31 dezembro 2013

Mensagem Antipática de Ano-Novo (ou A Marmelada)

as pessoas dizem
que fazem
o que elas têm que fazer
mas o que é que
elas têm que fazer?
quem disse que o que é feito
é o que deveria ser feito?
e por que uma pessoa
acha que deve fazer tal coisa
e não outra?

as pessoas acham que cumprem
com seus deveres
mas qual seriam os seus deveres?
e por que tais deveres e não outros?
quais são os deveres
que de fato deveriam ser deveres?

nosso mundo é o que é
porque cumprimos com nossos deveres?
achamos que outros
não cumprem seus deveres
mas sempre achamos
que cumprimos os nossos
e se todos acham que cumprem seus deveres
então não há ninguém errado
e se não há ninguém errado
o mundo deveria estar correto ao extremo
e qual seria o mundo correto?

cumprir seus deveres
é se ter a vida que temos?
quem é que estipula os nossos deveres?
em que momento da vida
e por quais motivos
as pessoas se dizem:
tenho que fazer isso
e não aquilo?

fizemos uma escolha
ou fomos convencidos
ou fomos obrigados
ou achamos que escolhemos
mas fomos convencidos
ou obrigados
sem que percebamos que o fomos?

nos Anos-Novos
as pessoas falam em mudanças
mas durante os Novos-Anos
fazem o que estão certas
que devem fazer
e sempre acham
que devem fazer as mesmas coisas
e que estão certas no que fazem
e que cumprem seus deveres
que são sempre os mesmos
e cumpridos da mesma forma
e não há mudança alguma

ninguém nunca se questiona nada
e no fim das contas
anos-novos sucessos felicidades
parecem um banquete da virada
mas  são apenas o de sempre:
marmelada

30 dezembro 2013

Fragmento Absurdo de Uma Existência Futura n°1 – Com as mãos sujas de miolos

Fumando mais um cigarro, sentado na merda da minha cozinha, recordo-me, em indiferença, indiferença pura e simples (que tem sido a tônica da minha vida), os tempos em que eu assaltava bancos com alguns amigos.  Bons tempos. Agora devem estar todos mortos. Eles, meus familiares e aquelas mulheres, poucas, bem poucas, que amei. Ou quase isso. Na verdade, nem sei se estão mortos ou não. Nunca mais soube deles. Nem tenho como saber, por mais que eu deseje. E também, agora, já nem desejo tanto assim.  De que adiantaria? Mas devem estar mortos, é o lógico, dadas as circunstâncias. E em breve eu também estarei morto, é só uma questão de tempo. Sinto-me realmente doente. Não sei de qual doença se trata, é tudo tão confuso, uma reunião de sintomas de que nunca ouvi falar, sobre os quais nunca li, mesmo com os razoáveis conhecimentos de medicina que possuo. 

É como se minha pela ardesse e coçasse, saindo pequenas feridas purulentas em várias partes do corpo. Meus olhos ardem e estão sempre vermelhos. Às vezes, tenho pequenos sangramentos do nariz, dos olhos, das feridas da pele. Meu catarro grosso e amarelado volta e meia está manchado de sangue. Seguidamente, tenho febre. Por vezes, alta. Minha cabeça dói. Tenho tonturas, vertigens. De vez em quando, algum tipo de alucinação. Além de outros sintomas menores. Deve ser alguma doença oriunda da água contaminada ou da comida apodrecida. Ou, talvez, levando-se em conta os problemas de pele, pode ser efeito da radioatividade. Afinal, ela deve estar muito alta nessa região. E não só aqui, obviamente.  Mas talvez aqui onde vivo a concentração radioativa seja particularmente alta, levando-se em conta que, além da guerra que afetou a todos,  uma usina relativamente próxima à minha casa explodiu.

Aliás, a doença não deve ser A doença, mas o mais provável é que seja AS doenças. Devo estar com um monte de merda em meu corpo. Só sei, ou acho que sei, que não é aquele vírus que dizimou a cidade, porque o principal sintoma da epidemia era a diarreia, e isso, pelo menos, eu não tenho. Ou também pode ser uma mutação do vírus, como ocorreu com várias outras doenças agora mortais, sei lá. Mas enfim, e agora, o que é que isso tudo importa? Como sei que não há forma de me curar, ainda que eu soubesse do que se trata, aguardo a morte, resignado e indiferente. E mesmo que eu pudesse me curar, viveria pra quê? Lembro que naqueles tempos passados, dizia-se que o homem não seria tão louco, ou doente ou estúpido para cometer determinados absurdos. No entanto, cometeu. Se eu pudesse viajar no tempo, para o passado, com a intenção de alterar o futuro, se isso fosse possível, deixaria este meu relato como um terrível alerta. E na verdade, nem sei por que escrevo isso. Talvez, inconscientemente, com algum tipo absurdo de esperança de que realmente ele sirva de advertência. Além de doente, devo estar louco.

