durante toda a noite. Esse é mais um sintoma da enfermidade, a visão de um lobo que conversa como um humano e que, obviamente, não é visto por ninguém mais, e, assim, todos pensam que converso sozinho, mas quem me conhece já está acostumado com minha loucura. Às vezes, subo às costas do lobo, e ele carrega-me por estranhos e magnificentes lugares oníricos, os quais não é meu objetivo descrevê-los agora. Outro sintoma, que ao longo daquela noite encontrava-se um tanto exaltado, consiste no fato de, ao passar por qualquer árvore, invariavelmente, perceber um vulto luminoso ao lado, acima, ou interpenetrado na mesma. Identifico tal vulto como a alma da árvore e com ela mantenho um absurdo diálogo.

Contudo, como ia dizendo, aquela noite foi verdadeiramente terrível. Não diferiu muito das outras em sua essência, mas na intensidade e dramaticidade dos acontecimentos. Talvez por ser lua cheia, dizem que isso afeta os loucos. Passava eu por um grupo de jovens quando, involuntariamente, pude ouvir sobre o que se tratavam os assuntos de suas conversas. Ao fazê-lo, senti um tremendo choque em meu cérebro, uma febre alucinante que me transmitia a insuportável sensação de que meu crânio iria derreter. Atribuo tal choque à imensa quantidade de bobagens e de futilidades contidas nas conversas daqueles jovens, tão agressivas a minha mente enferma que a acometeu de uma febre vulcânica.

Prosseguindo em meu sinistro passeio, avistei em uma esquina um homem alto que muito chamava a atenção. Ele conversava com outros dois homens, e, aproximando-me, percebi que se tratava de um respeitável candidato a deputado. Então, outro sintoma de minha enfermidade principiou a se manifestar, agora na forma de estarrecedores distúrbios visuais. Meus olhos doentes e insanos não viam ali somente um alegre e eloqüente político, mas um ser monstruoso, de cuja boca gotejava uma baba amarelada e purulenta, de cujos olhos brotavam horripilantes ejaculações gangrenosas. E ainda tive a nítida impressão de que ao fundo da boca bestial daquele ser para mim desprezível havia algo como um maligno deboche. Aquele ar perverso e vazio que o político irradiava perturbou sobremaneira minha demente psique, e eu não conseguia entender como que os outros não se davam conta de nada disso, como tudo era tão normal para os outros e tão horrível para mim.

Já durante a madrugada, passei em frente a uma boate e pude captar os sons das músicas que de lá provinham. O resultado foi que percebi aqueles sons tão doentiamente que meus ouvidos gotejaram sangue por várias quadras. Felizmente, tinha sempre ao meu lado meu amigo lobo, que me consolava, contando-me histórias de um mundo muito além do nosso, o que tranqüilizava meu espírito atormentado.

Quando tentava fugir a todas as pessoas, pois já me era intolerável o que o normal comportamento humano sintomaticamente despertava em mim devido à enfermidade, tive a má-sorte de cruzar por um grupo de pessoas eufóricas e muito falantes. Durante arrastados minutos, pude ouvir tudo o que disseram, mesmo que deles me afastasse rapidamente, pois meus tímpanos tornaram-se superexcitados após o sangramento. E essa extrema sensibilidade de meus ouvidos permitiu que eu ouvisse não só as suas frívolas conversas, mas também, e sem dúvida isso é mais uma alucinação de minha doença, algo como uma outra voz simultânea que soava ao fundo das vozes normais e transmitiam a impressão intuitiva de que eram emitidas pelo interior dos falantes. Enquanto aquele grupo comentava sobre diversões e festas, as vozes ao fundo, num tom rouquenho, monstruoso, falavam de dor e desespero, de solidão e vazio. Enquanto eles abordavam suas atividades de seus empregos, as vozes ao fundo se diziam escravas de um trabalho inútil e embrutecedor; e ao falar o grupo sobre dinheiro, as vozes diabólicas grunhiam sobre a total falta de sentido na vida e a maquinização do ser humano; enquanto aquelas pessoas tratavam de suas alegrias e felicidades, as lúgubres vozes interiores rugiam e gemiam infinitas tristezas, desesperanças e fatalidades. E eu, ao ouvir todo aquele infernal espetáculo de horror, senti-me perigosamente asfixiado, e lágrimas infrenes brotaram de meus olhos e uma dor de cabeça lancinante torturou-me ao máximo.

Psiquicamente dilacerado pelos sintomas de minha enfermidade, subi às costas do lobo e saí da cidade. Minutos depois, avistamos uma imensa carruagem de aspecto mitológico, puxada por sete cavalos possantes e imponentes, certamente, outra alucinação oriunda da doença. Sobre o primeiro dos cavalos, estava um homem de longo cabelo, trajando vestes, de vermelho vivo, típicas de um guerreiro nórdico. Sobre a carruagem, avistei uma imensa águia de asas abertas, com o agudo olhar fixo no horizonte. Dentro do carro mitológico havia alguns indivíduos, e, ao lado de cada um, um lobo ou um leopardo. O cavaleiro de trajes vermelhos parou a carruagem e convidou-me a subir. Eu o fiz, juntamente com o lobo. A carruagem prosseguiu até subir um alto monte, onde um frio vento soprava incessante. No cume do monte, olhamos para trás e avistamos ao longe a cidade, envolta em uma fumaça negra e mórbida. Com o vento, um fedor indescritivelmente insuportável foi trazido daquela decadente região urbana. E eu pensei comigo que até então fizera parte daquela completa degeneração...

21 abril 2008

Noivado

noivado da noite
com o mundo da lua:
núpcias minhas...

Noite:
eu não quero
que tu me digas coisa nenhuma
não me enchas com filosofias
não me cegues de verdade inútil
te amo porque és silêncio
e o teu mistério só fala de sonho
e eu não quero saber de mais nada
então fecha teus olhos de estrelas
então abre teus lábios de trevas
e beija minha boca de morte

Noite...
deixa que outros discutam a vida
deixa que outros proclamem o que é certo
deixa que outros outorguem saberes...
nós somos tristes
não temos nada com isso...
por isso te digo:
fecha teus lábios de ocultos
abre teus lábios de longes
e beija minha boca de fim

13 abril 2008

Beijo

cinza antigo da coruja
em toques ao branco em neve lunar

negro da pata de aranha
em toques de rubros ao casto da rosa

treva da capa da noite
em toques de sol à íris que surge

escuro do pêlo de onça
em toques ao claro de água na fonte

cipreste de verde tão triste
em toques ao azul calmo de céus:

meus lábios
nos teus

31 março 2008

"Dante e Virgílio no Inferno" de Delacroix


O Baque no Fundo do Abismo

Deveria ser mais uma de minhas consoladoras caminhadas noturnas. Como disse Victor Hugo, “Eu sou um poeta. É a melancolia da gente da minha profissão que nos faz andar de noite pelas ruas.” Porém, aquela caminhada não foi como as outras...

A princípio, apenas digo que parti em minha tranqüilidade soturna para perambular solitário pelas ruas obscurecidas de minha cidade. A temperatura reconfortantemente fria do cair da noite e o céu absolutamente límpido, cintilante pela onírica magia de um quase plenilúnio, causaram-me uma agradabilíssima sensação, um bem-estar físico e psicológico quase transcendente. E ocorreu que enquanto tais sensações atingiam o auge no momento em que percorria um trecho belamente arborizado e com algumas casas bastante antigas, carregadas de recordações e impressões, percebi a minha frente o elegante caminhar de uma mulher de longos cabelos castanhos escuros, vestindo um casaco preto com detalhes em lilás. Não pude ver seu rosto, mas algo nela atraiu-me fantasticamente, uma atração que não saberia explicar, que não era meramente física, uma atração quase sobrenatural. E foi essa poderosa sensação que fez com que eu seguisse a desconhecida mulher pelas ruas mergulhadas na noite, não me importando nem um pouco o seu destino...

Seu caminhar era charmoso, porém rápido, e necessitei apertar bastante o passo para acompanhá-la de uma distância relativamente pequena. Minha intenção era conseguir observar seu rosto, o qual, imaginava alucinadamente, deveria ser de uma rara beleza. Nos instantes em que ela olhava para os lados, ao atravessar as ruas, eu podia discernir com dificuldade algo de seu perfil, o que já me transmitia uma vaga idéia de sua fisionomia e confirmava minhas suspeitas sobre sua aparência física: concluí definitivamente que deveria ser de fato uma bela mulher...

No entanto, não conseguia me aproximar da desconhecida moça, seu caminhar era realmente acelerado, e o máximo que lograva manter era a nossa distância constante. Caminhávamos na mesma velocidade, se eu intensificasse meu passo, ela também o fazia, o que me levou a desconfiar que ela tinha conhecimento que eu a seguia e, temendo minha aproximação, decidiu chegar o mais rápido possível ao seu destino. Pelo menos foi o que pensei. Porém, apesar da exagerada velocidade de caminhada para uma mulher de aparência delicada e estatura mediana, não chegávamos a lugar algum. Estávamos atingindo já lugares afastados da cidade, pouco conhecidos por mim, contudo, minha inexplicável atração pela suposta beleza divina da misteriosa desconhecida era tamanha que nem pensei em desistir de minha insana perseguição.

Mas devo confessar que ao passar por aquelas ruas escuras, distantes, sombrias, comecei a recear... Um vago medo invadiu-me e passei a dirigir minha atenção não só para a mulher a minha frente, mas também para o que ocorria ao meu redor. A noite avançava, a lua cintilava intensa pelo empíreo sem nuvens, e um vento frio soprava impiedosamente em meu rosto, o que não chegava a ser para mim um desconforto, pois estava com o corpo já bastante aquecido.

Como disse, principiei a observar com mais atenção os meus arredores e percebi que, mesmo com o cair da temperatura, um sem-número de pessoas começava a abrir portas e janelas de suas residências para observar as ruas. Não entendia absolutamente nada, mas os olhares que aquelas pessoas a mim dardejavam não eram nem um pouco amistosos...

Em um momento, tive a nítida impressão que a mulher que eu seguia voltou seu rosto em minha direção, e julguei contemplar como um relâmpago um rosto feminino irrepreensivelmente angelical, com expressivos olhos escuros e uma boca de tonalidade avermelhada. Pareceu-me ainda que ela esboçou um suave sorriso. Porém, não pude ter certeza de nada, a escuridão naquele trecho impediu-me. E ela prosseguia em sua frenética caminhada, não obstante não perder a graça e a delicadeza jamais. E eu, sempre a seguindo desvairado, não podia deixar de perceber o número crescente de indivíduos, homens e mulheres, que surgiam às portas e janelas, e todos eles me fitavam canhestramente. Pude ver em seus olhos algo como um ódio, uma violência latente dirigida contra mim, um rancor, uma malignidade. Confesso que a partir desse instante um verdadeiro temor assolou meu coração, mas já não podia deixar de seguir aquele magnífico ser feminino, era tarde demais.

