31 outubro 2015

da Verdade

a verdade é como uma moeda:
para cada pessoa
a moeda foi jogada:
se caiu cara
a verdade é cara
se caiu coroa
a verdade é coroa

o outro lado nem se vê

mas a verdade é a moeda
não o lado

29 outubro 2015

Por te fazer mal

quem dera
deixar um algo
de tóxico
como se fosse um resto de trago
ou toco na areia de um vaso
com a brasa de um cigarro
inflamado
que fosse sangue cuspe catarro
como quem tira um sarro
amargo
deixando um lago
manejado à foice
avançando à bala
um tapa um soco ou coice
um vasto travo de droga
espuma do que se afoga
antigo cheiro de ópio
ao largo
mijo e baba de sapo
peçonha e saliva de cobra
um frasco negro de coca
e uma alta dose no sangue
fatal

quem dera deixar um algo
verdade última e tóxica
que te acordasse
por te fazer mal


27 outubro 2015

Assassino, antes de tudo

o homem
é antes de tudo
assassino:

de início
desejando ser o único
matou o próximo

depois
desejando tudo explicar
matou o mágico

desejando em tudo tocar
matou o onírico

desejando o planeta todo
matou o anímico

desejando tudo poder ver
matou o espírito

e por fim
desejando ser o único
matou o cósmico

agora sobrou só o homem
que antes de tudo
é nada



25 outubro 2015

do Interesseiro

I - o sonhador
que não deseja
o sonho realizado
é o sonhador autêntico
e verdadeiro
o sonhador que sonha
para ver o sonho feito
não é sonhador:
é interesseiro

II - o sonho
só é sonho
enquanto é sonho

quando se realiza
é outra coisa
que não o que foi sonhado

realizar o sonho
é traí-lo
abandoná-lo
e ao fim
nem é realizá-lo


23 outubro 2015

Em 2009, escrevi sobre o avanço e a inevitabilidade das Mudanças Climáticas

Sim, eu sei que é chato essa coisa de "viu, eu não disse?". É, eu também não gosto. Mas desde que criei meu blog, em 2006 (aliás, bem antes de criar o blog), escrevi  em prosa e verso, sobre a crescente crise ambiental de múltiplas manifestações e proporções que vem afetando o planeta e afirmei que ela chegaria até nós. E sempre disse que a culpa é nossa. Claro que não sou só eu que o digo, mas sou um dos poucos, bem poucos, a escrever sobre o assunto em nossa região, de tendência conservadora e inclinada ao pensamento "desenvolvimentista". 


Quase sempre, fui desacreditado, chamado de "alarmista", "pessimista", "exagerado". A maior parte das pessoas que lia o que eu escrevia não somente não concordava, mas se indignava que eu pudesse ser tão "contra o progresso e a humanidade". O que indica que não entendiam o que eu queria dizer.


Para mim, as alterações climáticas, e a culpa do homem em relação a elas, sempre foram extremamente óbvias. Não entendo como as pessoas não conseguem enxergar algo tão claro. O ser humano tem dificuldade em ver o óbvio. Exatamente por ser óbvio. Há um conto de Poe, "A Carta Roubada", que trata do assunto. No conto, a carta,  muito procurada, foi escondida no local mais óbvio. Exatamente por isso, nunca foi encontrada. As pessoas preferem criar explicações "sofisticadas", acostumadas que estão, condicionadas  uma ciência que prefere a complicação das explicações teórico-racionais labirínticas, do que a simplicidade e a clareza da percepção intuitiva.

Escrevi em 2009: "O certo é que o planeta inteiro passa por um descontrole climático nunca antes visto pela civilização, e que está aqui, diante de nós, e nós fingimos que tudo é natural, e que o homem não tem culpa nenhuma nisso tudo. E sabem por quê? Por que esse descontrole, esse caos, é lento, é progressivo, é insidioso. Não se percebe seu avanço, a não ser quando é tarde demais.

Quero dizer que o homem vem enganando a si mesmo, dando desculpas, buscando evasivas, escapatórias, fugindo à sua responsabilidade quanto à vida do planeta. 

Eu aprendi, por exemplo, quando estudante do então 1º grau, que o clima do RS era um dos mais constantes do Brasil, com raros períodos de grandes cheias ou grandes secas, que havia aqui uma das melhores distribuição de chuvas do país. Eu aprendi isso. E meus pais e meus avós confirmam que as secas e as enchentes extremas aconteciam, mas era de vez em quando. Pois agora, não tem um ano que nós não tenhamos ou uma seca ou uma enchente de proporções catastróficas."

Isso escrevi em 2009. O texto na íntegra pode ser conferido aqui. Agora, em 2015, Santiago vive o pior período de tempestades da sua história, a ponto de as pessoas terem que trocar a cobertura de suas casas, que teoricamente deveria suportar uma chuva de granizo, por materiais mais resistentes. É que esses granizos que estão caindo não são granizos normais. Muitos, eu sei, ainda negarão o óbvio. De que não se trata de mudança climática, e que nem o homem tem culpa. É como escreveu certo filósofo: "As pessoas não aprendem as lições da vida nem a canhonaços". 