Bom, saindo de meus devaneios, devo dizer que a doença não me tirou o apetite. Tenho fome. E muita. Agora mesmo, estou pensando no que vou comer. Há meses, eu e alguns vizinhos, que já estão mortos, saqueamos todos os supermercados da cidade. Eu e meus vizinhos fomos os únicos que sobrevivemos após a epidemia do vírus desconhecido. O vírus havia contaminado a rede de água da cidade, mas nunca bebíamos água da torneira. Bebíamos de um grande poço artesiano que mantínhamos em conjunto. Quando a população inteira foi morrendo rapidamente, defecando sangue e pedaços de órgãos, isolamo-nos em nossas casas, bebendo água somente do poço e nos alimentando de nossos estoques. Mas, quando os estoques acabaram, tivemos que sair para procurar comida.

Nas ruas, cadáveres e mais cadáveres, todos mortos, todos. O fedor era insuportável. É interessante notar como a necessidade imperativa, imediata, de alimentos parece debochar daquilo que chamamos de “humanitarismo”, “compaixão” “amor ao próximo”. Pisando por entre cadáveres, sofríamos com a morte de outros seres humanos, havia vários conhecidos meus, mas isso não impedia que corrêssemos por entre eles esmagando  seus crânios ou afundando os pés na sua carne apodrecida, ou chutando seus corpos para abrir caminho o mais rápido possível, sem nada daquilo que chamaríamos “respeito pelos mortos”. E quanto aos meus vizinhos, em nenhum momento eu pensei em auxiliá-los na busca por alimentos, ou em dividir parte do que eu tinha conseguido saquear. Faria algum sentido ser solidário naqueles momentos? Não. Muito pelo contrário, era cada um por si, e o que conseguíamos pegar antes que algum outro pegasse era comemorado como uma gloriosa vitória. Era natural, natural ao extremo, que brigas existissem, e violentas. Eu mesmo tive que matar dois de meus vizinhos. Quando digo que tive de matar, era porque a questão era simples: ou eles ou eu. O primeiro, matei com um espeto que estava ao meu alcance em um supermercado, pois disputávamos os últimos pedaços de carne fresca. Ou quase fresca. O segundo, estourei os miolos com minha pistola, para poder ficar com um imenso estoque de frutas secas que ele tinha roubado.

De modo que agora, logo ao acabar de fumar meu cigarro, comerei algumas nozes. É curioso notar a forte semelhança do formato interno das nozes com o cérebro humano. Mais interessante ainda é o fato de eu ter obtido essas nozes estourando o cérebro de um vizinho que era tido por todos como inteligentíssimo. O cara até era meu amigo. Ah, foda-se! Remorso? O que significaria agora o remorso? Se um dia ocorrer o impossível de alguém ler este relato num tempo passado, sei que eu serei compreendido e perdoado. Não que o perdão me importa. Eu nem sei o que me importa, se é que algo me importa... Bom, agora me importam as nozes. Fiz o que deveria ter feito. E isso é tudo. Quem teria agido diferente no meu lugar?... Valeu a pena pelas nozes que comerei agora. Com as mãos sujas de sangue e miolos.

(Este conto, primeiro da série "Fragmentos Absurdos de uma Existência Futura", foi reelaborado e, agora, republicado.)


28 dezembro 2013

Devastação florestal sem limites em Madagascar traz de volta a Peste Negra

A ilha africana de Madagascar ficou conhecida atualmente pelo filme infantil de mesmo nome, onde uma infinidade de animais de diversas espécies aparentam viver felizes e em paz. Lamentavelmente, a realidade do país é bem outra. Madagascar, e muitos não sabem, possui a maior biodiversidade do planeta, ou seja, é o país que mais apresenta diferentes espécies de seres vivos.

Ou apresentava. Cerca de 97% de suas florestas já foram destruídas. Eu disse 97%. Da Floresta Tropical de Madagascar, a mais rica do mundo, restam míseros 3%. Que continuam a ser devastados. É a floresta tropical mais destruída do planeta, mais que a nossa Mata Atlântica, da qual ainda restam seus imensos 7%. Quanto à extraordinária fauna de Madagascar, 90% já desapareceu. Foi levada junta com as árvores derrubadas para extração de madeira, agricultura e extração mineral.