Avançava infrene, mesmo me sentindo seriamente ameaçado. E o clima de ameaça tornou-se ainda mais carregado no momento em que verifiquei estarrecido que as fisionomias de todas aquelas pessoas assustadoras pareceram sofrer algum tipo de funesta alteração, uma modificação monstruosa. Aparentavam ter perdido algo de suas características humanas para assumirem outras doentiamente diabólicas. Intensificou-se a perversidade, a malignidade daqueles rostos, e acelerei ainda mais o passo, não só para acompanhar a bela mulher, mas também para fugir daquelas visões pavorosas. Porém aquelas pessoas de expressões demoníacas estavam em todas as casas, em todas as portas, em todas as janelas. E o que mais me assombrava era a impressão de profundo e implacável ódio que a mim, e somente a mim, transmitiam. Intentei compreender o porquê de tamanha maldade ser a mim direcionada e deixei que minha intuição falasse...

Seria somente porque eu perseguia a enigmática mulher? O que haveria de especial nela? Seria algo divino ou diabólico? Ou ambos? Ou os motivos do ódio anormal e monstruoso contra mim possuiriam raízes mais diversas, mais profundas, mais secretas? O que eu via nos olhares ominosos de todos era uma degradante e inexorável miséria. Não uma miséria material (em nossos dias, a humanidade é tão miserável que se julga que a única miséria possível é a ausência de dinheiro e bens materiais), mas uma vergonhosa miséria psíquica e espiritual. E percebi que todo o ódio que me ameaçava tinha como causa o fato de que eu ainda sonhava...

Sonhava romântica e absurdamente ao perseguir alucinado e febrento pela noite invernal e escura aquela mulher supostamente misteriosa. E isso era para eles inadmissível, eu jamais deveria cometer o abominável crime de sonhar insanamente em meio a pessoas que há muito já extirparam e asfixiaram suas próprias almas. E o fizeram, segundo elas, em nome de uma fina intelectualidade e de uma moderna filosofia.

A verdade é que, para eles, seres como eu não deveriam dar-se ao trabalho de existir. Afinal, de acordo com o julgamento daquela gente, uma real existência consistia simplesmente em viver-se como um cadáver ainda com energia vital. Vivo, porém interiormente morto. Percebi de forma definitiva naqueles instantes oníricos, de sonho e pesadelo, que o terrível peso anímico de minha existência anômala recairia com toda sua força sobre minhas costas.

O ódio egóico daquelas pessoas de mefistofélica perversidade desejava esmagar-me, banir a minha diferença do meio delas. Como seria possível aceitar alguém tão diverso das determinações padronizadas? Um lunático, um nefelibata, um homem absurdo como eu, um ser impregnado de ideais e emoções nebulosas, de ânsias de um sublime perdido, deveria ser naturalmente aniquilado. Eu seria tão-somente um mau-exemplo, uma indesejada influência a todos aqueles cadáveres autômatos que não queriam abandonar suas acomodações. Não sei como ocorreu aquela materialização tão ostensível, tão visível de tamanho ódio a mim direcionado. O que sei é que fui escolhido como uma espécie de bode expiatório. Iria pagar o altíssimo preço por ter tido a ousadia de sonhar com o impossível, com o inatingível, com a busca do segredo das almas... O segredo daquela mulher era um segredo de alma. E aqueles cadáveres da miséria do mundo que intentavam massacrar-me com seus olhares mentiam a si mesmos que eles representavam toda a vida possível e estavam certos que as minhas sombras nebulosas e secretas do sonho e do ideal eram símbolos de morte. Eu era um louco e, como tal, era um perigo à ordem geral estabelecida: afinal, todos devemos ser iguais...

Na minha insânia, portanto, eu prosseguia seguindo os passos fantásticos da moça. E a que preço a minha demência me carregaria? O que deve pagar alguém que ainda crê possível encontrar algo mais em uma simples perseguição noturna que uma simples mulher, tão normal e medíocre como todas as outras? Como eu poderia ser tão desvairado a ponto de acreditar que naquela mulher que eu seguia haveria mais que um corpo vulgar desprovido de alma como outorga a regra geral? Porém, por mais absurdo que isso fosse, eu acreditava. Para mim, naquela mulher havia alma, algo me dizia que ela não era como as outras, que valeria a pena segui-la... E prossegui.

Mas também algo mais prosseguiu sobre meus calcanhares: ao voltar rapidamente meu olhar para trás, senti um calafrio percorrer minha medula ao observar todas aquelas pessoas monstruosas correndo em meu encalço com um ódio catastrófico em suas faces cada vez mais disformemente demoníacas. A mulher à minha frente acelerou seu passo, agora para uma corrida desesperada, e, é claro, fiz o mesmo. E essa infernal perseguição manteve-se por um tempo indeterminado, porém relativamente longo, onde fomos paulatinamente deixando as casas e as ruas para trás e penetrando em um local desolado onde nada havia além de um terreno escuro e pedregoso, em um ambiente verdadeiramente insalubre. Nesse instante, dei mais uma olhada à minha retaguarda e percebi que tinha obtido uma considerável vantagem sobre meus perseguidores, mas eles permaneciam em meu encalce.

Foi então que a mulher estancou sua corrida subitamente e voltou-se em minha direção... O que meus olhos vislumbraram nesse momento assombrou-me terrivelmente: diante de mim estava um rosto onde somente se distinguia dois olhos escuros e doces com chamas violetas que me fitavam intensamente, como que escrutando os recônditos de minha alma, e uma boca vermelha como o sangue que me convidava estranhamente a beijá-la. E em seu rosto não havia mais nada, só olhos e boca. Tudo o mais era invisível, transparente, de modo que me era possível divisar os seus belos cabelos caídos sobre seu casaco. Nem mesmo seu pescoço era distinguível. Parecia algo suspenso no ar aqueles seus cabelos. O restante de seu corpo estava coberto por suas roupas, inclusive suas mãos por estranhas luvas brancas.

Após o choque causado pela visão absurda, desviei minha atenção para um ponto à frente da mulher e percebi para meu maior assombro que estávamos a poucos passos de um vasto precipício. Os olhos daquela moça fantástica permaneciam fixos em mim, como se quisessem descobrir-me profundamente. Intentei, atônito, falar-lhe, mas antes que o pudesse fazer, surgiu por entre a escuridão um daqueles monstros que me perseguiam e derrubou-me violentamente no abismo, caindo ele junto comigo. Mas minha queda no precipício também foi insólita: eu caía, muito lentamente, quase que flutuando. Mas caía...

Porém, aquele que me empurrou já havia caído. Ouvi o baque fúnebre de sua queda. E logo depois, discerni caindo todos os outros seres diabólicos que me perseguiam, dezenas deles, pessoas monstruosas que submergiam no mar de trevas com uma velocidade vertiginosa, tanto que rapidamente passaram por mim, que me mantinha em minha queda canhestramente lenta.

Enquanto eu caía pairando, transcorreram alguns segundos, e então ouvi um aterrador baque que me gelou o espírito. Era o som dantesco da queda dos monstros... Porém, estranhamente, mesmo sabendo que cedo ou tarde eu também deveria atingir o fundo daquele báratro, não me desesperei. E simplesmente pelo fato de que dirigindo minha atenção para os escuros olhos violetas daquela que na beira do precipício me observava, percebi que ela sem dúvida faria algo para evitar minha queda... Sim, eu possuía essa certeza, aquele ser feminino não me deixaria cair naquele abismo... Ou deixaria? Bem, seja como for, isso já aconteceu... Ou seja, ou eu caí, ou fui salvo. E este relato foi escrito. Resta saber em que condições? Na escuridão do precipício ou sob a luz dos olhos dela?...

06 março 2008

Eu Amo a Humanidade

Estão completamente enganados aqueles que dizem que eu odeio a humanidade. Como poderia odiá-la? Em amo a humanidade infinitamente, meu amor não pode ser maior. Estou certo que a amo mais que vocês todos, afinal, eu amo tudo que não presta. Há muito tenho dito que sou um doente, uma alma enferma que ama o horror, conseqüentemente, amo a humanidade, não cansarei de repetir isso.
Sou realmente apaixonado pelo sangue em suas mais variadas formas, menos dentro dos organismos. Sim, eu adoro ver o sangue derramado, coagulado em lagos cobertos por corvos, o sangue podre fedendo pelas ruas, o sangue de um sapo esmagado a pedradas, todos os tipos de sangue espalhados, seja A, B, O, AB, nos campos de batalha, nas esquinas das grandes cidades, o sangue do assassinato, do estupro, o sangue do trabalhador explorado esvaindo-se por seus poros, o sangue das focas tingindo o gelo do ártico, o sangue com aids, o sangue verde da Amazônia evaporando ao sol, o sangue do petróleo tingindo de negro os mares, sim, eu sou um demente, eu amo todos esses sangues, por isso eu amo a humanidade!
Como não amar a humanidade se é ela que derrama tanto sangue pelo mundo? Se é ela que espalha tanto horror pelas ruas, se é ela que faz as guerras, e das guerras surge muito sangue. Sangue! Eu amo a humanidade porque sou muito cruel, frio e insensível. Adoro ver os animais levando balas nos miolos, de ver os miolos sanguinolentos voarem pelos ares! Esse prazer que sinto é sublime... É a humanidade que estoura esses miolos? Oh sim, é ela, por isso eu amo a humanidade infinitamente, sem ela, como eu iria me divertir? Quando vejo uma criança sendo morta por bala perdida, fico triste quando o sangue dela não respinga (sim, eu disse quando ele NÃO respinga) no meu rosto. Gosto de sentir o sangue no rosto, o sangue quente, e viva a humanidade que mata crianças com balas perdidas! Eu amo a humanidade, não me cansarei de repetir.
Eu adoro campos queimados, matas queimadas, tostadas, devastadas, o chão duro, seco, cinzento, coberto de carcaças de animais tostados, adoro pisar sobre eles, sentir os ossos quebrando, o fedor de carniça, eu amo todo esse horror. Eu sou muito mau, gosto de saber que faço parte da humanidade e que é a humanidade que massacra todos esses seres inocentes. Eu amo tudo que não presta porque eu sou humano e não presto também, por isso eu amo a humanidade. Adoro rios imundos, ares imundos, mares imundos, adoro lixões a céu aberto, adoro valetas fétidas e enfermiças, eu sou mesmo um demônio. Por isso eu amo a humanidade, porque ela suja tudo que vê, a humanidade é formada por porcos, e eu amo porcos também.
Eu amo tudo que é desonesto, injusto e corrupto, eu amo a falsidade e a ganância, a hipocrisia, “ó falso hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”(Baudelaire). Eu vos amo, porque vós sois humanos, e eu amo a humanidade. Amo tudo que chafurda no lodo, amo a miséria, a fome, o medo, amo ver a mãe africana dando terra suja para seu filho comer! Que espetáculo aos meus olhos diabólicos e humanos. Eu sou realmente muito mau, e sinto um deleitoso prazer ao contemplar meia dúzia de políticos enriquecendo às custas de todo um povo de ignorantes retardados fãs de bigbrother. Isso é digno da humanidade. E eu a amo muito e com orgulho.
Eu sou um diabo, e por ser um diabo amo todas as religiões que prometem o céu, porque o homem crendo que tem o céu, não precisa melhorar, e continuam os merdas de sempre. Eu amo isso tudo, essas religiões que são Robin Hood ao inverso: roubam dos pobres pra dar aos ricos. Amo toda essa mentira porque mentir é humano e eu amo a humanidade.
Eu amo tudo onde não há amor, eu odeio o amor, porque o amor não faz parte da humanidade, e eu só amo a humanidade, não cansarei de repetir isso. Amo todos aqueles que não puderem se amar, amo os que não se amaram, os que não deixaram que se amassem, amo os que não souberam ou não quiseram amar, e a humanidade ama não amar, por isso eu amo a humanidade. Amo! Enfim, eu amo o fim deste planeta, de toda vida que há nele, amo a destruição total e absoluta de tudo. E a humanidade está fazendo isso muito bem... Por isso eu amo a humanidade. Eu, definitivamente, não presto.

