18 maio 2012

O Palácio Humano, Demasiadamente Humano (FINAL)

Mantinha no palácio alguns empregados (os únicos seres vivos além de mim), para a realização de tarefas imprescindíveis para minha sobrevivência, e que os robôs não podiam fazer, como cozinhar, realizar tarefas de limpeza, a segurança da propriedade (apesar de ela possuir os mais seguros alarmes eletrônicos, não quis correr o menor risco). No entanto, o meu contato pessoal com os empregados era mínimo, somente ocorria quando absolutamente necessário. E isso raramente acontecia. Estavam todos perfeitamente avisados de que só deveriam se dirigir a mim quando não houvesse alternativa. Até mesmo contratei um outro empregado de total confiança para que cuidasse e tratasse dos assuntos dos demais empregados, como dúvidas com relação ao palácio, aos meus gostos e necessidades, para efetuar os pagamentos etc. Como o palácio era enorme, destinei áreas somente para os empregados, onde eu jamais entrava. As minhas refeições eram trazidas pelos robôs. Quando algo deveria ser feito por algum empregado em um local onde eu me encontrasse, como limpeza, algum conserto, eu era previamente avisado através de bilhetes trazidos pelos robôs, ou então simplesmente ligavam para meu celular. O que eu não podia era ouvir a voz física das pessoas. Através de máquinas, não haveria problema, desde que fosse algo realmente necessário. Também não poderia ficar conversando à toa pelo telefone.

Porém se engana quem pensa que eu estava completamente isolado do mundo. Não. Eu acompanhava tudo o que acontecia ao redor do planeta, do meu país, de minha cidade, através da internet. E também mantinha ativas as minhas diversas redes sociais, por meio delas travava relações com todos os meus amigos e conhecidos, conversava pelo MSN, e todos sabiam onde eu estava e o que estava fazendo. Apenas não sabiam o porquê do que eu fazia.

Principiei o meu isolamento (relativo) de todas as formas de vida no dia 1º de junho de 2010, logo após a conclusão da construção do palácio, finalizando-o em 15 de dezembro de 2011. Durante esse período, logicamente, não me ausentei por um só segundo de minha propriedade. Antes de retirar-me à solidão, conversei longamente com aquele empregado de absoluta confiança a que me referi explicando-lhe sobre o meu isolamento e o motivo do mesmo. Ele entendeu perfeitamente. E sabia exatamente o que deveria fazer durante a minha “ausência”.

A data de 1º de junho de 2010 para o início de tudo foi estabelecida por mim. Porém eu não definira uma data para o término. Eu prolongaria o isolamento de forma indeterminada até quando me fosse suportável. E no dia 15 de dezembro de 2011 não mais o foi. Creio que se permanecesse isolado daquela maneira, enlouqueceria verdadeiramente. Além do mais, não seria mais necessário continuar. Eu já havia compreendido. E compreendido não só graças às profundas reflexões em que mergulhei durante os mais de 18 meses de absurda solidão, mas também, e principalmente, pela vivência direta; pela experimentação de como seria viver privado de todo contato direto com qualquer forma de vida, ainda que isso ocorresse em um local onde existisse todo o luxo e todo o conforto possíveis, tendo à disponibilidade as mais avançadas e capazes tecnologias, rodeado de máquinas inteligentes que me faziam companhia em tempo integral, seguro e protegido, enfim, tendo tudo ao meu redor que o dinheiro poderia possibilitar.

Foi assim que compreendi, não com teorias, mas com a vida, que ela mesma, a própria vida em si, é um mistério que jamais alcançaremos. Por mais que as máquinas, os robôs, os computadores, todos da mais perfeita tecnologia, fizessem muito por mim, jamais poderiam substituir ou mesmo se comparar com o menor dos seres vivos. Houve momentos em que desejei que ao menos um rato ou uma barata cruzasse o meu caminho para que eu pudesse visualizá-los, tocá-los até mesmo. Quando via animais e árvores pela televisão ou em livros lágrimas desciam pela minha face. Como sonhei terrivelmente estar na companhia de uma mulher, ouvir a sua voz suave, fitar o seu sorriso, sentir o seu toque delicado, contemplar o fundo de seus olhos. Como, aflito, desejei estar na companhia de meus amigos, seja em bons ou em maus momentos, trocando ideias, divertindo-se, confessando os estados da alma.