Madagascar é um paraíso com seus dias contados. Nem mesmo as pequenas reservas ambientais do país, onde vivem os famosos lêmures do filme infantil, estão a salvo. O que não é muito diferente do Brasil.

Pois bem, um dos resultados catastróficos de toda essa devastação absurda foi a volta de umas das piores doenças da história da humanidade: a peste bubônica, ou peste negra, que matou cerca de um terço da população europeia durante a Idade Média. A peste bubônica, que tem esse nome porque causa bulbos (inchaços infecciosos dos gânglios linfáticos) pelo corpo, geralmente de coloração escura, é causada por uma bactéria que é transmitida ao homem pela picada da pulga do rato, e pode matar em 3 dias.

Na Idade Média, devido ao desconhecimento e às precárias condições de higiene que se desenvolveram com o crescimento caótico dos cidades, os ratos se proliferaram muito e passaram a conviver com os homens nas cidades sujas. As pulgas passaram para os homens, e a peste negra se transformou numa das piores epidemias da história. Com o tempo, com os avanços científicos e com a melhoria das condições de higiene, a doença foi quase erradicada (embora sempre tenha existido casos isolados em países pobres).

Agora, em Madagascar, o motivo da volta da enfermidade é outro. Deve-se ao desmatamento impiedoso da região. Os ratos que viviam nas florestas, não tendo para onde ir e sem alimento, estão invadindo as casas e trazendo com eles suas pulgas infectadas. Até o momento, foram confirmados 86 casos da doença, com 39 mortes. E trata-se da peste bubônica pulmonar, caso mais grave da doença, que pode ser transmitido não só pela pulga, mas de pessoa para pessoa. As autoridades sanitárias ao redor do mundo consideram a peste bubônica como uma doença re-emergente, assim como a tuberculose, ou seja, doenças quase erradicadas que estão voltando. Há alguns poucos anos, um surto de peste bubônica atingiu a Índia, matando dezenas de pessoas. O desmatamento também foi responsabilizado pela doença na Índia.

(Na imagem, foto de uma área de floresta tropical quase que completamente destruída em Madagascar, onde corre um rio morto de águas vermelhas devido ao barro das erosões. Uma cena infernal em meio ao que antes era um paraíso.)

Fonte: http://exame.abril.com.br/meio-ambiente-e-energia/noticias/peste-causa-39-mortes-em-madagascar

26 dezembro 2013

do Funcionamento de uma Câmara de Vereadores

I

uma câmara de vereadores
funciona
de acordo com o seguinte princípio:
antes das eleições
é tudo in festança
depois das eleições
é tudo in festada

II

alguns vereadores
e demais políticos
quando reúnem-se
em suas campanhas
causam-me insuportáveis ascos
só em pensar
no ranço daquelas picanhas
e na graxa daqueles churrascos

III

o povo medíocre
em seu imediatismo
acha que vereador
é quem troca logo o bico
e depois o pobre
leva um chute de bico
do edil medíocre
e nobre
em seu imerdiatismo

IV

enfim
uma câmara de vereadores
(com todo respeito e deferência)
fede
a merda de gente
e a mijo de bode
seguindo o regimento maior:
“eu tiro vantagem
e o povo se fode”

25 dezembro 2013

Poema de Natal a um Urutau

naquela noite
tu serás tu mesmo:
ao que homens se mostram
tu te ocultas
como se não
como se nem fosses

os sábios sopram
que sendo tu
tu nada sabes
pois o que é que leste?
mas tu
tu nem estás
em teu não estar
do que dizem
tu te escondeste

não sendo nada
só o teu Ser é que é:
e teu ser não seria
se te mostrasses em aberto
alardeando sob o sol
o que só vê
teu olho noturnal...
mostrar-se
não é de um urutau

paira de ti
o espectro do que não
um verbo que se fantasma
grito não-dito
e lamento-punhal
no invisível
és toda a dor de uma era
final

quem te vê quando cantas?
o que cantas é um susto
que não nos deixa sinal...
por isso este poema:
também ninguém vê o Natal

Obs.: o urutau é uma ave noturna que se utiliza muito bem da sua incrível capacidade de camuflagem. Por isso, raramente é vista. Vive da Costa Rica até a Argentina. Seu nome, urutau, em tupi-guarani significa "Ave-Fantasma". O motivo do nome, além de sua quase "invisibilidade", é que o seu canto melancólico é uma espécie de gemido muito triste, que lembra um lamento humano. 

(Este poema foi escrito para o Natal de 2012. Republico-o, com algumas poucas alterações.)