25 fevereiro 2008

Soneto ao Algo

É... até as estrelas um dia se apagam
e a face da lua é sempre fatal,
há um cisne que canta no bem e no mal
e avisos de anjos há muito me vagam...

De sonhos-fins minhas noites se alagam,
nos vales ao longe um selo e um sinal,
sussurram os ventos sentença mortal
e asas de loucas subindo me tragam...

Algo de estranho pousou sobre mim,
que olhos não vêem mas os olhos me sentem
e voa distante partindo enfim...

Mas... irei buscá-la em meu peito doente
antes que caia o derradeiro fim:
terei ainda alma e será suficiente.

17 fevereiro 2008

Eduardo Guimaraens: um Grande Gaúcho Esquecido

Eduardo Guimaraens. Alguém sabe quem foi ele? Que foi um poeta gaúcho nascido em Porto Alegre em 1892? Que escreveu sete livros e que foi considerado na época nosso maior poeta simbolista? E mais, que chegou a ser considerado uns dos maiores do país, comparado a Cruz e Sousa? Quem lembra dele? E dos que lembram, quem já o leu? Triste saber que um poeta de sua magnitude esteja relegado ao esquecimento até mesmo pelos gaúchos. Mas, quais seriam os motivos? A meu ver, faz parte da discriminação sofrida pelo Simbolismo em nossas terras; a verdade é que ainda hoje os brasileiros não lograram compreender os simbolistas.

O Simbolismo é considerado como o responsável pelo nascimento da poesia moderna, ainda mais se levarmos em conta que Baudelaire, um dos maiores autores simbolistas, foi o pioneiro da modernidade, quando uniu à linguagem sublimada do romantismo o grotesco da realidade humana. Devemos ainda considerar que uma das primícias simbolistas, isto é, sugerir e não afirmar, foi e continua sendo de vital relevância para o desenvolvimento da poesia contemporânea. Sobre o movimento simbolista, afirma Afrânio Coutinho: “Sua contribuição à literatura foi imperecível, havendo quem lhe empreste a categoria de movimento mais importante, pelo seu aspecto positivo e pela herança legada, da poesia moderna”. Se existe a poesia moderna, foi porque antes existiu o Simbolismo.

No entanto, no Brasil, o Simbolismo não atingiu o mesmo nível de relevância que adquiriu na Europa, sofrendo uma negligência e subestimação, onde se entende que o nosso movimento simbolista não chegou a ser devidamente compreendido e assimilado pela sociedade, não estabelecendo bases na mesma. Isso fez com que a grande maioria de seus autores não obtivesse o mesmo grau de divulgação e reconhecimento que escritores de outros movimentos e escolas. Tal fato é possível apreender-se da afirmação de Carollo, ao referir-se sobre os obstáculos ao acesso às fontes bibliográficas dos simbolistas: “...estes obstáculos permitem a proposição de novas indagações quando vistos como índices de preconceitos da crítica na interpretação do movimento...” Na mesma obra, adiante, Carollo observa: “Reconhecidas ainda as dificuldades de aceitação e avaliação do Simbolismo por parte da crítica ‘oficial’ contemporânea, orientada por todo um instrumental metodológico de origem cientificista...”

Sem dúvida, Eduardo Guimaraens também foi vítima desse “preconceito” para com o Simbolismo. Felizmente, grandes críticos, como Massaud Moisés, souberam considerá-lo como “autêntico poeta”, e que “alguns de seus poemas serão suficientes para situá-lo sem favor ao lado de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens”. Da mesma forma, julgou Andrade Muricy que “a sua arte afastou-se do cunho clássico português e da ingenuidade da temática e da expressão... foi dos mais civilizados dentre todos eles e um dos mais meditativos e delicados”.

Eduardo Guimaraens foi um conhecedor profundo da literatura universal, tradutor de Baudelaire e Dante Alighieri, não por acaso suas maiores influências, sendo que em sua época sua obra foi amplamente valorizada, (ainda que pouco lida) como observa Zilberman, referindo-se a seu principal livro “A Divina Quimera”: “que o consagrou nacionalmente, obtendo reconhecimento de todos que historiam o Simbolismo brasileiro”. No entanto, o poeta que “foi uma das vozes mais altas e mais puras da lírica brasileira”, segundo o jornal Correio do Povo (14/12/1928), constitui-se também, conforme Mansueto Bernardi, em “o menos estudado”. Corroborando Mansueto, verifica-se hoje um escasso número de referências ao poeta gaúcho, imerso, talvez, no relativo ostracismo em que se encontram grande parte de nossos autores simbolistas.

Não obstante, a poesia de Eduardo Guimaraens nos apresenta um âmbito temático de inúmeros desdobramentos. Sua obra nos revela uma profunda sensibilidade e imaginação, uma sutileza e musicalidade da linguagem, um refinamento de emoções repleto de luzes e sombras. Seus poemas são intensamente humanos e espirituais ao mesmo tempo, situando-se entre a veia lúgubre de Alphonsus de Guimaraens e a ascensão vertiginosa de Cruz e Sousa. Eduardo é mais sereno que ambos, menos sombrio que o primeiro, mais terno que o segundo. Sem dúvida, merece que o conheçamos. Para finalizar, nada melhor que alguns de seus versos:

“Não despertes, porém, ainda que surja o dia!
Dorme perpetuamente o sono teu sem termo,
ó forma de vitral, Musa e Melancolia,
que és a quimera de um espírito enfermo!
Não despertes, porém, ainda que surja o dia!”

06 fevereiro 2008

É Lógico que a Vida Não Possui Lógica

“...não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, ser nítido,
Ter um lugar na vida...”
Fernando Pessoa

Não, não possui. Talvez possua algum Equilíbrio, um equilíbrio sombrio, oculto, incompreensível, inacessível e absoluta e canhestramente ilógico. Mas um equilíbrio. E sempre acima de nossa mão. Por que deveria ser compreensível? Já alguns dirão que esse equilíbrio não existe. Eu não digo nada. Não gosto de dizer as coisas. Gosta de cantá-las. E de gritá-las. Mas não de dizê-las, dizer é tão fraco.
A Lua estava anômala ontem. Foi necessário que eu saísse às ruas naquele estado de sono que não era o sono. Era um sono em um estado alterado de consciência. Saí caminhando pelo dia não-diurno, sim, porque eu sentia um sono profundo e vertiginoso, algo como um desejo não-terráqueo nem fictício, mas dominado por todas as cores de beijos. Não, não sou sonâmbulo. Naquela praça, vi 4 homens lendo jornais. Jamais conseguiria defini-los, mas os defino: horríveis, todos eles: olhos esbugalhados, descabelados, tossindo, boca escorrendo sangue como um churrasco mal-assado, não falavam uns com os outros, não se movimentavam. Não sei se andei ou flutuei até eles, aliás, eu não sei nada. E pedi um jornal emprestado e li todas as manchetes. Horríveis, todas elas.
Como era mágico e salutar meu sono... Com as manchetes dos jornais fiz um poema, sem modificar uma só palavra. O poema mais trágico da história da humanidade. Sonhei... Não sei com o que sonhei, mas vivi o mais fundo possível o que sonhei. Que mais se pode fazer? E como saí das florestas felinas sem ter uma só palavra a dizer a ninguém, isso é que é de se admirar! E como senti os vapores nunca-vistos de tudo que tu me disseste aquele dia sem que me olhasses uma só vez nos olhos... E como olhei nos teus olhos com cheiros de músicas sem que tu me dissesses um só verbo divino ou caído.
Amanhã vai chover... Assim, percebi que a humanidade não vale a pena... Vale a pena aquele rio que nunca correu, aquela flor que nunca nasceu, aquela árvore que nunca cresceu, aquela música que nunca tocaram, aquele céu que nunca brilhou, aquele beijo que nunca se deram... Por isso voam aves de verde pelas ânsias perfumadas daquele inverno que nunca apagou sua luz. Nem a minha. Porém, o mais absurdo de tudo, algo realmente ilógico e que nunca me foi permitido entender é que a sociedade no fundo odeia os professores. Deve ser por que eles são os únicos capazes de melhorar seus filhos. Se o homem quisesse ser melhorado, eu não estaria aqui dormindo, sonhando e escrevendo.
Quantas estrelas caíram aquele dia do céu... Uma delas abriu ao meio minha cabeça, literalmente, e uns uivos-desejo flutuavam tensos ao longe, e perto de mim. Era uma noite sombria, mas tu não estavas sobre os altares. Como se iluminou todo o luar, como uma treva santa chocou-se contra os versos que uma águia largou do bico sobre a morte... Três mãos alucinadas ergueram-se de dentro de meu peito, e vi uma chuva de olhos com chifres brancos perfurarem todo meu coração, o sangue não-meu que lacrimejava ao espaço doente formou uma nuvem que aceleradamente ascendeu ao sonho onde eu dormia. Não esqueçam que eu estava dormindo, por favor, não percam o fio da meada. Corri. Tu não estavas lá. Tudo não estava lá.
E no Brasil odeia-se ainda mais os professores, e estou certo que isso é uma das principais características de nossa cultura, talvez a principal, aquela que define definitivamente o que é ser brasileiro, odiar um professor, afinal, sem isso o Brasil não seria Brasil. Mas um canto e um grito titânicos ergueram-se majestosos daquele planeta de luz que não vejo. Como soou apaixonado um violino de Brahms aos meus ouvidos, e todas as coisas se angustiavam de forma tão ciclonicamente sublime que um furacão passou pela minha cidade e arrasou com tudo, inclusive comigo. Por isso durmo e elevo meu coração na ponta de uma espada flamígera e atiro-o ao relâmpago que me beija... O fim é como o começo: “Sim, está tudo certo./Está tudo perfeitamente certo./O pior é que está tudo errado.” É do Álvaro de Campos, que nunca existiu e valeu a pena. E eu me acordei.