21 outubro 2015

de acordo com Fernando Pessoa

é melhor tudo que não é
só por não ser o que é

o que é é sempre menos
do que seria se fosse
porque o ser nunca se alcança

o homem se caracteriza
por nunca atingir
o homem que não é

por isso há o sonho:
se quem sonha sabe sonhar
não se quer realizar o que sonha
porque deixa de ser sonho
mas sonha porque sabe que o sonho
é só quando o que não é
pode ser sem ter que ser
pois ao sê-lo deixará de sê-lo






19 outubro 2015

Árvore é Passado

a árvore passa
porque o progresso passa.
assim, sem sentido,
que a humanidade o perdeu:
atrofiou seu sentido
de encontrar sentido
de fazer sentido
em ser sentido

qual sentido seguir?

a árvore passa
no sentido de que é passado
o progresso passa
no sentido de que anda

mesmo sem sentido
que é passo a passo
(é fato
não pessimismo)
ir no sentido do abismo


17 outubro 2015

do que Impede a Vida

o que impede a vida
são os que querem saber para todos:
“não olhe pela janela,
eu já olhei
e não há nada lá fora”

são como aquelas visitas indesejadas
que te impedem de sair
por nunca irem embora

o que impede a vida
no homem efêmero
são os que querem
que calcemos os seus próprios sapatos
de menor número

o que impede a vida
é estar-se certo
de que o mundo
está certo
dentro dos limites
que ele  (não) tem

é como sempre pisar no seco
da estrada já pronta
para evitar de pisar
no vasto do campo
e molhar o pé

os que vivem
e criam
são os que veem o que não é



15 outubro 2015

Tempestades cada vez piores...

Não recordo de nenhuma outra sequência de anos com tempestades tão severas como as que têm afligido o RS a partir de 2011. Nestes últimos cinco anos, não tivemos um só, principalmente no período da primavera, que não trouxesse destruição em massa, perdas  materiais e humanas cada vez mais alarmantes, medo e até pânico na população gaúcha. Chuvas de granizo beirando o absurdo, vendavais avassaladores (às vezes ciclones e tornados), chuvas torrenciais quebrando recordes, enchentes constantes, erosões de áreas cada vez maiores, e, no polo oposto de tudo isso, períodos extremamente prolongados de impiedosas estiagens. 

Claro que nossa região, o Sul do Brasil, é historicamente propícia a eventos de temporais e tormentas. Elas sempre ocorreram por aqui, e algumas marcaram época. Mas a questão agora é a frequência e intensidade: cada vez mais frequentes, cada vez mais intensas, cada vez mais generalizadas. Eu não tenho dúvidas de que o clima não é mais o mesmo. Nosso planeta está dando sinais claros de que algo está errado, cada vez mais errado. Obviamente, a intensificação das catástrofes naturais não ocorre somente no RS. A ONU alertou em 2008 que o índice global de desastres ambientais vem crescendo constantemente. No Brasil, segundo o CENAD (Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres) a ocorrência de desastres naturais aumentou em 268% no século XXI. Um índice, no mínimo, assustador.

As mudanças climáticas não são uma projeção de pessimistas. É a realidade que vivemos. E que estamos todos sentindo na pele. E muito provavelmente (para não dizer certamente), sentiremos cada vez mais. 

(A foto acima é da cidade gaúcha de Santa Maria, e foi tirada por Guilherme  Escosteguy.)

13 outubro 2015

Humanidade Nenhuma

reconheço-te que me desconheço:
digo a ti que me lês
que nem eu a ti te falo
nem tu a mim me vês

somos todos outros nadas
uns para os outros todos

de modo
que nem existe do humano todo nenhum
porque nenhum homem sabe o que é
nem sabe porque faz aquilo que faz
e nem vive qualquer vida nenhuma

e se chega à conclusão absurda
que nem pode a humanidade acabar
porque nem existe humanidade alguma




11 outubro 2015

O Gênio inesgotável de Fernando Pessoa


Até o advento da genialidade de Fernando Pessoa, Camões era considerado o maior gênio poético da literatura em língua portuguesa. Camões e Pessoa têm o comum o fato de que a maior parte de suas obras não foi publicada em vida e viveram sem o merecido reconhecimento, uma constante quando se trata de gênios. Mas não há mais dúvidas de que Pessoa superou Camões. Sua obra é tão vasta, em todos os sentidos, em quantidade e em qualidade, que ainda hoje seguimos conhecendo suas poesias inéditas, descobertas após sua morte, catalogadas e preparadas pelos estudiosos de sua obra para publicação. E impressiona que tudo, absolutamente tudo, é poesia do mais alto nível, que faz de Fernando Pessoa um dos maiores gênios poéticos de todos os tempos, não só dentro da língua portuguesa, mas em âmbito universal. De suas poesias inéditas, selecionei 10 trechos (e poderia ter escolhido quaisquer outros 10, porque, falando em linguagem pessoana, nele tudo é tão alto que nada é menor que nada), cuja profundidade, originalidade e riqueza interpretativa são, no mínimo, assombrosas.