24 dezembro 2013

Aquecimento Global: gelo está desaparecendo e Ártico está ficando mais verde (e o Papai Noel pode ficar sem renas)

Para aqueles que estão certos de que o Aquecimento Global é balela, esta notícia pode cair como um balde de água fria, quer dizer, de água quente: pesquisadores afirmam que desde a década de 80 a temperatura do Ártico vem aumentando de forma gradual, ocasionando degelo marinho progressivo, surgimento de vegetação em locais anormais (cada vez mais ao norte, no lugar do gelo) e redução da população de animais nativos, principalmente renas e caribus.

Foi o que destacou a edição de 2013 do Arctic Report Card, um informe anual publicado pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA). 

Ranga Myneni, do Departamento da Terra e do Meio Ambiente da Universidade de Boston, em um comunicado de imprensa da NASA, afirmou:

 “As latitudes maiores do Norte estão ficando mais quentes, o gelo do mar Ártico e a duração da cobertura de neve estão diminuindo, a estação de crescimento está ficando mais longa e as plantas estão crescendo mais, No Ártico e nas zonas boreais do Norte, as características das estações do ano estão mudando, causando grandes perturbações para plantas e ecossistemas associados. (...) Isso põe em movimento um ciclo de reforço positivo entre o aquecimento e a perda de gelo do mar e da cobertura de neve, que chamamos de efeito estufa ampliado. O efeito estufa poderia ser ainda maior no futuro, enquanto os solos no Norte descongelam, liberando quantidades potencialmente significativas de dióxido de carbono e metano.”

Nos últimos diferentes espécies de plantas, inclusive árvore típicas de clima temperado, foram vistas crescendo no Ártico em um raio de 250 a 430 milhas mais ao norte do que o normal. Ao mesmo tempo, as população dos caribus e das renas, estas últimas famosas por puxarem o trenó do Papai Noel, têm diminuído de forma contínua ano após ano.

Continuando assim, num futuro próximo, o Papai Noel vai ter que contratar vaquinhas para puxarem seu trenó.


23 dezembro 2013

Papai Noel Canalha

papai noel
o que foi que nos deste?
cada vez que recebo
um teu presente
o meu viver pelo destino
se torna mais doente

o que foi que nos deste?
cada um teu presente
é um roubo criminoso
de um planeta moribundo
para um homem decadente

olha para tua pança
dilatada da gordura
retirada sob tortura
daqueles que morrem de fome:
cada um presente teu
é um roubo de Robin Hood
ao contrário
(tira dos pobres
para dar aos ricos)
em um planeta
que se consome
em nome de um futuro
parasitário

papai noel
és pai, mas do consumo
puxador de saco
dos que têm dinheiro
traz tua bota atolada
na merda capitalista:
os miseráveis
têm o nome riscado
da tua lista

o que foi que nos deste
papai noel?

trouxeste mais pesar
com teu peso obeso
que é o contrário exato
da leveza do céu...

21 dezembro 2013

de Por que as Pessoas Preferem Cães a Gatos

as pessoas
em geral
preferem cães a gatos
porque cães
submetem sua personalidade
e gatos a mantém

porque a amizade dos cães
é doada a quem eles consideram
seus superiores
e os gatos
oferecem sua amizade
a quem eles consideram
seus iguais

porque os cães
não dão atenção
aos defeitos dos homens
e os gatos
sabem que os homens
não são confiáveis

porque os cães
simbolizam a segurança
daquilo que achamos
que conhecemos
os gatos
simbolizam o temor
ao que não confessamos
como desconhecido

enfim
os cães
merecem ser amados
porque são como enfermeiros
da fraqueza humana
os gatos
merecem ser amados
porque são como sábios
que ensinam o homem
a ser mais forte

(Na imagem, o quadro "Julie Manet com um gato", de Renoir.)

18 dezembro 2013

(Não-)Palavras a Beethoven*

Tu
que só dizes
ao que é:
de  Ser
a Ser

(quanto a mim
não digo palavra
só verso
um algo de próximo
ao fim)

o som
do teu Ser
é silêncio
sublimado em Verbo
e em Verdade
calada
aos que escutam
mas não ouvem
de nada

Tu só
ouvias...

teu Ser
(que música)
é um arquetípico
de ideia-alma
substância-essência
síntese e única
em cada nota
ao que se consciência

não mais.
que além
é um a-final.

o quê
em tua música há?
tudo aquilo
que o (não-)homem
(que não houve)
jamais será?