20 janeiro 2008

Desejo de Sombra

desejo
de tudo que é noite e chora
de lago que é triste e canta
de canto oculto
na solidão da mata
de pesadelo-inferno
de negra serenata
de pio de coruja e medo
de sombra nuvem e inverno
do mais absurdo segredo
de lua em tormenta quente
de sol que se põe na guerra
de conto de Poe estranho
e doente
desejo
do perverso humano sangue
espalhado pela terra
de fêmea morta e langue
de marcha fúnebre
do roxo crepuscular
de loucura no céu
e horror no mar
desejo de sombra
de urubus que pousam na sorte
enfim
desejo de Fim
e de Morte

08 janeiro 2008

Agouro no Céu

dez astros de trevas
dez artes-desgraça
dez feitas-catástrofes

esta arte se mata

dez graças de nada
deserto de tudo
desastro dos séculos
desfeitos em décadas
desartes de morte
dez astros Desastres!

22 dezembro 2007

Poema Distante

no horizonte longínquo
do infinito
da minha desgraça
um claro sol que me acena
se põe ao longe distante
e a noite completa me existe
onde caio como flecha maldita
e cada vez mais longe distante
tuas asas infindas se perdem de mim
teus olhos divinos encantam luares
teus adejos de anjo elevam no cosmos
teu sopro de vida renasce as estrelas
sempre tão longe de mim...

morcegos ciclonam em minha mente
os corvos serenatam em meu sono
nos meus sonhos...
enforcou-se a paz!
e cai da minha boca a gota de sangue...
se uma asa tocou-me nos lábios
foi a de Satanás...

distantes eu ouço teus cantos
longínquos eu sinto teus olhos
sublimes infindos eternos
sempre tão longe daqui...

mas... algo me voa na alma
sempre tão perto de mim...
lá do infinito de tudo que morre
bateram-me sempre tão perto
as asas da Morte e do Fim...

10 dezembro 2007

Absurdas Reflexões-Pesadelo Sobre um Ano Sentencioso

Sentei-me naquela pedra. Pântanos anômalos me cercavam. E só. Ao longe, uma nuvem sem água se formava. Carregava-se com as armas mais radioativas já criadas pelo saber humano. Há outro saber além do humano? Cada vez mais densa e escura, mas de uma escuridão bendita. Eu me consumia. Absolutamente normal o fato de levantarem-se demônios poeanos ao meu redor, afinal eu estava em meio ao mais vaporoso e mefítico pântano já sugerido pelos simbolistas que Poe prenunciou. Todos eles me dardejavam os olhos. Os demônios, não os simbolistas, ou vice-versa. Eu refletia em todas as coisas passadas. Por isso me consumia. Eu era o responsável por todas elas. Passadas atrás de mim. Era a nuvem à frente que se aproximava...

Nunca fui o que pensei que fosse. Dizia o demônio do mundo nos meus ouvidos cegados. “Cercavam-me planícies sem beleza”(Fagundes Varela). Mas o que mais me chamava a atenção tuberculosa que me expelia catarros com sangue era a nuvem radioativa à frente, belíssimos vapores multicoloridos, incensos intelectuais, jasmins de hidrogênio e plutônio degenerados. Como ela era lenta e imensa para padrões pós-pós-modernistas. Eu sonhava em meio a minha culpa. E uma boca vermelha e sensual, vermelha de cânceres, proferia emocionada a verdade. Ela me beijou na língua e eu me consumia. Chove. Derrete meu pé na branquidez da chuva.

Sentei-me naquela pedra. Cercavam-me demônios sem beleza. O Tempo. Como é belo o olho de Satã. “Tem piedade, Satã, desta longa miséria”(Charles Baudelaire). Dos horizontes pantanosos o horror evaporava para unir-se em núpcias científicas com a nuvem que se agigantava ante meus olhos ensurdecidos. E como desciam sobre meu ser sanguinolento todos aqueles pesares sem-sentido que já não sentem mais nada. Meu coração flutuava corvíneo penetrado por barbeiros da doença de chagas que matou o Cristo. Eu detesto refletir. Nunca leva a lugar nenhum. Por isso que reflito, quero me consumir, ademais, só o Nada me interessa. “Quero me consumir!” O lema mais alto e sublime de toda uma civilização. Humanos, vamos conjugar o verbo consumir, mas reflexivamente: eu me consumo; tu te consomes; ele se consome; nós nos consumimos; vós vos consumis; eles se consomem. Muito bem, crianças! agora arranquem suas gargantas inúteis e joguem também no meio da nuvem. Ali está a Verdade. Sem gargantas! Suas vozes não servem pra nada. Quem vai ouvir? Ou melhor: só servem.

Cada vez mais perto. Eu não tenho medo. Que venha a Nuvem(letra maiúscula de agora em diante, vamos respeitá-la), ela é uma parte de mim. Até já posso ver alguns olhos e bocas na formação nebulosa sobre o pântano. De uma boca cospe-se sêmen sem espermatozóides; de um olho derrama-se um pus de rato infeccionado. “Acostuma-te com a lama que te espera”(Augusto dos Anjos). Por que ter nojo dessas coisas que em breve serão toda a nossa vida. Afinal, estamos cercados de ratos, não é mesmo? Eles que transmitem a peste bubônica. Ou seria bo? O ato mais idiota da vida é refletir. Melhor é não pensar em nada, deixar que a boca sangrenta de aids caia sobre nossos olhos mal-abertos. Tudo por um beijo. E a nuvem é perfeitamente justa.

Lá vem ela pelos ares românticos. Numa esfera de anjos eu vi passar o Amor. Tentei tocá-la, mas uma espada de tigres cortou todos os meus dedos. Lá estão eles sendo bebidos por urubus. Todos meus treze dedos das mãos. Sentei-me no pântano. O demônio sorriu. Eu também. Sou assim mesmo, sem dedos, eu fico sorrindo, como toda a humanidade. A humanidade sorri sem olhos. Mas só sorrio para demônios. Oh, a Nuvem já está sobre mim, nada mais posso ver além da Nuvem de horrores. Está tudo ali. Uma velha sem boca, escarrando, arrancou meus cabelos. Já sem pés, derretidos pela chuva, tive que disputar minhas pernas com os lobos. Eu venci.

E chega o navio sobre o pântano. Está todo mundo nele. Vou-me também. Canto III do Inferno da Divina Comédia de Dante. Essa tuberculose ainda vai me matar. É, sou doente do peito. Sinto perfumes de primavera. Paolo e Francesca de Rímini(Canto V). Eu sabia que isso me mataria. A Nuvem faz parte de mim, eu ajudei a criá-la. Pus alguns remendos de erros. Vem o navio, escuto suas trombetas desesperadas. Agora principiou a chuva da Nuvem de monstros. Eles se alimentam de veias. Tudo é Nuvem. Um relâmpago derrubou o meu dente. E ainda reflito. Passadas ameaçadoras atrás de mim. São minhas. Transformei-me num dragão. Ali está o navio. Não vejo homens, só fantasmas. “O Navio-Fantasma”, de Wagner. Sou um dragão, Siegfried cortará minha cabeça. Tudo por culpa da Nuvem. Mea culpa. Neste ano apontou a Nuvem. Ela é nossa. Viram? “Então os meus versos têm sentido e o universo não há-de ter sentido?”(Fernando Pessoa).

22 novembro 2007

Minha Absurda Lira

minha lírica de adeus e crepúsculo
vê sóis naufragando nas torres
das torres partem olhos e pios
de corujas com asas de sangue
que gotejam nas luas de fel
como beijos que sonham e morreram
altas mortes de tudo que foi
tu não vieste nas asas das íris
tu não viste minha alma de fim
gritos da noite caídos de luz
ciclones de anjos rezando desgraças
a roxo navio que afunda no céu
céu de tormenta que canta em tua boca
tudo que vai que se perde se finda
dança um azar no lábio no mundo
fogo em promessas de três Prometeus...

quando tua face olhará no meu sono
e na minha lira de ocaso e adeus?

12 novembro 2007

A Molécula da Última Lágrima

A menina Aloncier sentara-se em meio a um magnífico e intensamente verde descampado, de um verde estranho e irradiante de estranhas sensações, nas planícies de Samoth, uma das mais belas de seu planeta. Alta, com uma tonalidade de pele moreno-avermelhada, possuía longos cabelos ondulados, também de tons rubros, e olhos de íris tenuemente lilases. Se alguém pudesse contemplar sua face naquele momento, perceberia que a menina, em seu rosto belo mas insólito para nossos padrões, exibia uma fisionomia de alguém que está imerso em profundas meditações...

O ambiente em que Aloncier se encontrava, que transmitia inquietantes impressões de infinitude e de cósmica liberdade, era de uma serenidade absoluta; nenhum tipo de construção artificial ali se apresentava, e contemplava-se os horizontes de um vivo azul-purpúreo, sob um céu tão veementemente azul que parecia quase palpável, tamanha era a sensação de vida que dele emanava. Em tal céu, não se avistava nenhuma espécie de nuvem e, além da luz solar, estranhas e intensamente brilhantes luzes fulguravam por todos os cantos, tanto na atmosfera como próximas ao solo, embaixo de algumas árvores gigantes que por ali havia esparsamente.