1 - Ó curva do horizonte, quem te passa

Passa da vista, vão de ser ou estar. 
Seta, que o peito enorme me transpassa,
Não doas, que morrer é continuar.

2 - Dói viver, nada sou que valha ser.
Tardo-me porque penso e tudo rui.
Tento saber, porque tentar é ser.
Longe de isso ser tudo, tudo flui.

3 - O prometido nunca será dado,
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se esperar é gosto,
Cumpriu-se no esperar, e está acabado.

4 - O que soubemos, o perdemos.
O que pensamos, já o fomos.
Ah, e só guardamos o que demos
E tudo é sermos quem não somos.

5 - Eu amo tudo que foi,
Tudo que já não é,
A dor que já não me dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

6 - Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me,
Por não ter procedido bem.

7 - Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo uma ignorância diluída.
Tudo é esperar à beira de uma estrada
A vinda sempre adiada.

8 - A ciência, a ciência, a ciência...
Ah, como tudo é nulo e vão!
A pobreza da inteligência
Ante a riqueza da emoção.

A ciência! Como é pobre e nada.
Rico é o que a alma dá e tem. 

9 - Ninguém suporta o peso mau dos dias
Salvo por interpostas alegrias.
Bebe, que assim serás o intervalo
Entre o que criarás e o que não crias.

10 - Tudo foi dito antes que se dissesse.
O vento aflora vagamente a messe,
E deixa-a porque breve se apagou.
Assim é tudo-nada. Bebe e esquece.

09 outubro 2015

de Governos e de Leis

I - governo
(quando ditadura)
é alguém dos alguns
metido a força
que pensa poder mandar em todos
para benefício desses alguns
e governo
(quando democracia)
é o empregado
autorizado e pago
pelo povo
para mandar em todos
em benefício dos mesmos alguns
que querem fazer do povo
um bando de nadas
e de nenhuns

II - lei
é estabelecer
que todos são iguais
desde que não
sejam os alguns
para que o povo
se iguale sempre ao povo
e jamais
se desiguale do seu nada
a lei é a ordem dos alguns
e para estes
lei é sempre se manter
dentro dos limitados
limites da estrada





07 outubro 2015

A Queda da Humanidade

despencaste dos próprios tamancos
tropeçaste nos próprios barrancos
afundaste nos próprios buracos

não foste o ser que és
nem chegaste a ser o que não foste
daquilo que conseguiste desististe
o que fracassaste levaste adiante

puxaste a carta  mais baixa
do teu castelo de vento

quebraste o orgulho do teu salto
sem nem ter chegado ao alto

e eu
como nunca fui nada
entre o que está entre ti
naquele dia de Queda
não estarei nem aqui


05 outubro 2015

Crime

palavra
“Sublime”
para onde foste?
perdeste tanto teu ser
que talvez eu tenha
que te explicar
para um alguém
que for me ler

se eu te usasse
como adjetivo
soaria pomposo e antigo
um nada babaca

morreste
de algum novo vírus
sanguíneo
ou suíno
ou só
deixaste a casa
por nojo
de tantas baratas
pela mesa?

seja como for
que assim seja

estás agora em segredo:
dizer-te em meio ao fim
causa arrepios de medo...

encontraste uma rima
no que há de sublime
em só haver esperança
no Horror e no Crime

  


03 outubro 2015

Quando podemos não podemos

Querer não é poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer.

Fernando Pessoa (como seu heterônimo Bernardo Soares)
quando podemos
não sabemos como podemos
(porque queremos primeiro
e aprendemos depois)
e quando aprendemos
o tempo de poder já passou
e jamais obtemos os dois

quando se aprende a poder
ou já não se pode mais
ou já se deixou de querer
(pelo fato de que já não se pode)
e então fingimos querer outras coisas
que são só as que podemos
disfarçadas do que queremos
e quando as conseguimos
percebemos que nada temos
porque não era o que queríamos

a verdade
é que nunca queremos o que podemos
porque o que se pode
(exatamente por se poder)
não tem graça em se querer
e ainda mais lá no fundo
(em relação ao que se quer)
nunca sabemos se é o que podemos
nem conhecemos o que é que queremos



01 outubro 2015

Do que resta

I - pouco faço:
crio
como a água
desce o rio

II - Deus
(ao existir ou não)
deixou de sua obra
a imaginação
como continuação

III - poesia
é o que resta
do que foi vida
hoje vazia