*Poema reelaborado e republicado

17 dezembro 2013

Fragmentos Absurdos e e-mail do Escritor Assis Brasil

Os leitores do blog devem conhecer os contos da série que estou escrevendo, Fragmentos Absurdos de Uma Existência Futura, onde tento expressar uma civilização futura decadente e violenta, assolada por desastres ambientais, em que os  seres humanos são obrigados, ou convencidos, a seguir o "pensamento único", na completa ausência de sensibilidade e reflexão, verdadeiros autômatos. Já foram concluídos e publicados cinco contos da série. No momento escrevo, o 6° conto, e já penso no 7°.

Três desses contos, há alguns dias, enviei para a leitura do escritor Antônio de Assis Brasil, também secretário de cultura do Estado do RS (mas o que importa realmente é que ele escreve), e domingo recebi sua resposta. Assis Brasil, não há dúvida, é um dos maiores prosadores gaúchos, e brasileiros, da atualidade. Em agosto deste ano, em formação de professores realizada pela SEC, em Porto Alegre, tive a oportunidade de acompanhar um curso bastante interessante ministrado por Assis Brasil sobre a arte da escrita em prosa.

Bem, como dizia, enviei para o escritor alguns contos da série "Fragmentos". Na sua resposta, entre outras coisas, Assis Brasil afirma o seguinte: 


Li os três textos que me mandaste. Olha, fiquei impressionado com a tua capacidade de fabular, contar histórias. E também impressiona a condução dessas histórias, que não deixam furos nem nada sem explicar. Quanto às temáticas, bem, essa uma escolha tua, e cada qual sabe o que quer contar. Gostei muito do terceiro texto, "Aquele sorriso estúpido", pois, ao lado da violência, comum a todos eles, este acrescenta uma dose de humanidade e, até, de solidariedade, o que o institui como literatura, isto é, que mexe com nossas emoções dentro de um padrão humano. 
Estás de parabéns. É possível que já tenhas um bom material para publicação, um livro. Afinal, tudo termina (ou começa) num livro, não é mesmo? Vai em frente, e aproveita bem esse talento.

Deixo este e-mail para estimular os leitores que ainda não leram a conhecer os contos, pois muitos se sentem instigados a ler apenas após a opinião de alguém conhecido na área literária. Alguns poderão pensar: "ah, ele está se autopromovendo". Óbvio que estou. Afinal, quem não tem dinheiro para pagar por propaganda na grande mídia e nem apoio de governos tem que fazer sua própria propaganda. 

Os contos já publicados podem ser lidos aqui:


O primeiro conto estou o reelaborando e vou republicá-lo em breve.


16 dezembro 2013

Esta é a Tua História Real (ou O Pesadelo) - Final

As cédulas serão necessárias para o necessário investimento. Tudo na vida é investir no futuro, sempre foi teu pensamento, tua filosofia. Futuro que talvez não chegue. E a tarde vai passando. O momento vai passando, e com ele o que se convencionou chamar de vida. Passando como se não passasse. Ou como se passasse de forma total e devastadora. E não deixaste nada de nada. Como se não fosse nada. Mas sendo tudo para ti. O tempo morreu. Foste tu que o mataste.

Finalmente, o instante de deixar o escritório. Alívio. Dever cumprido. Poder pensar em outras questões... Talvez mais profundas... Talvez mais sublimes... Mas o que há de mais profundo e sublime que o trabalho? E aquele relatório, que não há maneira de concluir, não te abandona a racionalidade. Sempre foste um homem racional. E como ser de outra forma? Ser racional é saber o certo. E o que é certo? É o que é, dirás, o que convencionamos, nós como humanidade, determinar como certo, correto e que dever ser feito, ser seguido porque assim é. É o sensato. Não pode ser outra coisa. Qual outra coisa poderia ser? E jamais se finda aquela angústia de ter que fazer o que tens que fazer pelo simples fato de que tens que fazer.

É o que pensas enquanto conduzies dormindo o veículo pelas ruas povoadas. Dormindo não de dormir, embora com os sonhos já sonhasses. Com os sonhos não da vida, mas do sono. Pouco sono, aliás. Que o teu pesadelo voltará... Tu sabes. Mas os sonhos da vida... Estes não germinam na alma empedrada de compromissos.