E todas as coisas existentes aparentavam não formar sombras, pelo menos não como nós as conhecemos. Nos céus, avistava-se uma esquisita diversidade de seres, aves imensas de gritos ultra-sônicos, seres alados muito semelhantes àqueles descritos em vetustas mitologias esquecidas. Outros seres, com um venerável aspecto humanóide, que nós, pela aparência, até mesmo poderíamos classificar como anjos, planavam com suas imensas asas inauditas, ao lado de algumas coisas etéreo-transparentes, formações espirituais indefiníveis, que flutuavam de maneira enigmática pelos ares, dirigindo olhares elétricos para algum ponto não perceptível acima deles.

Toda essa profusão de coisas insólitas e misteriosas causava a sensação de uma harmonia e de um equilíbrio naturais comoventes. E a menina Aloncier ali permanecia em plena tranqüilidade, entre aquelas estranhezas absolutamente normais em seu planeta, ouvindo a música das esferas e o intrigante canto dos pássaros que lá viviam. Era inacreditável a melodia do gorjeio daquelas aves de múltiplas cores cintilantes, verdadeiramente puras e emocionais, lembrando de um modo assombroso músicas de Bach e Mozart. Igualmente assombrosa era a invulgaridade de alguns animais que por ali passavam, aparentemente mamíferos, e que... dialogavam... com Aloncier, em uma linguagem inteiramente desconhecida para qualquer um de nós.

Aliás, é notório que se diga que a menina de olhos lilases não somente dialogava com aqueles insondáveis mamíferos, como também com outros animais e seres visíveis e invisíveis, até mesmo com as plantas que a cercavam, com algumas árvores distantes e com arbustos mais próximos, em uma misteriosa linguagem que deixava a impressão de ser ultra-universal, falada por todos os seres das mais diversas e inauditas espécies. Tais diálogos aparentavam tornar-se possíveis graças às meditações efetuadas por Aloncier.

A menina encontrava-se em um estado de exultante expectativa, pois no dia seguinte completaria 14 anos e, finalmente, seria a ela revelado, por seus pais, o segredo da origem de seu povo. Este, que era formado, em todo o planeta, por alguns milhares de habitantes (essa era toda a população planetária), vivia em perfeita integração e harmonia com a natureza, poder-se-ia dizer até mesmo que faziam mais que isso, que o povo era a própria natureza, assim como o são as plantas e os animais. Aloncier, no entanto, desejava conhecer a origem de sua espécie, de onde e como teriam vindo, o que havia ocorrido em seu planeta antes de seu nascimento, antes do surgimento da sua luminosa humanidade. Como seria seu planeta há milhões de anos atrás? Que seres teriam anteriormente existido? Isso tudo seria revelado integralmente no dia seguinte, e Aloncier aguardava em júbilo o decisivo instante....

E refletindo em todas essas coisas e contemplando em êxtase o fulgurante horizonte, Aloncier chorou, e suas lágrimas caíram na grama, e da grama passaram ao solo... E uma de suas lágrimas, a última que havia chorado, lágrimas que eram formadas por uma substância bem mais penetrante que as que conhecemos, foi muito longe terra adentro. Até que uma das moléculas dessa lágrima, penetrando incrivelmente no chão absorvente daquele planeta, entrou em contato com uma outra molécula que ali jazia há muitos milênios. A molécula da lagrima de Aloncier tocara uma outra molécula, que fora, em um tempo muito remoto, de uma estátua, qual seja, a estátua do “Laçador” da cidade de Porto Alegre.

04 novembro 2007

Ao Alto

dá-me tua alma
e tua bela mão etérea
vamos às alturas aéreas
pairar sobre as auras claras
do teu sono em sombra e sonho
sair à noite como aves
aves alvas sobre os mares
com tuas fadas em alta lua
a valsar por sobre as árvores
como silfos aos luares
mais ao alto com o vento
vento astral de branca estrela
a banhar tua face pálida
em teus lábios voam arcanjos
celestiais na luz dos raios
vamos!
aos largos astros do universo
com as asas
com as asas destes versos

24 outubro 2007

Soneto de Um Maldito

Ninguém vê a lava que me mata o sangue,
ninguém vê as asas que me encobre um corvo,
nem no lábio o beijo de um anjo torvo,
nem a cruz de erros de meu corpo langue...

Minha fada morre em um lago exangue,
minha estrela urra por um céu que é torto,
nos pulsos sinto um sonho grande e morto,
como querer que meu sangrar se estanque?

Sinto a tristeza de tudo que vejo,
trago em meus ombros um grave prejuízo,
das trevas do céu me caem os desejos...

Meus olhos te deixam escuros avisos,
horrores sussurram em todos meus beijos,
e chora um inferno em cada sorriso.

04 outubro 2007

A Noite Sobre as Casas

Eu retornava tranqüilo para minha casa sob aquela esplêndida noite de inverno, contemplando em elevada inspiração o esplendor constelado da abóboda celeste possuída pelas trevas santas do infinito. Como era bela, sugestiva e inquietante a visão microcósmica da infinitude do universo proporcionada pela soturna serenidade da madrugada. Que espetáculo aos espíritos sensíveis e mergulhados no mistério inefável do cosmos, com a insatisfação típica daqueles seres fartos da vida vulgar do cotidiano.

Tal era meu estado emocional, quando cheguei à frente de minha casa e avistei, sentado sobre a calçada da rua, Gustav, o meu gato de estimação. Percebi que o negro felino fitava com seus imensos olhos amarelo-esverdeados, com negras pupilas dilatadas, o espaço vazio acima dele. Aproximei-me, agachei-me ao lado do animal e tentei identificar o que é que ele olhava tão fixamente. Confesso que por mais que insistisse, não consegui perceber absolutamente nada. Não obstante, Gustav permanecia olhando acima, como que para o céu, aparentemente direcionando sua visão para algum ponto sobre a residência de um de meus vizinhos. Em seguida, passou a girar seu pescoço rapidamente de um lado para outro, dando a entender que acompanhava algum movimento oculto e frenético. Seria algum inseto, algum morcego, alguma ave noturna que meus olhos humanos não conseguiam discernir por entre a escuridão?

Fixei intensamente minha visão, tentando obter o máximo de concordância com a direção do olhar do gato, mas prosseguia sem perceber nenhum tipo de movimentação na densa atmosfera da noite. Talvez o leitor considere muito esquisita essa minha insistência em desejar saber o que o gato olhava, porém, se soubesse e entendesse o meu estranho caráter, bem como meu estado de espírito naquele instante, a minha doentia fascinação por tudo o que é misterioso e desconhecido, mudaria rapidamente de opinião.

Estava, portanto, decidido a perceber, a ver a mesma coisa que Gustav. Este, de repente, levantou-se e disparou para o fundo do pátio de minha casa. Fui atrás do bichano. Lá, ele novamente sentou-se e manteve sua fixação em algum ponto sobre o telhado dos vizinhos do lado esquerdo. Sentei-me ao seu lado e também direcionei meu olhar ao aparente vazio em questão. No princípio, nada divisei, porém, conforme os minutos passavam, fui entrando lentamente em uma espécie de letargia, mantendo, no entanto, minha consciência direcionada ao espaço noturno sobre a casa dos vizinhos. Minha concentração intensificava-se mais e mais, a um nível aterrador eu diria, a um nível de suprema perturbação psíquica... Iniciei a ser invadido por uma sensação de aflita expectativa, por um inexplicável medo do desconhecido, todavia, era uma sensação deleitosa ao mesmo tempo, ou seja, sentir medo causava um imenso prazer em minhas emoções anormais.

Enquanto permanecia naquele estranho estado, acompanhado por meu amigo gato, em uma terrível concentração, percebi que as trevas noturnas sobre a casa dos vizinhos começavam a apresentar certas luminosidades como raios que tenuemente desciam e subiam aos céus. Aos poucos, aumentou o diâmetro daqueles raios, formando então algo como colunas de uma luz esbranquiçada e cintilante que se intensificava cada vez mais. Acredito que estava visualizando um intercâmbio de determinado tipo de energia espiritual entre a casa, ou entre os moradores dela, e certa região ou dimensão ignota do cosmos. Em seguida, ao lado das fosforescentes colunas de luz, vislumbrei o canhestro surgimento de vórtices igualmente luminosos, redemoinhos energéticos que cresciam em vários pontos da escuridão da noite sobre aquela residência, até atingir a circunferência aproximada de uma bola de futebol. Logo, naqueles vórtices, identifiquei uma espécie de claridade diversa, de pequenas descargas elétricas que os atravessavam incessantemente, como algum campo energético.

Para meu maior assombro, verifiquei que as colunas luminosas e os vórtices elétricos também principiaram a surgir na noite sobre outras casas das imediações, inclusive na minha. Em menos de uma hora, creio, em uma noção puramente psicológica, eu contemplava extático uma constelação, não de estrelas, mas de enigmáticos redemoinhos de uma eletricidade perturbadora e de um sem-número de colunas etéreas que subiam e desciam em uma estarrecedora e incompreensível comunicação cósmica.

Entretanto, poderia ainda dizer que sentia real prazer em contemplar aquela mirífica visão, o que iniciou a deixar de ocorrer, quando vi alguma coisa, ou algumas coisas, saírem de dentro das casas, pelo telhado. Eram almas, creio eu, as almas dos meus vizinhos adormecidos. Vi seus espectros, idênticos aos físicos, flutuarem na noite, ligados, acredito, pelo famoso Cordão de Prata, que se alongava em infinita elasticidade etérea, pois vi uma fantástica linha branca e brilhante conectada aos espíritos de meus vizinhos.

Logo, após saírem das residências, algumas almas desapareceram nas colunas de luz, e outras penetraram em alguns daqueles vórtices assombrosos, igualmente desaparecendo. Outras almas ainda, a maioria delas aliás, desciam no escuro da noite. Olhando com mais atenção, identifiquei abaixo, próximo ao solo, uma outra categoria de redemoinhos elétricos, com descargas de uma eletricidade de um rubro-amarelo mórbido, lugubremente doentia. Nesses sinistros vórtices penetrou a maioria dos espíritos que eu havia avistado. Aflito pela maligna sensação que aqueles vórtices de luz sangüínea tinham-me suscitado, refletia no destino que aquelas almas poderiam ter tomado.

Meu singular assombro tornava-se mais denso a cada minuto que transcorria, e creio ter chegado ao ápice quando vi aquele ser negro sair de dentro de um dos vórtices bem acima da casa de meus vizinhos do lado esquerdo. Não era, no entanto, um dos vórtices sanguinolentos, mas um dos luminosos de correntes elétricas fosforescentes. O ser que dele surgiu assemelhava-se a um anjo, a um anjo sombrio porém, possuindo imensas asas negras e ameaçadoras. Seu rosto, de traços belos e graves, esbranquiçado e com grandes olhos negros, tinha algo de feminino e de melancólico, transmitindo uma profunda e triste serenidade, uma impassibilidade inalterável que assustava e suscitava um profundo respeito. Havia algo de implacável, de inexorável naqueles fundos e gélidos olhos... O ser pairou pela noite adejando suas longas e arrepiantes asas. Trazia em sua mão direita um instrumento que não pude identificar. Em seguida, atravessando etereamente o telhado da casa dos vizinhos, desapareceu, entrando em alguma peça da residência.