Sentia-me profundamente irritado, mergulhado em ânsias e angústias ao perambular pelos infindáveis calçamentos e construções que circundavam o meu palácio, belos, admiravelmente trabalhados, sedutoramente confortáveis, porém deprimentemente estéreis. Como desejava deitar-me em um verdejante gramado, aspirar novamente o perfume das flores, voltar a ouvir o canto dos pássaros. Queria sentir a terra, a terra nua, repleta de insetos, de lesmas, de aranhas, o chão úmido de orvalho, silenciar-me enquanto meditava ao som dos rios, dos córregos, das correntezas por entre as pedras de um riacho, contemplando o desfile aquático dos peixes, ao mesmo tempo em que animais selvagens observavam-me ocultos por entre o mistério da mata. Passei a sonhar todos os dias em viver tais sensações, após determinado período de meu isolamento. Ah, pensava, “se eu pudesse acariciar um pequeno felino, ter um gato de estimação, sentir a maciez do seu pelo, a beleza hipnotizante de seu olhar, a sua presença enigmática ao meu lado...”  E assim passava a maior parte dos meus dias, mergulhados nestes desejos, nesses sonhos, mesmo enquanto lia, enquanto ouvia música, enquanto me alimentava...

Eu refletia: “tantos aquelas máquinas e computadores e robôs que tenho aqui comigo assim como qualquer ser vivo, do mais simples ao mais complexo, são agrupamentos organizados de moléculas, de átomos. Onde se encontra a diferença? Fala-se em vida artificial. Porém, vida e artificial são duas palavras contraditórias. Por que eu desejava a VIDA e não só a companhia das máquinas, por melhor que ela fosse? O que é, onde está o ponto em que ocorre essa diferença milagrosa em que um gato se torna um ser vivo e um robô não? O que é a VIDA, afinal?”

A resposta parece óbvia? Quem não teve a experiência que tive talvez encontre uma resposta pronta lida em algum lugar que já não mais se recorda. Mas para mim, que compreendi o real valor da vida e a sua essencial e abismal diferença de tudo o que é criado pela mão humana... Ah, nunca mais esquecerei que para isso não há resposta. E nada que façamos compreenderá ou substituirá aquilo a que chamamos. Só o que posso dizer é que a vida, em sua substância primordial, é a antiteoria. Ela não admite conceito ou explicação, é absolutamente impenetrável. A lição de Frankenstein é uma lição eterna. E ai de quem não a aprenda.

(Na imagem, o quadro "O Jardim dos Poetas" de Van Gogh)

4 comentários:

Dante disse...

Sensacional! Quando acabamos o conto, ficamos com aquela necessidade de refletir profundamente...

Louise C Wagner disse...

O homem é parte da natureza, por mais que se veja acima dela, ela é a essência da vida. Enquanto houver a negação disso ele permanecerá insaciável diante do consumo. Apenas absorvendo o excesso de informações, não refletindo e sem filtrar o que se identifica/necessita, sem sentir. A vida e a beleza verdadeira está na natureza. O conto comove, emociona quando entramos nele, não consigo pensar em viver sem a natureza. Também é como dito uma reflexão profunda aos que negam o ser humano como mais um animal parte da natureza que necessita mais que nunca momentos de retorno ao seu meio de fato. Parabéns...abraços

Anônimo disse...

Lindo texto! DE uma sensibilidade ímpar! "A vida é impenetrável". Linda reflexão. Al Reiffer, o nosso lobo da estepe.

Unknown disse...

Adoro teus contos Alessandro, muito bom mesmo.
Só nos realizamos plenamente com nossa vivencia com o outro, cada ser trás um mundo dentro de si.

bjão. ;)
Ana Karoline.