Na avenida de intenso movimento, um acidente. O motorista da moto morreu. Contemplas como se nunca irás morrer. Com piedade do morto. Mesmo não sabendo o que acontecerá com ele agora. O que acontecerá com ele agora? O homem pensa em tudo para ter uma vida cada vez mais cômoda. Mais tecnológica. E lógica. Tudo deve ser lógico e confortável... Para isso o dinheiro. Para explicar tudo. Aliás, amanhã deves comprar um sofá novo. Dás duro para isso. Mereces. Mas o motoqueiro morreu. O vermelho do sangue no calçamento. Para onde ele haverá de ir? Acabou? Foi no que pensaste, sem querer. Sabes? Não queres nem saber. Um pouco de medo, nada mais. Rapidamente substituído pelos olhos da moça do escritório. Rapidamente substituídos pelo relatório de amanhã.

Chegaste. Belíssimo jardim ostenta tua casa. Mal pisaste nele desde que foi construído. Para não matar as gramas, argumentas para ti mesmo. Sabes que mentes. Mas nem pra ti admites. Para não matar teu tempo. Tempo é trabalho. Exausto, a cerveja desce aliviando teus músculos e nervos. Isso é reconfortante. Ainda antes da academia, para revigorar. Uma latinha apenas.

Tua esposa também chegou. Os olhos da moça do escritório são mais doces que o da tua esposa. Aliás, ela também está muito cansada. Até porque recém chegara da academia. Agora é a tua vez de ir. Beijo no rosto. Tchau. De carro para a academia. Por que não a pé? A violência. Estás certo. A violência das grandes cidades não combina com a preservação ambiental. Nada combina com a preservação ambiental. Principalmente o homem. Principalmente o mundo de que o homem necessita. Mas não é coisa para se pensar agora. É coisa para se pensar no nunca. Agora pensarás na academia, pois já estás nela. Ou melhor, nem na academia, mas no relatório de amanhã. E agora nos olhos da moça. E então no sofá novo que tens que comprar. No dinheiro que estão te devendo. No crescente da tua empresa. Estás conseguindo. Mesmo. Só não consegues o que não sabes que queres.

Exercitar-se é um saco, pensaste. Já não aguentas mais. Mas é necessário. Assim como trabalhar. Não fossem os exercícios, talvez a moça do escritório não teria te olhado. Ainda assim, terias bolso. Sim, talvez ela tivesse te olhado mesmo sem academia.

Em casa, outra vez, que alívio. Fazes todas as coisas do dia querendo que elas passem logo, até que venha a hora de se deitar e dormir. Mesmo assim és feliz, dizes. E como nos dias de hoje dizer-se que não se é feliz? Um crime. Imperdoável. Pensas agora em algumas impossibilidades da vida. Rios límpidos e serenos emitindo sinfonias aéreas e reflexivas. Tranquilizantes. Como gostarias de estar tranquilo neste momento. Quanto pagarias para isso? Os sons aéreos dançantes de tudo que não podes. E eles queimam rápido naquilo que tu sentes. Quase nem conversas com tua mulher. Nenhum dos dois está com alguma disposição de diálogo.

Mas é noite, e a noite nunca tarda, e a noite é um réquiem. Descanso. Delicioso jantar escorreu mecânico pelo teu organismo. Até te sentiste um pouco mal. O jeito foi deitares mais cedo do que o habitual, mesmo com o medo do pesadelo... Na noite que convidava ao amor... Que espécie de amor? O que sentes pela tua esposa? Sentes? Ou é o desejo que se intensifica pelo olhar da moça do escritório? Não sabes. Mas certamente era esse tipo de amor que a violência emocional em silêncio da noite te convida. O sonho...

Dormiste pensando em coisas importantes... No relatório de amanhã, por exemplo. No sucesso da tua vida, sem dúvida, plena de sucesso. Mas o pesadelo te despertou. Pesadelos têm por princípio despertar os homens que dormem. Agora, o silêncio da noite era fúnebre. Havia algo de estranho pairando no ar. Pensaste lento em coisas distantes. O pesadelo foi, como sempre, de um mistério inquietante. Mistério era tudo o que respiravas agora... Estavas certo que nele, alguém ou algo chamou teu nome. No pesadelo, tu não eras tu. Tu fingias que era feliz, mas sabias que não eras. Tentavas enganar a ti mesmo. Em outro momento de teu pesadelo, enlouquecias, eras o mais insensato dos homens, e então te sentias bem.

Acordava sempre imerso na dúvida. Alguma coisa esquisita vibrava em tua alma. Lembravas da música do pesadelo. Estavas certo que era Bach, mesmo não conhecendo quase nada de Bach. Talvez não fosse pesadelo, talvez fosse um sonho mirífico. Não sabias. Alguém batia na porta, pesadas batidas. Não tinhas coragem de atender. Sinuoso e enigmático. Densificou-se  tua respiração. Algo de impalpável te alarmava.

