13 fevereiro 2011

"Há Algo de Podre..." (Final)

Lá onde deixei minha espera, sobem as nuvens dos mortos, oscilam por alguns momentos, parecem dançar entre si e com as outras fumaças do céu, do espaço, do invisível, para, finalmente, formarem uma capa de névoa esverdeada e purulenta sob a infinitude impassível da noite. E um sangue começa a gotejar sobre meus cabelos, sobre minha pele, sobre todo o chão diante de mim. Bebo daquele sangue vinagroso para saciar minha sede insaciável. Minha sede e o sangue que a sacia evaporam-se lentamente. O calor é absurdo como todos os absurdos.

            “Ó Lua, Lua triste, amargurada!” onde estás agora que não mais te vejo? Caminho como quem se destina à forca. Mereceria se o fosse. Sou culpado e admito. Mas talvez a névoa que me cerca e cerca a todos não deixa que minha culpa seja percebida. Porém, há outros com mais culpa do que eu comendo belas mariposas sob as árvores ressecadas. 

Direciono meus olhos para todas as casas por onde passo e vejo que delas saem, enlouquecidos, caóticos, vorazes, e num fedor alucinante, bandos e mais bandos de ratos e baratas infeccionados. Suas inflamações evaporam sob aquele calor e espalham-se lugubremente pelo ar carregado de podridões e enfermidades. Os ratos e as baratas saem pelas portas, pelas janelas, pelos telhados, observados atentamente por abutres exaustos no alto das torres carcomidas pelas chuvas ácidas. E o fedor daquelas casas fez-me vomitar o sangue que bebera.

E os abutres arrotam incessantemente, seus abdomens estão medonhamente dilatados. E a névoa dos seus hálitos envolve os olhos de umas bonitas meninas esqueléticas que vejo passar.  Deve haver algum problema, devem sofrer de alguma grave moléstia, pois não conseguem fechar a boca, aquelas mulheres... Sinto agora o mau-cheiro do sangue coagulado de corações extirpados. As pessoas mesmas fazem isso com si próprias às vezes, é algo bastante comum em nossos dias.

Tenho saudade do tempo que as florestas queimavam. Agora não há o que ser queimado. Como seria belo fitar novamente aquelas magníficas ondas e colunas negras de fumaça ascendendo a um céu ainda azul. Mas há os que queimam flores. Rosas, camélias, tulipas, gerânios, violetas, lírios, agora as mulheres carcomidas as queimam sorrindo. É o único perfume possível de ser sentido, a névoa da queima das flores. Lamento que sejam tão passageiras... As flores passam tão rápido. E partem mais rápidas ainda em suas nebulosas de saudade e amor extinto, lá vão elas, cinzentas para os ouvidos dos anjos.

Devo agora descansar um pouco. Sento-me na escadaria de um bar. O fedor é insuportável. Mas já estou acostumado. Sim, agora me resigno ao auge. A fétida névoa miasmática nessas horas finais da noite sempre envolve tudo. Torna-se densa, úmida, pesada, quase pegajosa. Parece que a névoa é exalada até mesmo pelas luzes doentias da cidade agonizando em seu sono suarento. Creio que também sinto sono. E febre.

Enquanto todo o sentimento da humanidade apodrece ao meu redor, a névoa formada pelo sentimento putrefacto compõe, lentamente, a imagem do teu rosto diante dos meus olhos fechados...

(Na imagem, o quadro "Os Comedores de Batatas", de Van Gogh.) 


8 comentários:

Metáfora do Tempo disse...

Os finais dos teus contos são sempre de uma força de significado que nos perturba, nos entorpece. Mais um magnífico trabalho. Um abraço!

Ingrid disse...

imagens fortes..
texto contundente!
abraços.

Marinha disse...

"Enquanto todo o sentimento da humanidade apodrece ao meu redor, a névoa formada pelo sentimento putrefacto compõe, lentamente, a imagem do teu rosto diante dos meus olhos fechados..."
Que forte e denso, mas tb belo! Me fizeste refletir!
Bjo e paz no teu domingo.

Neuzza Pinheiro disse...

...as flores partindo rápido em suas nebulosas de saudade e amor extinto...É de grande tristeza e de uma beleza funesta, o seu texto;cidades agonizando, almas apodrecendo precocemente...Uma queima de flores pode significar toda a poesia do mundo virando cinzas. E isso é real.
As ilustrações junto ao título do seu blog tem sido de muito bom gosto: a Elegy de Bouguerou, o pesadelo de H. Fuseli...e esse anjo prostrado sobre um túmulo?
É o retrato do Fim...abraços

Lully disse...

Adoro poemas que mencionam a lua... gostei!!
Beijo =)

Anônimo disse...

Adorável, sempre!
Obrigada por sua visita!

Denise Portes disse...

Reiffer querido,
Nos seus poemas, nas suas palavras mergulho e volto à superfície com mais sabedoria.
Um beijo
Denise

Agnes Mirra disse...

Terrível e assustador!! Fiquei com um gosto amargo na boca...