Instantes depois, o sombrio ser reapareceu nos ares noturnos, agora acompanhado por alguma alma. Percebi que esta era a senhora Valquíria, mãe de meu vizinho, uma senhora já idosa e que há vários meses sofria de uma incurável enfermidade. Fixando ainda mais minha atenção, verifiquei que a senhora não apresentava o Cordão de Prata como os outros espíritos que vira. Concluí, portanto, que estava morta. Então pude identificar o objeto que o anjo negro portava: era uma foice. Aquele ser sombrio era a Morte. Ambos entraram em um dos vórtices fosforescentes e desapareceram de minha visão.

Depois disso, um verdadeiro medo apossou-se de meu coração. Por instantes, ainda mais uma vez, refleti sobre qual seria o destino de todas aquelas almas que penetravam ou nos vórtices luminosos ou nos redemoinhos sanguinolentos, ou ainda nas colunas de luz que ascendiam e desciam irrefreavelmente entre o céu e a terra.

Foi nesse momento que pressenti algo de estranho, ainda mais estranho, ao meu redor... algo como uma presença muito próxima... Mas uma presença profundamente consoladora e reconfortante, irradiante de um sentimento... maternal! O medo que de mim se apossara foi gradativamente se dispersando, mas não ousava olhar para o lado, estando certo que ao fazê-lo enxergaria algo absolutamente insólito... Foi então que uma terna e delicada voz celestial soou suave em meus ouvidos, dizendo:

- Por que, meu filho, tens medo de olhar para tua Mãe, não tua mãe física, mas a Mãe da tua Alma, que está e estará eternamente contigo? Tenho infinidades de maravilhas para dizer-te e mostrar-te, mas, por enquanto, deixo somente esta verdade, que sei que saberás compreender além da mente: não esqueces que um dia deverás morrer.

Nisso, a voz calou-se, e senti que a feminina e carinhosa presença desapareceu, não sem antes deixar-me em um profundo estado de paz e serenidade que jamais olvidei... E assim, abandonei o estado letárgico, voltando à vigília convencional. Não mais divisava nem vórtices nem colunas luminosas. Gustav já não estava o meu lado. Fui, então, deitar-me. Adormeci refletindo e sonhando com aquele ser maternal e com as coisas que ela teria a mostrar-me... compreendendo sua mensagem... deveria ir até Ela... E quantos segredos e mistérios, naquele preciso instante, pululavam na noite sobre as casas de todo o planeta...

17 setembro 2007

Chegará o Dia

sentirei a luz da morte
a tensão das asas do sonho
a aurora sob relâmpagos
o ocaso de meu sol medonho
todo o terrível prestes a vir
a beijar a voar a dormir

estrelas do longe em vapores-saudade
sussurros de passos nos sinos noturnos

anjos em sombras da mata
lua aos cabelos na água
noite profunda em teu pranto
vôo-desejo! amor e espanto!
veneno de flores bebendo nos ares
catástrofe e febre em alma-magia...

enfim
antes do fim
dos dias que desfolho
chegará o dia
em que sentirei tudo
o que há nos teus olhos

Poema Agradável para Vencer Concursos

Eu sou feliz.
blá blá blá
blá blá blá...
(blá blá blá positivo)

Tu és feliz.
blá blá blá
blá blá blá...
(blá blá blá certinho)

Ele é feliz.
blá blá blá
blá blá blá...
blá blá blá saudável)

Então
vamos unir nossos blablablás
e fazer o mundo inteiro FELIZ!!!

30 agosto 2007

A Misteriosa Aproximação

"Furioso delírio se apossava de todos os humanos, e, com os braços rigidamente estendidos para os céus ameaçadores, todos tremiam e bradavam desesperadamente... E assim tudo se acabou."

Edgar Allan Poe

O maior erro da humanidade é o esquecimento. Esquecemos o que há de mais vital, tudo se perde nos vendavais do tempo. Como escreveu certo sábio, “Não aprendemos as lições da vida nem a canhonaços”. E se esquecemos os “canhonaços”, como lembrar de discretos sinais que parecem nos dizer tão pouco, leves insinuações do desconhecido? No entanto, tais sinais, que falando pouco dizem muito, estão constantemente presentes em nossas vidas, e, muitas vezes, nem os percebemos. E quando o fizemos, logo são completamente deixados de lado, como se por serem tão “pequenos” e passageiros não merecessem maior atenção. Assim é o ser humano, sempre desprezando o que é sutil... Mas... a que preço?

Se dispensássemos a devida atenção aos sinais, compreenderíamos, por exemplo, o porquê de na mitologia nórdica o deus supremo Wotan ter necessitado morrer enforcado em uma árvore sagrada para adquirir conhecimento, e, no cristianismo, Cristo ter necessitado morrer crucificado para finalizar sua doutrina. É claro que tais sinais são profundamente simbólicos. E com a misteriosa Aproximação não foi diferente; também se manifestou a princípio com sutis sinais bem pouco reconhecíveis, sinais enigmaticamente simbólicos.

No princípio surgiu uma estrela. Uma estrela nos céus do hemisfério sul que brilhava um pouco mais que o convencional, qualquer indivíduo que olhasse para os céus no começo da noite já perceberia o intenso e intrigante cintilar daquele incomum eastro. Porém, naturalmente, ninguém deu atenção ao fato, e tudo foi considerado como absolutamente normal. É claro que este não foi o sinal único que funestamente prenunciara a devastadora Aproximação, muitos outros ocorreram, todos igualmente imperceptíveis para a quase totalidade da humanidade, mas creio ser desnecessário mencioná-los agora.

O certo é que conforme a Aproximação se concretizava, lentamente, imensas tragédias, catástrofes, desastres, fossem eles naturais ou provocados pelo homem, foram se desencadeando, em um ritmo mais e mais acelerado. Até que em certo dia extremamente aziago para a raça humana, Ele foi visto pela primeira vez, ao longe, como um outro sol que surgia no horizonte carregado de maus-presságios. E então, todos os engodos das autoridades e dos senhores responsáveis por nossa mal fadada ciência caíram por terra. Restou tão-somente a trágica realidade dos fatos, e a Aproximação daquilo que brilhava sinistramente diante dos olhos estupefatos da humanidade doente.

A partir desse instante, o medo, o pânico, o desespero absoluto dominaram os seres humanos, compreendendo-se definitivamente que a situação era muito mais grave do que se poderia imaginar. Pior do que isso, era catastroficamente inexplicável.

À medida que a misteriosa Aproximação tornava-se mais e mais visível, gigante, ameaçadora, em todos os cantos da Terra procurava-se encontrar respostas e possíveis soluções para o que estava ocorrendo, porém, não se dava um passo a frente, talvez, só para trás. Pensou-se, por exemplo, em utilizar-se poderosíssimos artefatos nucleares para evitar-se a tragédia maior, o que se revelou um imensurável desastre. Enfim, só o que se pode afirmar é que todos os intentos e planos e invectivas do homem para se evitar o inevitável resultaram em trovejantes fracassos.

Os anos foram passando de forma arrastada e lúgubre, enquanto a humanidade afundava-se em um estado caótico de verdadeiro horror. Gradativamente, os homens foram sucumbindo em meio à mais atroz loucura coletiva já presenciada, em um desespero de se arrancar os cabelos. Descrever aqui todo o horror vivenciado naqueles dias seria algo impossível... e absurdamente cruel.

Só o que posso dizer é que a intensificação de todas as espécies de catástrofes, as mais inimagináveis, as mais absurdas, as mais devastadoras desencadearam-se na exata proporção matemática da sinistra Aproximação. Na dantesca ignorância sobre o que estava ocorrendo, compreenderam então os homens que todas as suas certezas sobre suas próprias existências não tinham mais o menor sentido, tudo se desmoronou de uma hora para outra. E a humanidade engolia em seco sua ilusória segurança da estéril racionalidade.

E o terror cósmico da Aproximação concretizou-se de forma canhestramente fantástica. O pavor reinava absoluto para onde quer que se olhasse, já que nosso céu já não era nosso céu, era outro, um monstro tenebroso. Ali estava Ele, inaceitável imensidão alienígena, em sua órbita elíptica gigantesca, em sua verdade descomunal e cíclica. Na sua esmagadora opressão atmosférica e gravitacional, todo o sangue da Terra voou pelos ares, inflamou-se ao extremo a alma planetária, e sua febre de doente terminal derramou-se como lava sobre seus filhos em negra decadência.

Era a Aproximação do Terror inominado. E toda a abóbada celeste incendiava-se em um fulvo-escarlate de um vivo e marcial vermelho enegrecido.

Mas por agora... sou um louco que não devo ser levado a sério.

18 agosto 2007

Prefiro a Morte

se a vida
é esse amontoar-se de coisas
esse arrastar-se de moedas
esse comprar-se de tudo...

se a vida
pra se dizer que se vive
é se acabar dia e noite
ao se enfurnar num emprego
pra se enganar a si mesmo
inflando a conta de cifras...

se a vida
é ter "sucesso na vida"
sem ter sentido pra nada
pra vomitar mil estresses
se viajando pra praia
se é disfarçar a miséria
de não ter nada na alma
só consumindo e comendo
e no final em marasmo
entendiar-se de tudo...

se é pôr uns filhos no mundo
pra se aguardar a desgraça
e não ter tempo pra nada
se é ser robô programado
a ser igual sempre a todos
sem questionar o que é "certo"
e sem sonhar como um louco...

se é não parar por um pássaro
se é não fitar-se uma flor
se é não sentir-se um poema
se é não olhar-se pra o céu
se é não chorar uma música
não se perder por amor...

se a vida é viver como morto
e não zombar-se da sorte...
perdoa, sensato leitor...
mas eu prefiro a morte.

12 agosto 2007

Trecho de um Texto Ocultista de Fernando Pessoa

"...Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subutilizando-se até chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não..."

06 agosto 2007

Cátástrofe (um poema à minha cidade)

na minha cidade
não há catástrofes:

não têm tornados
não vêm ciclones
nem furacões
não têm vulcões
nem terremotos
nem tsunamis
nem bomba atômica
enfim...