O sopro das narinas em sono de tua mulher intensificava a tensão. Algo de oculto flutuava no desconhecido da noite. O Desconhecido... Soava uma voz de fêmea. O mistério que te falava e que eternamente sustinha suas asas negras sobre tua alma. Que crescia e te fitava nos olhos, em paroxismos e apoteoses, falando-te de tudo que nunca fizeste. Que nunca viveste.

Mas amanhã é dia de trabalho. Isso é o que fazes. Trabalhas para um algo. Sejamos sinceros: na verdade nem sabes para que trabalhas. Deves dormir. Isso é o que sabes. Tentando esquecer o pesadelo, conseguiste.

Passaram-se horas. Acordas para o teu novo dia. Novo... Como será o teu novo dia? Basta que releias esta história, que é a tua história. Serão bem poucas as variações.

(Este conto foi reelaborado e republicado.)


14 dezembro 2013

Esta é a Tua História Real (ou O Pesadelo)

Esta é a tua história. Tiveste um sono perturbado, acordaste banhado em suor, os lençóis úmidos. Sonhos e pesadelos durante toda a noite, infinitos de desejo. Abriste os olhos com receio. Alguma coisa não estava correta. Mas os teus pesadelos eram demasiado reais. Desespero foi a primeira palavra que ensombreceu a tua mente, quando puseste o pé esquerdo no chão. Talvez tudo não estivesse correto. Fracassaste tão logo acordaste. Mas disso não te deste conta. Para ti e para os outros, vivias a vida dos sonhos de todos. Um homem de sucesso.

Olhaste pela janela. 7 horas da manhã. Raios de sol iluminavam teus olhos. De nada adiantaria. Fazias isso todos os dias, todas as manhãs o mesmo ato. Já estavas anestesiado e mecânico. Passado e futuro digladiavam-se em tudo o que sentias. Nunca o presente. E o presente é extremamente cruel. Sempre o presente é cruel. Tinhas saudade do passado e planos concretos para o futuro. E o futuro chegava, e os planos eram realizados, grandiosos objetivos para ti. Enfim, conseguiste. Mas mesmo conseguindo, o presente era sempre uma merda. Se falasses em público essa palavra, “merda”, o que diriam aqueles que te admiram? Fracassaste em teu presente, por mais que tenhas tido sucesso. Tens tudo. Mas no fundo não queres nada do que tens. O que realmente, ou na ilusão, queres é sempre o que não alcanças. Mas não sabes disso. Não sabes disso.

Abriste a geladeira, e ela estava abarrotada de coisas. Sem tempo para comer. Um suco escorregou sem graça pelo teu esôfago. A garganta continuou seca. A laranja não tinha culpa de nada, pensaste.

A roupa que vestiste era impecável. Hoje precisarias de teu melhor terno. O trabalho dignifica. És um homem digno. As ruas pelas quais passas agora são de uma magnificência encantadora. Muito bem ornadas para o Natal que se aproxima. Todos os dias o mesmo trajeto. Mal as viste. Exausto sem ainda estar, cansado sem cansaço, o cosmos falava pelo canto dos pássaros. Não ouvias. Sem tempo. Sem vontade. Ou nem sabes do que tens vontade.  Já estás atrasado. O salário é alto, bastante alto, como não poderia deixar de ser para alguém inteligente e trabalhador como és. Sempre valia a pena o esforço, o sacrifício e a dedicação extremados. Imensidões de esperança despencavam do céu de irrepreensível azul. Já estavas no escritório. Janelas fechadas.

Cumprimentaram-te de acordo com toda a necessidade do respeito que te é devido. Há muito tempo teus olhos não se enchiam de lágrimas. E assim permaneceram. Mandou que um subordinado abrisse as janelas. Fitaste a imponente figueira filtrada pelos vidros espelhados do escritório. O verde irradiava-se livre pela ascensão triunfante do dia. Fracassaste em teu emprego de sucesso. Porque não querias estar no emprego, mas nos galhos da figueira. Mas não sabias disso. Trabalhaste para ser livre. Mas te tornaste ainda mais escravo. Os homens livres dos sistemas democráticos e capitalistas são os cruéis escravos.

Afogado nos papéis, uma sede insaciável debatia-se na tua alma. Córregos, rios, mares, oceanos cintilavam pelo longínquo sob o crepuscular das estrelas. O olhar da moça que passou dirigiu-se de forma sinuosa aos teus. E tua assinatura era agora imprescindível. Em centenas de documentos que em verdade não diziam nada. Mas eram tudo. E quem poderia se pronunciar contra? Lembras-te que há muito tempo não via olhos como aqueles? Reminiscências espirituais de estrelas que há muito séculos partiram.  Ou mentira. Tanta faz agora. Tristeza, só isso era certo. Um pequeno besouro chocou-se contra a parede envidraçada. E uma gota de tinta manchou o terno impecável.