é que estão todas elas

Todas!

devastando meu peito
dentro de mim

29 julho 2007

Comentário do escritor Moacyr Ferraz

Este é um comentário deixado pelo escritor Moacyr Ferraz no site Recanto das Letras sobre o conto "O Fim Inaceitável de Cada um de Nós" (aqui postado abaixo):

"Caro Alessandro. Mais uma vez você dignifica seu posto de um dos maiores escritores do Recanto das Letras. Seu estilo de escrita, na forma de crônica em primera pessoa, é um dos mais complexos e difíceis. Consequentemente, o que menos resulta em bons contos. Mas seu talento consegue fazer de suas palavras obras de arte literária. Somente um tolo não conseguiria notar a profundidade existente em suas linhas; elas traduzem uma angústia que só um futuro grande mestre é capaz de imprimir. Parabéns por mais uma pérola!"

24 julho 2007

Poemas do Término e Contos do Fim XXV

Foi lançado dia 20/07/07 o nº25 do zine literário Poemas do Término e Contos do Fim, contendo o conto "A Peste do Beijo" e os poemas "Lobo e Crepúsculo", "Ao Sono", "Soneto Ultra-romântico", "Ser", "Poema ao Frio" e "13 Versos". Em Santiago, o zine pode ser encontrado nos seguintes pontos: locadora Fox Vídeo, Locadora Classic Vídeo, Ponto Cópias, Biblioteca Municipal e Biblioteca da URI. Também é distribuído nas seguintes cidades: Santa Maria/RS, Santo Ângelo/RS, Curitiba/PR, São Gonçalo/RJ, Salvador/BA e Goina/PE. Por correio, pode ser enviado para qualquer ponto do Brasil ou exterior. O zine é gratuito.

Extraterrestres na Pintura Antiga II


Na ampliação da pintura abaixo pode-se notar que o objeto faz parte do contexto da tela. Observe a luminosidade representada pelo autor. Note também que uma pessoa observa o objeto cobrindo o rosto com as mãos, devido à luminosidade do mesmo. Ao lado da testemunha existe um cachorro em posição de alerta. Clique no título deste post para acessar o link e conferir esta tela e várias outras muito intrigantes, no mínimo.

Extraterrestres na Pintura Antiga


Existem um sem-número de pinturas antigas e arqueológicas onde ocorrem imagens de objetos voadores não-identificáveis. Uma delas é esta, "A Madonna e o Menino" (séc. XV)

Esta pintura encontra-se no Palazzo Vecchio, em Florença, Itália. A autoria deste quadro é atribuída a Fillippo Lippi. Note o estranho objeto acima do ombro de Nossa Senhora.

20 julho 2007

Ainda...

não me podem acabar...

que se macularem minha vida
com todos os erros do mundo
ainda terei o meu sangue...

que se envenenarem minha sina
com todas as sortes humanas
ainda terei minha luta...

que se sepultarem minhas obras
com todos os risos dos séculos
ainda terei minha força...

que se derramarem meu sangue
com todas as mortes da vida
ainda terei minha alma...

13 julho 2007

O Juízo Final - Hieronymus Bosch


Sombrios Versos à Luz

imortal
luz do cosmos
luz dos fogos

luz dos olhos
de quem ama
luz de chama

luz astral
luz de Goethe
quando morre

que me escorre
à luz-lágrima
de quem sonha

à luz-selvas
entre danças
e que salvas

luz em valsas
borboletas
e mães-d’águas

vaga-lumes
nessas almas
vale em noite

luz da lua
em fantasmas
que flutua

mais ao alto
luz de raios
raio em astros

sol de estrela
luz de arcanjo
com clarim

luz-além
luz vermelha...

Luz do Fim.

06 julho 2007

Soneto a Ela

E paira alta grandeza sobre as nuvens
e pesa mau destino sobre os homens.
Em negro mundo os anos se consomem
e mais clara em tua alma tu nos surges...

Caem raios das horas que refulges,
como sonhos de morte que em mim somem
como fins teus ocultos que há em Beethoven
como sombra em ti fêmea viva em luzes...

Tua voz nas tormentas que há nos céus,
teu olhar cataclísmico nos vela
nos sinais do Infinito dos teus véus...

E por ser Una, arcanamente bela,
alguém dirá talvez que vós sois Deus,
mas eu canto que vós sois no Eterno Ela...

30 junho 2007

Contradição

deixar-te-ei contemplando
o rosto claro das existências
para mergulhar pelas sombras
que mantêm vivo teu rosto
onde os olhos estão sem ver
como sol rubro que brilha
sem brilhar nas cavernosas nuvens

gotejarei meu ouvido anímico
no que jamais se ouve por cantar tão alto
que se esconde sob o transparente
no futuro avanço que há muito passou
e que volta novo para os velhos cegos

irei dedicar minha vida e mônada
para todo oculto onde vive a morte
e se ri do olho que não vê sua vida
que sustém a boca que lhe é ingrata
que vai muito longe dessa mão que alcança

nessa minha insânia que já vê o óbvio
de como é acima é abaixo como é abaixo é acima
além das faces eu conheço almas
além da terra eu vivo no cosmos

deixo-te com as certezas
da cegueira do teu Real
para alcançar verdades
nas visões de meu olho em Sonho

19 junho 2007

A Terrível Responsabilidade

Desde que principiei a publicar meus escritos, sempre abordei de forma dramática a destruição planetária e o destino da humanidade, e, muitas vezes, fui acusado de ser exageradamente apocalíptico. Agora, que a ONU divulgou seu alerta sobre a real ameaça do aquecimento global, todos parecem ter entrado no “clima de fim”. Entretanto, sempre manterei minha coerência e prosseguirei tratando de tais assuntos não por modismos, mas pelas convicções que sempre tive.

Por isso inicio este texto com as palavras de um gênio sempre coerente, Einstein: “A vida é como jogar uma bola na parede; se for jogada uma bola azul, ela voltará azul. Se a bola for jogada fraca, ela voltará fraca. Se a bola for jogada com força, ela voltará com força.” O que afirma o sábio parece ser óbvio, no entanto, não é percebido pela maioria absoluta da humanidade, que não assume a responsabilidade de seus atos. O aquecimento global é somente uma “volta da bola”. E o que de mais terrível há em tudo isso é que não podemos fugir dessa lei cósmica, esse é o verdadeiro horror que aos poucos irá tomando conta da humanidade, da mesma forma que toma conta, quase imperceptivelmente, do homem que se aproxima da morte.

Todos temos nossas responsabilidades referentes ao meio em que estamos inseridos. Por que seria diferente com relação ao cosmos? Porém, intenta-se fugir a essa responsabilidade cósmica de variadas formas: negam-na, como o imbecil que nega e ri de tudo o que desconhece e/ou não quer conhecer, enfeitam-na com um sem-número de teorias “apaziguadoras” falsamente espirituais, entram para religiões que garantam um salvador externo que tudo perdoa, ou ainda apegam-se na crença simplória e grosseira do “morreu, acabou”, isentando-se assim de qualquer responsabilidade, intentando separar-se definitivamente das leis universais, aniquilar a si próprio. Neste último caso, a única atitude existencial que não seria contraditória seria jogar-se em um leito de hedonismo e chafurdar-se nos ditos “prazeres da vida”. E é exatamente esse último caso que impera, dissimulada ou abertamente, na humanidade, e seu reflexo aí está.

O homem, consciente ou inconscientemente, sempre teme o que desconhece, e a melhor proteção contra esse temor é negá-lo ferrenhamente e abarrotar-se de teorias estéreis que procuram justificar que tudo o que não pode ser abarcado pela “segurança” de nossas mentes é absurdo, simplesmente não pode ser, não deve existir. Assim é com essa responsabilidade cósmica a que me refiro: “não a conheço, não a aceito, logo, ela não existe”. O próprio Kant genialmente chegou à conclusão que há limites para mente, que ela não pode conhecer o que está acima dela. A partir daí, outro conhecimento é necessário.

Muitos entendem como conhecimento apenas o que é mentalmente captável, intelectualizável, o que se pode conceituar, creio que devido ao fato de esse ser um conhecimento que transmite uma ilusão de segurança. Já eu não vejo assim. Entendo, por exemplo, que uma sinfonia de Beethoven, um quadro de Da Vinci, um poema de Goethe podem transmitir tanto ou mais conhecimento, através da emoção superior que fazem vibrar em nosso ser, do que todo um tratado teorizável.

Para mim, conhecimento não é sinônimo de intelectualização, pelo contrário, o verdadeiro saber não é transmissível via intelecto, por teorias, mas pela vivência do mesmo. Claro que esse é um conhecimento particular, intransferível, está acima de decodificações mentais, não depende do alcance das máquinas que o dinheiro constrói. E exatamente por isso, respeita e engrandece a liberdade humana, não dá receitas, não restringe a verdade a esta ou aquela teoria, a este ou aquele autor. Tal conhecimento apenas convida a ser vivido (como uma sinfonia convida o ouvinte a senti-la, sem explicar-se) e, assim, compartilhado. E essa responsabilidade cósmica a que me refiro insere-se nesta espécie de conhecimento, não pode ser teorizada, mas pode ser percebida por aqueles que captam através de inúmeras manifestações do saber universal, e a arte é um exemplo, o seu papel dentro da esfera maior do cosmos.


Uma responsabilidade existencial só pode ser plenamente conhecida quando se compreende que a vida não está só no que se vê vivendo, mas em todas as “teias ocultas” que tornam ela possível. Há vida em um planeta como em um átomo, porém nós, cegos, não vemos. Um outro sábio alemão, Novalis, escreveu que “O curioso é que estamos mais ligados ao invisível do que ao visível”. Contudo, a humanidade não quer saber de responsabilidades “invisíveis”, para ela, tudo já está muito claro... ou escuro como uma caverna... E, afinal, como sentenciou Dante: “nas coisas muito secretas devemos ter pouca companhia”.

04 junho 2007

Adolphe - William Bouguereau


O Ser Feminino

Mais uma vez chegara o detestável verão. No entanto, ele trazia-me um consolo: era a época em que iria para a fazenda de meus avós, o que significava ausentar-me momentaneamente do lodo da cidade. Meu estado de espírito melhorou substancialmente logo ao primeiro contato com os ares campestres, e chegando àquela antiga morada carregada de mágicas ancestralidades, esqueci quase que por completo minha lamentável existência urbana.