Ninguém é impecável. Como é da natureza humana, e animal, a fome sempre chega. Ao meio-dia, o sol atinge o seu auge. Mas não há tempo para considerações sobre auges, sobre, por exemplo, a queda do auge da humanidade. Em teu carro de modelo importado colocaste uma música da moda. Não te agradava realmente, mas não havia tempo para encontrar aquela em que pensavas há meses. E, já que era da moda, ninguém acharia ruim tu a estares escutando. Serias incluído no gosto geral, e isso é bom, é agradável e simpático. Em um buraco furaste o pneu. Ficaste tenso. Já não estavas bem. Tens andado nervoso ultimamente, talvez seja devido aos pesadelos. Mas furaste o pneu. O azar e o imprevisto voam sempre tão alto que não dá para avistá-los. Descem suas asas negras sobre os minutos de calmaria. Mas não há tempo para divagações. Trocaste.

O restaurante era belo. E caro. E impregnado dos mais vários e lindos alimentos. Ao longe os pomares em jardins impactantes e comoventes aspergiam o pólen de suas flores pelos ares límpidos e vivos de borboletas. Mas há certa poesia antiga nessa frase. Já ninguém sente assim. Ao longe... O restaurante era o mesmo de todos os dias. Não há nada de novo sobre a terra. Pediste o de sempre. Antes de entrar, porém, um pequeno gato roçou-te a calça. O felino fitou teus olhos. O que fazia um gato naquele restaurante de classe? Animal inconveniente, pensaste. Sim, até são bonitinhos. Mas tu não tinhas tempo para sentimentalismos. E sem tempo para considerações. Comeste. E isso é tudo. É prático. Haveria algo de maior em cada molécula ingerida? Levantaste da mesa, teu terno estava maculado pela tinta da caneta. Aborrecido. O terno manchado maculou tua alma. Pagaste. Dinheiro não é problema.


Problema eram os olhos da moça que entrara no escritório. Ela não trabalhava contigo. Onde estaria agora? Amanhã, tu terás reunião. “Lembras-te disso espírito da terra.” E depois de amanhã também. Quem sabe a moça retorne... Pelo acaso. Voltaste. Passaste pela mesma rua de sempre. A fronde das árvores evaporando-se em sonhos? Não, bobagens. Agora não há como lembrar. Principalmente de sonhos. Principiava a tarde. Era tarde. É sempre tarde. Irritou-te com as infinitas questões do trabalho. Sempre haverá problemas, e se os resolveres, surgirão outros. Esse é o infinito para ti. Porém, vale a pena preocupar-se com eles. Foi isso que te tornaste o grande homem que és. Grande homem para os medíocres. Vale a pena irritar-te e estressar-te. Vale. O estresse está na moda. Vale? Ainda há vales nas distâncias inatingíveis e somente imaginadas, ou contempladas através das ondas da TV ou da internet, vales floridos e verdejantes, onde em pequenas casas simples e rústicas alguém com um violino toca uma melodia de Bach? Talvez lá houvesse cintilantes olhos como os da moça relampejante do escritório. Aquele dinheiro que não te pagam continua te tirando o sono. Teria o fato alguma relação com teu pesadelo recorrente? Sim, agora pensavas no pesadelo... E ele voltará...
(Amanhã, o final do conto.)

13 dezembro 2013

da Arte de Não se Importar

olho aquele olhar
que nos olha
sem que dirija algum olhar
a nenhum lugar:
vejo-o lá
quando ele
que não ele
não o vejo
porque nem está

não se houve palavra
no seu dessilêncio
verbo-instante do denso
que se pensa dito:
é o tudo
só mais uma gota na taça
e o imenso
do nada quanto se faça

o que é feito em verdade
é feito não se importando
deixando que se fale ou cale
é assim que ficará
um sopro no alto
e um passo no vale

ele que passa sempre
a um passo
enquanto se pensa
no que pode (seu) ser...

mas quem julga
pensar que entende
há muito
nada entendeu
que pensar
é ter em mente um algo
e só serei o que sou
quando do mim mesmo
me estiver falto

aliás
o de Olhar
não se diz
de nenhum jeito
eu mesmo
não falo de coisa alguma
e este poema
como bem podem (não) ver
nem sequer

chegou a ser feito