Após um dia inteiro passado no campo vivenciando profundas e inigualáveis sensações que somente a natureza imaculada poderia proporcionar-me, retornei quase à noite para o casarão, situado em meio a uma infinidade de árvores frutíferas. Depois de um saboroso e restaurador jantar, sentamo-nos eu e meus avós na rústica e singela sala, impregnada de arcaicas recordações da infância, onde meus avós principiaram a contar por inesquecíveis minutos as suas vetustas histórias de assombrações, fantasmas, seres monstruosos e outras aparições enigmáticas, maravilhas das experiências dos mais velhos, sempre ignoradas ou ridicularizadas pela “pós-moderníssima” civilização decadente. Mas quanto a mim, tudo isso me atrai e fascina terrivelmente... Leva-me para outro tempo e espaço, sinto-me mergulhado em outro mundo, que, naquele instante, poderia ser o da minha infância, o mundo dos sonhos ou outras dimensões sobrenaturais... E fui deitar-me sob aquele teto que exalava o cheiro do passado, entre aquelas paredes que pareciam saber de arcaicos segredos perdidos no tempo, imerso naquele ambiente denso e saturado de espectros da antigüidade, recordando-me inquieto e encantado de todos os possíveis mistérios daquelas “histórias extraordinárias”.

Na manhã seguinte, levantei-me cedo e, após um breve café, parti entusiasmado para o campo. Passadas algumas horas de lenta caminhada por uma extensa mata, penetrei em um local um tanto não-familiar, bastante diferente daqueles que já conhecia. Aquele ambiente transmitia-me, devido à sua estranheza, certo receio de avançar, mas resoluto e sedento por novas emoções, passo a passo fui adentrando mais e mais por entre aquelas sombrias e centenárias árvores. Minutos depois, pensei ter avistado, em uma clareira à frente de onde me situava, um vulto semelhante ao de uma mulher. Aproximei-me e pude divisar por entre os vastos arbustos uma belíssima jovem, de uma beleza fascinante, invulgar, assombrosa, que me impressionou no íntimo da alma. Possuía longos cabelos lisos de uma cor indefinida, ora parecendo castanhos, dourados, às vezes de um louro acinzentado e brilhante e, em outras vezes, verdadeiramente prateados. Sua pele era estranhamente branca, e seus olhos de um inadmissível azul-marinho, às vezes pendendo para o lilás. Seu rosto era absolutamente perfeito, impossível imaginar maior perfeição em uma mulher. Seu corpo apresentava formas completamente definidas e delineadas, pelo menos no que se podia discernir através do belo e simples vestido azul-celeste que trajava.

Aquela jovem angelical, bela e esquisita, colhia flores de uma árvore de floração vermelha intensa, quando, creio, ouviu o som de meus passos. Nisso, largou as flores e entrou rápida e graciosa na mata. Tentei segui-la, mas em questão de segundos desapareceu como que por encanto. Não consegui, apesar de minha insistência, encontrar nenhum sinal de para onde ela poderia ter ido, não havia vestígio de pegadas ou do que quer que fosse.

Cansado e decepcionado, resolvi retornar à fazenda. Na volta, tentava explicar a mim mesmo quem seria aquela jovem mulher tão bela, de onde viera, para onde fora. Sabia que não havia outros moradores próximos à fazenda de meus avós, e aquela mulher não poderia ter vindo de muito longe. De imediato veio-me à mente a lembrança de uma das narrações de meu avô, em que havia a aparição de belas mulheres que surgiam nas matas e desapareciam entre as águas dos rios. Disse-me ele que os antigos temiam as mesmas, pois se acreditava que elas carregavam as pessoas que delas se aproximavam para o mundo dos mortos. Seria a história mais que uma fantástica lenda? Era no que refletia... A jovem era de uma beleza realmente sobre-humana, não poderia ser normal...

No dia seguinte e nos próximos sete dias que estive no campo, saí à procura daquele esplêndido ser feminino, impossível esquecer tão prodigiosa beleza. No entanto, apesar de minhas infatigáveis buscas por pradarias e bosques, não percebi o menor indício da jovem. Porém, no último dia de minha estada na fazenda, já à tardinha e quando voltava desiludido ao casarão, ela surgiu diante de mim como uma materialização, saindo de atrás de uma enorme árvore. Olhou-me e sorriu deslumbrantemente, indicando que eu a seguisse. Fascinado e boquiaberto, não hesitei. Corri por entre a mata como um lunático, lutando para não perdê-la de vista, até que ela se deteve à beira de um fulgurante riacho. Estaquei como um demente diante de tanta ternura e beleza veneráveis e, embora cheio de dúvidas, não consegui articular uma palavra. A bela, então, com uma inefável voz de anjo, a mim dirigiu-se:

- Bem-vindo, jovem visitante. Este é meu lar. Aqui vivo com minha família há centenas de anos. Sei que tens me procurado, e como simpatizei muito contigo, decidi apresentar-me. Sou um espírito das águas, um elemental, uma ondina. Ficaria imensamente feliz se viesses sempre me visitar, és tão bonito. Por favor, diz alguma coisa, desejo tanto ouvir tua voz... Queres saber meu nome? Oh, não consegues falar! Eu já esperava. Bem, então agora, deves voltar à tua casa, para pensares melhor em mim... Vai, belo humano, mas saibas que desejo que voltes. Sim, voltarás, e hei de ouvir tua voz... Leva o meu beijo...

Após ser beijado por aquele ser etéreo, senti-me como que na presença de deusas celestiais... Porém, em segundos, e sem que eu proferisse uma única palavra, a inenarrável mulher, voando como um anjo, mergulhou nas águas cristalinas do riacho e desapareceu definitivamente de meus olhos. Nem soube seu nome. Como era quase noite, mesmo contrariado, tive que voltar à fazenda, em estado de êxtase e, simultaneamente, de uma funda e cortante tristeza. Tristeza, porque no dia seguinte deveria retornar à cidade. Quando tornaria a vê-la? Desgraçadamente, impostergáveis compromissos aguardavam-me, teria que abandonar minha amada ondina. Naquele momento detestei e amaldiçoei com todas as forças a vida comum e vulgar do homens, seus odiosos compromissos, seus empregos e trabalhos inúteis e mecanizantes, a monotonia insuportável daquela vida materialista, estressante, aniquiladora dos fundos sentimentos e da real espiritualidade.

Retornei à cidade. Passado um mês, já me era intolerável minha existência urbana. Todos os meus pensamentos e emoções dirigiam-se a um único destino: a ondina. Cada minuto vivido na cidade, desperdiçado com os assuntos corriqueiros do cotidiano, considerava como um minuto a menos que poderia ter passado ao lado dela. Estava farto de ver aquelas mesmas pessoas mesquinhas e insensíveis, que somente viviam para a inveja, para a vaidade, para a cobiça. Não tinha mais nada a dizer a nenhuma delas. Só ansiava abandoná-las para sempre, esquecê-las de forma peremptória, bani-las de minha mente, para que nela ficasse a pura e esplêndida lembrança da minha querida ondina. Não sei exatamente que espécie de fascínio, de magia, de feitiço, de maldição aquele ser feminino fez recair sobre mim, mas seja o que for, obteve pleno sucesso. Encontrava-me a ponto de largar tudo, emprego, vida social, dinheiro, bens familiares para ir ao encontro da misteriosa jovem. Cometeria qualquer loucura para sentir novamente em meus lábios aquele beijo imaterial... Não desejava outra espécie de companhia, a não ser a da estranha menina, não desejava ouvir outra voz, a não ser a sua, tão límpida e elevada como uma Paixão de Bach...

De modo que em certa manhã, tendo planejado tudo em absoluto segredo, deixei meu derradeiro adeus à vida entre os humanos e parti desvairado para a fazenda. Estava pouco ligando para o que poderiam pensar a meu respeito quando soubessem de minha partida, deixei apenas uma carta explicando que necessitei viajar, mas não mencionei meu local de destino. Na verdade, nem mesmo meus avós souberam de nada, pois me dirigi direto ao local onde fora beijado pela ondina, que não saía de meus sonhos alucinados.

Chegando lá, larguei sobre a grama as poucas coisas que trouxera, sentei-me à beira do riacho e aguardei o surgimento do belo ser. Permaneci assim durante todo dia e toda noite, sem dormir, mas ela somente concedeu a graça de sua visão no dia seguinte, próximo ao meio-dia. Desde então, nos 14 dias subseqüentes, não arredei pé do local nem por segundos, contemplando hipnotizado aquele ser magnífico, ouvindo suas miríficas canções de mágica dramaticidade, numa expressão de sonhos... No primeiro dia que a vi, minha idolatrada ondina surgiu na forma de uma intensa luminosidade azul-cintilante, para logo assumir seu comovente aspecto físico. Recebeu-me com um beijo que não saberia descrever. Em seguida, cobrou-me que ainda desejava ouvir minha voz. Satisfiz seu desejo declarando meu insignificante nome e confessando o que sentia por ela, as loucuras que cometi, meu absoluto fascínio que tem me carregado nas garras da insânia. Ela olhou-me fixamente e expressou tão terno sorriso que me transportou a esquisitas sensações oníricas...

Impossível descrever cabalmente as experiências que vivenciei naqueles dias. Conheci sua família, todos seres absurdamente belos, além de outros entes fantásticos, como as sílfides, elementais do ar, que pairavam sobre as águas do rio. Nem mesmo em meus mais febris sonhos poderia imaginar-me viver enlaçado em tão mágicos beijos e abraços... Contudo, ao final do 14º dia, a ondina soprou-me aos ouvidos:

- Em breve, os humanos virão, poluirão este rio, devastarão esta floresta, destruirão nosso imaculado lar. Devemos partir. Hoje iremos para outras regiões do universo. Tu irás conosco. Vem, dá-me tua mão.

Obedeci. E, rápidos como a luz, viajamos para ignotas regiões... Sei que, passados alguns dias, meu corpo foi encontrado à beira do riacho. A causa de minha morte foi identificada como “inanição”. Morri de fome, há duas semanas não me alimentava. Os leitores considerarão este relato absurdo. Eu considero absurdo o destino que me aguarda...

30 maio 2007

13 Versos

Trago nos olhos uma marcha fúnebre
à humanidade que caminha pútrida,
e a mão que acena de caveira esquálida
a um hino roxo de um final que é trágico.
A tua desgraça, ó mundo humano, é júbilo
pra quem de horror já traz em lava o espírito
e viu à morte os altos gênios - mártires!
que pra te erguer verteram sangue e lágrimas.
Homem acabado, sinto miasma e túmulo
pra te enterrar em teu dantesco báratro
e erguer a flâmula em teu lixo cósmico.

A ti eu deixo o meu adeus de Hercólubus
e parto só pra contemplar o Término.

Alessandro Reiffer